Conceito de multiplicidade e filosofia da matemática (cálculo diferencial) segundo Gilles Deleuze

Home Dossier en Portugués Conceito de multiplicidade e filosofia da matemática (cálculo diferencial) segundo Gilles Deleuze
Conceito de multiplicidade e filosofia da matemática (cálculo diferencial) segundo Gilles Deleuze

2.

Introdução

Quando nos voltamos para “essa história de multiplicidade”, segundo expressão do próprio Deleuze, observa-se que a noção ou o conceito de multiplicidade é uma aquisição recente do pensamento. Na verdade, é uma história dos usos que dela fizeram matemáticos, físicos, filósofos, sociólogos e antropólogos, por motivos imediatamente relacionadas ao exercício de suas respectivas disciplinas.[2]

Deleuze não foi o primeiro nem o único a se preocupar com a importância da multiplicidade. Essa história dos usos do conceito de multiplicidade parece, então, ofuscar o brilho do pensamento de Deleuze, visto que um dos principais distintivos pelos quais ele veio a conquistar alguma notoriedade, entre outros traços marcantes, teria sido o de trazer esse conceito para o seio da filosofia. A este respeito, as declarações de Deleuze são enfáticas; em dois momentos de sua obra ele afirma: “concebo a filosofia como uma lógica das multiplicidades” e “a filosofia é a teoria das multiplicidades”.[3] Observa-se aí, não sem certa perplexidade, a importância atribuída por Deleuze a um conceito, supostamente, de segunda mão.

Entre o reconhecimento de que outros estudiosos precederam Deleuze na elaboração do conceito de multiplicidade e as declarações onde a multiplicidade é elevada a um estatuto equivalente ao da filosofia, poder-se-ia identificar a fraqueza de um pensamento que se pusesse a formular frases bombásticas. No entanto, pode-se ver aí, igualmente, a mutação do conceito ou da noção multiplicidade em um problema filosófico de maior alcance. Nessa passagem, as tentativas anteriores de formulação desse conceito são reativadas e promovidas. Sendo assim, nosso artigo se inicia com a seguinte questão: de que maneira inusitada e em que novo sentido Deleuze teria relançado a multiplicidade, sem que sejam baldados os esforços de seus predecessores?

Quando um conceito é ao mesmo tempo um problema filosófico, e tal é o caso da multiplicidade no pensamento de Deleuze, então, ele alcança uma configuração especial, onde não estamos diante apenas das clássicas compreensão e extensão de um conceito. O conceito de multiplicidade comporta, como veremos, tipos de multiplicidade (multiplicidade atual e multiplicidade virtual), mas também descobre, nas coisas, um acontecimento que as determina como multiplicidades concretas (um conceito, um inconsciente, um corpo, um vento, uma ação). Com isso, Deleuze logra, realmente, estabelecer uma teoria e uma pragmática das multiplicidades, ampliando, antes de mais nada, o domínio de aplicação que fora conferido a esse conceito pela história do pensamento.

2.1

Muito embora possamos avaliar a contribuição de Deleuze para “essa história de multiplicidade”, tendo aí em conta, especialmente, o alargamento do campo nocional desse conceito, esse fio-condutor – de fato – ainda é insuficiente para que se demonstre todas as implicações da equiparação entre multiplicidade e filosofia. Precisamos, portanto, de um fio-condutor – de direito – proveniente de um “princípio da multiplicidade”.[4] Neste caso, nossa questão inicial fica como que imantada por uma outra questão que é apropriado enunciar: já haveria em ação, no pensamento de Deleuze, um princípio da multiplicidade ou princípios de um pensamento das multiplicidades?

Com efeito, entre as esparsas menções que, na obra de Deleuze, esboçam as condições de um pensamento das multiplicidades, destaca-se a que aparece em um único parágrafo de seu curto prefácio à edição italiana de Mille Plateuax. Neste prefácio, Deleuze assinala a novidade que este livro teria trazido para seu pensamento, posto que, em comparação à contribuição de L’Anti-Oedipe, Mille Plateaux “é uma teoria das multiplicidades por elas mesmas, no ponto em que o múltiplo passa ao estado de substantivo…”; novidade esta, a propósito, já anunciada em Différence et Répétition.[5]

2.2

A fim de explicar o caráter “substantivo” do “múltiplo”, Deleuze afirma que “as multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades”. Ora, com essa afirmação, estamos adentrando uma questão interna ao pensamento de Deleuze, e não menos inquietante, pois, exatamente aqueles termos que nos acostumamos a identificar como princípios do pensamento (“unidade”, “totalidade”, “sujeito”) são simplesmente tomados como processos que acontecem nas multiplicidades.

Renova-se a perplexidade de nossa indagação inicial. Se as declarações de Deleuze se sustentam, ele estaria, propriamente, subvertendo as convenções com as quais o pensamento fundamentar-se-ia originariamente.

Mas essa ousadia do pensamento, ao submeter às multiplicidades termos tidos como universais, não terá sido uma mera bravata, já que, no mesmo parágrafo do prefácio à edição italiana, vemos Deleuze enumerar aqueles que seriam “os princípios característicos das multiplicidades”, os quais dizem respeito:

“a seus elementos, que são singularidades; a suas relações, que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização”.[6]

O conceito-problema de multiplicidade nos arranca de um solo estável, colocando-nos diante de uma nova terra, onde panoramas inusitados se descortinam. Uma teoria das multiplicidades surge como um sobrevoo pelos conceitos criados por Deleuze. As multiplicidades nos arremessam no plano de seu pensamento.

2.3

Certamente, os “princípios característicos das multiplicidades” destacados acima não realizam por si só a ideia contida na proposição “a filosofia é uma teoria das multiplicidades”. Entretanto, pelo menos, eles nos colocam, rigorosamente, em um limite descrito como um fio-condutor que tangencia as duas questões norteadoras de nossas indagações. Esse fio-tangente define um plano de pensamento – um pensamento das multiplicidades – no qual somos inscritos como co-participantes por nossas questões de partida e por outras questões que delas serão derivadas no decorrer deste trabalho. Nesse lugar, já podemos pressentir a multiplicidade como um conceito-princípio que se compõe através da captura e articulação de outros conceitos. Deleuze ensina, aliás, que “os princípios em filosofia são gritos, em torno dos quais os conceitos desenvolvem verdadeiros cantos”.[7]

Neste artigo, sendo a multiplicidade o grito, abordaremos o problema central desse canto que o conceito de multiplicidade compõe em torno de certas questões filosóficas do cálculo diferencial.

2.4

Pesquisas deleuzeanas visando o conceito de multiplicidade

Conceito de multiplicidade e o problema do uno e do múltiplo

A multiplicidade é apresentada como conceito no livro dedicado a Bergson de 1966. Neste momento, Deleuze procura definir tipos de multiplicidade tendo em vista a teoria físico-matemática de Riemann e o tratamento filosófico que lhes confere Bergson. Trata-se, portanto, de uma aliança filosófica com Bergson, e outra, de feição interdisciplinar, com a física-matemática. Por outro lado, o nascimento do conceito de multiplicidade em sua relação com a física relativista e com a filosofia da duração de Bergson, nas quais fica em destaque sua acepção temporal, não esgota a teoria deleuzeana das multiplicidades. Sendo assim, para entendermos porque a teoria deleuzeana das multiplicidades não fica restrita ao registro da filosofia de Bergson nem ao da teoria físico-matemática de Riemann, é necessário averiguar quais as linhas de força que Deleuze recolhe dessas tentativas de definir o conceito de multiplicidade, e que, afinal, lhe fornecem um ponto de partida.

Bergson

Bergson

Segundo Deleuze, a primeira regra do método filosófico de Bergson seria a de fazer a prova do verdadeiro e do falso nos próprios problemas, antes de submeter à mesma prova as soluções desses problemas, assunto que trataremos um pouco adiante. Não se trata, absolutamente, de qualificar como verdadeiro o problema que oferece uma solução, e como falso o que não a oferece. Todo problema merece a solução que a sua posição proporciona. Assim, os problemas verdadeiros são aqueles que reconciliam a verdade e a criação ao nível de sua formulação.[8] Mas, de que maneira a posição dos problemas atuaria sobre o conceito de multiplicidade?

Riemann

Riemann

Justamente, a definição do conceito de multiplicidade foi bloqueada na história da filosofia porque sua formulação se inicia com um problema mal colocado, qual seja, o da relação do par uno-múltiplo. Para ser mais preciso, pode-se dizer que o conceito de multiplicidade não se autonomiza enquanto as relações entre o uno e o múltiplo forem compreendidas como um misto de suas respectivas determinações, isto é, quando o múltiplo é dito expor o que o uno já contém ou quando o uno é tomado como o recolhimento do que o múltiplo dele expõe.

A tentativa de Bergson, segundo Deleuze, teria sido a de demonstrar que as determinações recíprocas do uno e do múltiplo podem misturar indevidamente elementos que diferem em natureza, de modo que seria possível desfazer esse misto separando os termos que nele aparecem confusos. Quando essa depuração do misto se completasse, as determinações do par uno-múltiplo poderiam ser finalmente colocadas sob os auspícios de um problema verdadeiro que explicaria a gênese do uno e do múltiplo sob o campo de forças do conceito de multiplicidade. Isto é, os termos do par uno-múltiplo, ao contrário de sua vigência na história da filosofia, não seriam considerados de modo que aquele aparecesse como originário, já que princípio ontológico ou essência do ser, e este, o múltiplo, como derivativo, fenomênico, como uma dispersão empírica em que o uno se estilhaça ou se ofusca, mas para se difundir, para se manter latente, e, enfim, ser recolhido ou reencontrado nos cacos do múltiplo. Ou, em outras palavras, pode-se dizer que com o conceito deleuzeano de multiplicidade, o múltiplo deve deixar de ser o adjetivo que qualifica ou manifesta o substantivo uno, para receber, ele também, uma definição substancial.

Desde que o conceito de multiplicidade opera essa reviravolta no par uno-múltiplo surge não mais o dualismo substantivo-adjetivo, mas uma tipologia das multiplicidades. De fato, Bergson define dois tipos de multiplicidade, a saber, “a de termos justapostos no espaço e a dos estados que se fundem na duração”, ou seja, as multiplicidades numéricas ou extensas e as multiplicidades qualitativas ou de duração.[9] Porém, precisamos perguntar a Deleuze porque esses dois tipos de multiplicidade são definidos exatamente pela determinação justaposição de termos no espaço e pela determinação fusão de estados na duração e, por que, enfim, tais determinações se confundiram constituindo um empecilho, na história da filosofia, para a emergência do conceito de multiplicidade. Por que o dualismo do uno-múltiplo é uma confusão entre dois tipos de multiplicidade e porque essa confusão é posta em evidência desde que o conceito de multiplicidade exerce sua função depuradora?

2.8

Fragilidade do misto de espaço e duração

Ocorre que todo o misto mal analisado tem por base a confusão entre espaço e duração. O espaço apresenta apenas as diferenças de graus entre as coisas, ele segmenta a matéria segundo o aumento e diminuição de suas partes, por isso é um modo de abstrair a materialidade dos objetos segundo uma “homogeneidade quantitativa”. Já a duração apresenta a “heterogeneidade qualitativa” da matéria, isto é, ela é uma “maneira de estar no tempo” que não se reduz a quantidades homogêneas, e por isso destaca a diferença de natureza entre os objetos e de um objeto consigo mesmo.[10] Assim, por exemplo, sempre que o açúcar derrete na água, certamente, há uma diminuição de grau -ele se dilui- relativa à materialidade formal, porém, igualmente, sua natureza se modifica, pois o açúcar passa de sólido a líquido, ocorrendo uma alteração em sua materialidade ou em sua essência, que define um estado.

Quando o múltiplo tem seu alcance formulado a partir das diferenças de grau no espaço, a duração, por seu turno, homogeneiza-se, de modo que não se leva em conta as diferenças de natureza ou alterações do estado. Tal superposição na formulação dos problemas é a origem dos mistos, e todo misto gera um dualismo como método filosófico. Tal é o caso da oposição uno-múltiplo na tradição filosófica. Neste dualismo, a essência, que é una e interior, desconhece as alterações da natureza, e torna-se tão somente o ponto de referência do aumento/diminuição de diferenças de grau nas partes da matéria. Assim, o espaço ao invés de incorporar a variabilidade da essência na duração, passa a ser um espaço auxiliar que representa exteriormente em suas graduações uma essência impassível. Porém, em sentido contrário, no dualismo do uno-múltiplo, a duração deixa de apresentar as diferenças de natureza de uma essência, e se torna o duplo temporal das diferenças quantitativas do espaço auxiliar, ou seja, a duração mitiga-se em tempo homogêneo. O misto justapõe os graus dos objetos no espaço, como múltiplo, bem como, alinha as distinções na duração como uno.[11]

2.9

Uma outra maneira de confundir a multiplicidade de espaço com a multiplicidade de duração seria identificar esta última com uma temporalidade que não é homogênea ou linear, mas relativista, enquanto o espaço dependeria dessa relatividade do tempo. Porém, o conceito deleuzeano de multiplicidade não é também um decalque do espaço-tempo da física relativista, muito embora o conceito de multiplicidade aí formulado também sirva como ponto de partida para Deleuze. Vejamos então o envolvimento do conceito deleuzeano de multiplicidades com certas questões da física-matemática relativista, conforme indicamos acima.

Crítica da noção de multiplicidade segundo um espaço-tempo relativista

O método filosófico dualista, portanto, é originado por um problema mal colocado, qual seja, o das relações entre espaço e duração, bem como é representado pelo misto em que uno e múltiplo aparecem em um par de opostos. Por isso, segundo Deleuze, o termo multiplicidade não faz parte do vocabulário da filosofia. Foi preciso esperar que a ciência, particularmente a teoria da relatividade, formulasse seu próprio conceito de multiplicidade para que a filosofia daí derivasse uma nova maneira de pensar e para que a multiplicidade, como conceito filosófico, fosse concebida. A partir daí, Deleuze procurará estabelecer contatos com pensadores, geralmente alheados da história da filosofia tradicional, e igualmente com problemas de outras áreas, dos quais ele procurará extrair um elemento novo para sua teoria das multiplicidades.

De fato, ao tratar de Bergson, Deleuze observa como esse filósofo já teria proposto um remanejamento na maneira pela qual o físico e matemático Riemann concebia a multiplicidade. Deleuze esclarece que, justamente nesse interesse de Bergson pela ciência, a noção de multiplicidade começa a ser dotada de alcance filosófico, e observa que uma das principais consequências dessa iniciativa seria que a teoria das multiplicidades alcança uma autonomia tal que já se tornava apta a fornecer uma crítica sobre a formulação riemanniana que, aliás, seria em parte adotada por Einstein quando da elaboração de sua Teoria da Relatividade. Vejamos como isso se dá.

2.10

Para Riemann, as coisas poderiam ser classificadas em dois tipos de multiplicidades, a saber, as que são determinadas em função de suas dimensões e as que são determinadas em função de variáveis independentes. A primeira delas é a multiplicidade discreta, caracterizada pela definição de um princípio métrico entre as partes que a compõem; o segundo tipo de multiplicidade é denominado de multiplicidade contínua, pois ela encontra o seu princípio métrico não nas partes de seus elementos, mas em outra coisa, como em fenômenos ou em forças que agem nessas multiplicidades e dependem, portanto, não do espaço, mas do tempo, ou melhor, elas definiriam o espaço-tempo da relatividade. Assim, por um lado, as multiplicidades discretas são as que podem ser expressas em termos numéricos, dada sua caracterização quantitativa; por outro, as multiplicidades contínuas são não-numéricas ou indivisíveis, visto que seu princípio métrico depende de qualidades ou estados variáveis de seus elementos.[12]

É justamente quanto à caracterização das multiplicidades contínuas que, segundo Deleuze, Bergson pretendia aprofundar a própria teoria riemanniana das multiplicidades, pois esta última visava reformular, ou precisar, a concepção científica de espaço, mas ao fazê-lo consegue apenas definir as multiplicidades discretas do ponto de vista negativo, isto é, como uma noção de espaço que envolve um princípio ligado a estados temporais. Para Bergson, esta operação teria incorrido no equívoco de reeditar mais uma vez o misto espaço-duração, ao passo que, se o elemento próprio da multiplicidade fosse a duração, estaria preservada a distinção real entre esse tipo de multiplicidade e a multiplicidade discreta ou espacial, bem como, a própria definição de multiplicidade se revestiria de um caráter positivo.

2.11

Trocando os termos, isto quer dizer que, quando um elemento de uma multiplicidade de duração (contínua) se divide, a multiplicidade muda de natureza, e não apenas de referência a um estado temporal como princípio métrico. Contudo, mesmo Bergson não leva a cabo esta crítica. Será Deleuze quem o fará ao restabelecer uma aliança da ciência física com a filosofia bergsoniana a fim de ativar sua própria teoria das multiplicidades. Mas, como a crítica do conceito de multiplicidade no âmbito da física seria transferida ao campo da filosofia, sem que esta última fosse obrigada a se submeter a padrões epistemológicos que lhe ditassem, do exterior, a tarefa de criar conceitos?

A crítica de Deleuze a Bergson e a Riemann incide sobre o fato de que a sua formulação do conceito de multiplicidade parece se restringir, em graus diferentes, como observamos, a uma tipologia das multiplicidades, não ficando definido claramente o envolvimento que há entre os dois tipos de multiplicidade. Esta crítica incidiria, igualmente, sobre outros momentos em que uma tipologia das multiplicidades faz as vezes de conceito, como, por exemplo, no dualismo entre as multiplicidades definidas por Husserl, entre as “multiplicidades de grandeza ou extensivas” e as “multiplicidades de distância” de Meinong e Russel, e entre as “multiplicidades de massa” e as “multiplicidades de matilha” de Canetti.[13] De fato, Deleuze deseja elevar o alcance dessa tipologia a uma teoria das multiplicidades, a fim de que os tipos ou regimes de multiplicidade não corram o risco de se submeter a um princípio que não esteja de acordo com a sua caracterização e que, por isso, ponha por terra a distinção do conceito de multiplicidade.

2.12

Crítica da definição do ser em termos de uno-múltiplo

Ora, Bergson teria logrado transformar a tipologia riemanniana da multiplicidade –discreta e contínua – em uma verdadeira noção de multiplicidade. Porém, de acordo com Deleuze, a própria tentativa bergsoniana teria abortado, pois ele não conseguira dar à ela um alcance ontológico, de modo a esclarecer de que maneira se daria a relação entre multiplicidade de duração e multiplicidade espacial, pois o dualismo ontológico do uno e do múltiplo agora poderia retornar estabelecendo-se entre os dois tipos de multiplicidade e obliterando distinção que o conceito desejava conferir-lhe.[14] Porém vejamos, antes de tudo, como a definição do alcance ontológico da teoria deleuzeana das multiplicidades toma impulso a partir do interior da filosofia bergsoniana, pois em Bergson estão presentes todos os elementos para que esse intento seja logrado.

Para Deleuze o conceito de multiplicidade é importante porque ele evita o pensamento abstrato, no que procura combinar dualmente uno e múltiplo. Por exemplo, não seria suficiente integrar ambos os termos ontologicamente, afirmando que o uno já é múltiplo, que o uno passa no interior do múltiplo, pois o uno assim concebido é geral demais. Esta concepção das relações entre o uno e o múltiplo seria insuficiente para compor um conceito de multiplicidade porque de nada valeria a oposição de um conceito geral do uno a um conceito geral de múltiplo, se tal oposição resultasse somente em uma unidade do múltiplo igualmente abstrata, isto é, uma unidade ontológica que se desviara na fulguração do empírico para recobrar-se, para achar-se de novo por entre os caminhos do múltiplo. Igualar o múltiplo ao empírico, estando ele percorrido intrinsecamente pelo uno, é uma maneira de rebaixá-lo do ponto de vista ontológico.

O que garantiria, então, que o movimento do real, isto é, neste caso, do múltiplo através do uno, não fosse falseado por uma abstração? Deleuze responde peremptoriamente a esta indagação: “não se reunirá jamais o concreto combinando-se a insuficiência de um conceito com a insuficiência de seu oposto; não se reunirá o singular corrigindo uma generalidade por outra generalidade”.[15]

2.13

O grande equívoco deste movimento do conceito abstrato é observar a produção do real em um devir muito geral, onde se perdem as suas matizes; matizes que são por demais sutis e ariscas para as malhas da abstração. Então, Deleuze nos convida a uma nova definição de devir, uma definição que o tome como movimento do real e simultaneamente como movimento do ser. Não se deve, por um lado, compreender o ser como uma origem (uno em geral) a partir da qual se instauraria o não-ser como uma série de gradações até seu retorno ao estado original; caso em que o devir e o múltiplo são concebidos como um intervalo onde todas as coisas estão compreendidas. Não se deve, por outro, opor ser e não-ser como se fossem forças (múltiplo em geral) que, ao se combinarem, produziriam todas as coisas; caso em que o devir e o múltiplo teriam uma função genética, mas essa produção das coisas dependeria de oposições radicadas no real. Em ambos os casos, uno e múltiplo combinar-se-iam abstrata ou genericamente, porque o movimento do real e do devir estaria de alguma maneira, fosse por degradação fosse por oposição, marcado por uma negatividade em relação ao ser. É que o negativo, que justamente combina ser e devir como degradação e oposição, como analisa Deleuze, impede que o ser seja visto em suas “diferenças de natureza” e que o devir seja as variações dessas diferenças no ser.[16]

Resumidas as críticas de Deleuze acerca do emprego do conceito de multiplicidade na ciência e na filosofia, expliquemos melhor o alcance ontológico que o mesmo deve encerrar.

2.14

Alcance ontológico do conceito de multiplicidade

“Multiplicidade virtual” e “multiplicidade atual

De acordo com Deleuze, pensar a multiplicidade da duração é uma das progressões da filosofia bergsoniana. A outra progressão seria redefinir a noção científica de espaço, procurando dar-lhe um caráter ontológico. A teoria deleuzeana das multiplicidades, por sua vez, afina-se ao observar a novidade que o conceito filosófico de multiplicidade traria para a ciência. Essa tentativa de caracterizar o espaço como multiplicidade emergirá novamente em vários pontos de seus trabalhos posteriores, mas aparece enunciado basicamente na definição de uma “geometria operatória ou projetiva” cujo objeto seria um “espaço liso” ou “espaço qualquer”.[17] Basta, para os objetivos do presente artigo, que indiquemos a maneira deleuzeana de integrar o espaço e a duração por intermédio de um princípio ontológico afeito à teoria das multiplicidades.

Em primeiro lugar, seria necessário resguardar-se de conceber o espaço apenas como uma desnaturação a que estaria sujeita a pureza da duração, pois é possível tratá-lo como uma relação entre as coisas e entre as durações.[18] Abordar a ontologia sob o ponto de vista das diferenças de grau no espaço seria perpetrar uma ilusão que contamina não somente a filosofia como também a ciência; mas, em contrapartida, observar o espaço participando do ser como subproduto de uma atividade essencial, seria duplicar essa ilusão. Deleuze nos convida a compreender o espaço e todas as atualizações da duração como participantes das virtualidades do ser em suas diferenças de natureza. Evita-se, assim, que a multiplicidade espacial de Bergson recaia em um dualismo em relação à multiplicidade de duração.

Para tanto, Deleuze começa por cria uma terminologia própria. Denomina de multiplicidade virtual aquela marcada pelo tempo universal ou duração e de multiplicidade atual aquela marcada por uma pluralidade de tempos, cada um correspondendo a uma linha de atualização, sendo que cada tempo atual é um grau coexistente na unidade da duração, sendo o espaço, justamente, o elemento que acolhe as variações da duração.[19] Sendo assim, os dois tipos de multiplicidade, dada a relação entre eles, definem um sistema-multiplicidade.

Nesse livro dedicado a Bergson, então, observamos como o conceito de multiplicidade está ligado ao problema da duração, pois é ele que permite não só definir os dois tipos de multiplicidade como também a relação sistêmica entre eles. Porém, Deleuze ainda daria um passo adiante na definição do conceito de multiplicidade ao procurar esclarecer em minúcia a relação desse conceito com um problema, dando a este também um envolvimento direto com conceito de multiplicidade, uma vez que na filosofia de Bergson ele figurava apenas como diretor de um método filosófico para desfazer os mistos de espaço e duração e, daí, propiciar a formulação do conceito. Por isso, Diferença e Repetição e Lógica do Sentido, são livros-chave na teoria deleuzeana das multiplicidades. Neles, vemos a noção de problema adquirir um alcance ontológico ao mesmo tempo em que o conceito de multiplicidade ganha uma definição isenta de dualismos.

Noção de problema e conceito de multiplicidade

O alcance da relação entre o conceito de multiplicidade e o problema pode ser já apreendido no nível mais geral de sua caracterização terminológica, pois se a multiplicidade é um sistema de diferenças (virtual e atual), o problema equivale ao conjunto de um sistema de diferenças.[20] Como elementos, pode-se afirmar que as diferenças convivem na multiplicidade, mas o problema é o que faz as diferenças coexistirem. Não basta que as diferenças apareçam juntas, é necessário ainda que o único elo de ligação entre elas seja a própria diferença. O elo entre as diferenças é, por conseguinte, um problema.

Nesta perspectiva é que Deleuze irá definir sua posição em face da filosofia do cálculo. De fato, ele transforma o cálculo diferencial em elemento dinâmico de sua filosofia. Isto porque, para Deleuze, o cálculo diferencial deve deixar de ser a expressão matemática das soluções para se tornar o elemento do problema por excelência;[21] sendo esta a derivação mais importante, tendo em vista o argumento dorsal do presente artigo.

Como já observáramos, a atribuição de verdade e falsidade não começa com os casos de solução, mas com a posição do próprio problema. Tal afirmação possui dois sentidos importantes. Em primeiro lugar, cada problema tem a solução que merece de acordo com o caráter de sua posição. Em segundo lugar, e a seu turno, as condições de posição de um problema não desaparecem com a sua solução. Ambas consequências daquela afirmação procuram indicar, então, que os problemas nunca são dados, são sim “objetividades ideais”, isto é, coexistência de diferenças, o que lhes confere um alcance transcendental, isto é, trata-se de um ato do pensamento pelo qual, nas palavras de Deleuze, “o problema ou o sentido, é ao mesmo tempo o lugar de uma verdade originária e a gênese de uma verdade derivada”.[22] Convém, portanto, indagar a Deleuze: de que maneira convivem a origem e a derivação da verdade no problema?

2.15

Problema: universalidade abstrata x singularidade concreta

Tal convivência é possível desde que o condicionamento de um problema não lhe seja exterior. O rompimento dessa cláusula de condicionamento intrínseco ocorre, em primeiro lugar, quando imaginamos que os casos de solução de um problema são dados nas proposições, de maneira que se retroage das proposições para perguntas que lhes correspondem. Assim, haveria tantos problemas quantos seriam as proposições enunciáveis. Essa exterioridade no condicionamento do problema Deleuze denomina deilusão lógica”. Não obstante, essa ilusão lógica ainda poderia ser duplicada por uma “ilusão filosófica”. Esta última perfaz uma exterioridade de condicionamento segundo a qual a forma dos problemas depende da forma da possibilidade das proposições, isto é, os problemas devem ser formulados de acordo a sua resolubilidade variável, dependente de um determinado elemento que pode ter uma feição intrínseca – a lógica proposicional -, porém define um universal, seja ele a opinião do senso comum ou uma opinião científica baseada no cálculo matemático de probabilidades.[23] Em nenhum desses casos, com efeito, o problema define um sentido intrínseco que esteja de acordo com a produção do verdadeiro no pensamento, pois ambas as ilusões caracterizam a recognição da verdade, isto é, uma realimentação entre a solução como possível e o problema como dado.

2.16

Deleuze, justamente, procura reverter essas duas espécies de ilusão indicando que, ao se decalcar os problemas dos casos de solução, o máximo que lhe pode ser conferido é uma generalidade abstrata correspondente à reunião das respostas particulares de cada proposição. Assim, por exemplo, Kant, se por um lado, concebe a Ideia como problemática, por outro, descaracteriza o seu alcance ao submeter a série das hipotéticas (proposições particulares) à série das categóricas (proposições gerais). A fim de dirimir essa superposição entre problema e solução, os problemas devem ser entendidos eles próprios como “ideias”, dando às soluções universalidade.[24] Mas essa universalidade do problema, como não é abstrata, mas formada por relações que, determinando as condições do problema, transformam-no em uma multiplicidade concreta. O universal e o singular encontram-se como um problema que determina uma multiplicidade, de maneira que os casos de solução passam a ser avaliados pela repartição das condições do problema, e não pelo dualismo do falso/verdadeiro, valor de verdade que se transfere ao problema a extensão das soluções (hipotético ou categórico).

Devido a essa caracterização das multiplicidades problemáticas, Deleuze pode afirmar que “elas não são essências simples, mas complexos, multiplicidades de relações e singularidades correspondentes”.[25] Reponhamos, portanto, tendo em vista os esclarecimentos precedentes sobre a noção de problema, a caracterização do conceito de multiplicidade, observando por via de que procedimentos o encontro entre o singular e o universal define uma tipologia das multiplicidades que está isenta do dualismo em que incorreram as tentativas de filósofos e cientistas em definir o conceito de multiplicidade, como assinalamos acima.

Book Imre van Buuren

Book Imre van Buuren

 

Problema: componentes do conceito de multiplicidade

A distribuição diferenças que determinam as condições de um problema, não são ainda a solução, mas a gênese dela. Por isso é necessário distinguir, para o conceito de multiplicidade, três componentes: ligações ideais entre diferenças ou distribuição de singularidades como condições do problema; multiplicidade virtual como determinação dessas condições e “relações atuais” ou multiplicidadade atual como casos de solução.[26] O conceito deleuzeano de multiplicidade somente se estabeleceria, definitivamente, quando as multiplicidades virtual e atual fossem imanentes uma a outra, sendo o princípio dessa imanência uma multiplicidade substantiva, ou seja, as ligações ideais entre diferenças que condicionam uma multiplicidade. A noção de problema é de importância fundamental para esse acabamento do conceito. O importante é, de que forma, no conceito de multiplicidade, esses componentes aparecem juntos.

Um problema é simultaneamente transcendente e imanente em relação aos casos de sua solução. Transcendente, porque, em primeiro lugar, corresponde a um “sistema de ligações ideais”, que define a “instância transcendente”. Imanente, em segundo o lugar, porque essas ligações especificam-se em relações atuais, definindo o “campo de resolubilidade”. Porém, não existe nenhuma semelhança entre esses dois componentes, de maneira que a instância transcendente pudesse decalcar suas ligações das relações do campo de resolubilidade, pois o primeiro componente (distribuição de singularidades), que define o “campo problemático”, vem estabelecer a coexistência entre transcendência e imanência do problema com relação às suas soluções. Sendo assim, quais as consequências da convivência desses três fatores do problema como componentes do conceito de multiplicidade?

Anselm Kiefer

Anselm Kiefer

Problema e solução são unívocos sem que por isso sejam idênticos, semelhantes ou análogos e, justamente devido a esse caráter, a sua convivência corresponde a um conceito de multiplicidade onde não há oposição nem contradição entre o uno e o múltiplo ou entre os dois tipos de multiplicidades (virtual e atual). Um problema, como alerta Deleuze, não desaparece com as soluções. Pelo contrário, os problemas “persistem”, eles “insistem” nelas.[27] Nesse momento, a teoria das multiplicidades volta-se para a tarefa de lembrar que toda a solução que parece ter apaziguado ou elidido um problema que a gerou é uma solução inadequada, mas em contrapartida, não é também uma solução falsa, pois a redistribuição dos pontos singulares de uma multiplicidade pode não apenas oferecer uma solução adequada, como também reativar um problema que nunca deixa de insistir. Recolocar o problema significa livrar-se das ilusões do pensamento e, portanto, como nos diz Deleuze, “reverter as relações ou as repartições supostas do empírico e do transcendental”.[28]

Anselm Kiefer, book

Anselm Kiefer, book

Tal reversão é tarefa do conceito de multiplicidade, a começar pelo par uno-múltiplo. A definição de novas relações entre o empírico e o transcendental, entre o atual e o virtual, é essencial para a filosofia de Deleuze, pois ela preenche uma questão que caracteriza sua originalidade, a saber, com que finalidade um ser uno sairia de si mesmo para diferenciar-se como ser-múltiplo, se ele vai deparar-se com o que ele já era? Essa finalidade somente pode ser exterior a seu princípio ontológico ou ela erige em princípio ontológico alguma coisa que está programada para aparecer em sua exteriorização, para que o ser, enfim, se reencontre. Ao contrário, um ser da multiplicidade interiorizou a diferença, a diferença está no ser, de modo que, no momento em que ele se exterioriza, deseja apenas reproduzir a diferenciação que já produz como princípio ontológico. O ser da multiplicidade, de fato, tem um motivo para sair de si mesmo; é que não precisa comprovar sua unidade original, pois a unidade da diferença no ser já implica que ele não pode permanecer num estado de recolhimento.

Stephanie Devaux

Stephanie Devaux

 

 

Questão ontológica e multiplicidades

Conceito de multiplicidade e questão ontológica

O problema dispõe da prerrogativa de retornar a uma origem que não tem fundamento, pois esse retorno nada mais é que a gênese de uma nova Ideia problemática com seus campos problemáticos e campos de resolubilidade. Contudo, este mesmo aspecto observado do ponto de vista ontológico é tomado como uma repetição que procede da diferença, porque a origem da Ideia é sempre uma aposta radical na diferença.[29] Essa repetição que está nos problemas e em suas soluções é, segundo Deleuze, uma questão ontológica pela qual o conceito de multiplicidade adquire estatuto substantivo e não somente sistêmico.

2.21

Naturalmente, essa ontologia da diferença e da questão estabelece uma aliança com a filosofia de Heidegger. Mas é preciso indicar em que sentido Deleuze traz para o interior de seu pensamento a virtualidade de uma filosofia aliada, sem por isso transformar-se em um heideggeriano ou, mais precisamente, sem tornar-se um adepto da ontologia da diferença de Heidegger. Verifiquemos, portanto, nessa aliança, quais os pontos de contato e quais os afastamentos. Tal aliança com Heidegger seria aprofundada mais tarde quando Deleuze demonstra o que Foucault deve a Heidegger e em que eles se separam. A bem dizer, na filosofia heideggeriana, a questão do ser é entendida como a dobra entre o fundamento ontológico e a intencionalidade fundada no fenômeno. Foucault, por seu turno, observa a dobra, não como operação fundante entre o ser e o fenônemo, mas como o elemento que somente os relaciona na medida em que estabelece regimes diferenciais de parte a parte, isto é, numa relação de pressuposição recíproca sem fundamento.[30]

2.22

Como em Heidegger, o ser é o “diferenciante da diferença”, coextensivo portanto à questão que se desdobra em problemas ou, em outras palavras, diz-se que ao “ser da questão” corresponde a “diferença ontológica”.[31] Mas, segundo a crítica que Deleuze faz a respeito desse tema na filosofia heideggeriana, a associação entre questão e repetição é aí tomada como ciclo ontológico, isto é, a origem a que retorna a questão ontológica é o reencontro com o que já estava no começo, quer dizer, a diferença do ser começa com o Nada. Deleuze nega que o que se repete na questão é o Nada, pois o ser não só se diferencia como provém da diferença, e justamente por isso ele é multiplicidade substantiva. A questão do ser não pode reaparecer inalterada no fim, como testemunhando de um Nada que sempre retorna ou de uma instância pré-ontológica que fugiria ao conceito. Por isso, reafirma Deleuze, a questão não devolve o não-ser, mas reativa e relança o ?-ser da multiplicidade.[32] Assim, a ontologia heideggeriana estabelece ligação entre um não-ser originário e as diferenças que são como suas apresentações. Pelo contrário, embora reconheça que Heidegger, juntamente com Foucault, foi o filósofo que mais teria renovado a imagem do pensamento, para Deleuze, trata-se de apresentar as diferenças como plenitude ontológica.[33]

2.23

A ontologia é por excelência um tema deleuzeano, na medida em que a teoria das multiplicidades impõe questões sobre a natureza do ser. No entanto, as questões ontológicas deleuzeanas nada têm a ver com o retorno heideggeriano à ontologia, mesmo porque elas serão definidas de modo “imanente” e “materialista”, sem qualquer concessão ao desvelar-se ocultando-se do ser heideggeriano.

Afirmação do ser como diferença: multiplicidade substantiva e sistema-multiplicidade

A relação entre a multiplicidade substantiva e o sistema-multiplicidade indica, primeiramente, que o conceito de multiplicidade é instaurado por uma questão que é uma afirmação do ser como diferença e que, portanto, expulsa a negação (não-ser) como falsa questão ontológica. Deste ponto de vista, então, as formas da negação – o negativo – que se desenvolvem no nível do problema, no sistema-multiplicidade, são os representantes das ilusões natural e filosófica – “corpo objetivo do falso problema” -, que alçadas daí ao nível ontológico desnaturam o ser da questão e o colocam sob a potência do idêntico e da negação. Pois a ilusão é sempre uma inversão de perspectiva que não só envolve o problema como contamina a questão.

Esta caracterização do negativo como ilusão precisa ser demonstrada por uma crítica que observe o sistema de diferenÇação/diferenCiação, envolvendo as diferenças da Ideia problemática, de maneira que os representantes do negativo apareçam como efeitos da multiplicidade ou como sombras do problema. Quer dizer, o conceito de multiplicidade exige, pelo seu comprometimento ontológico, que se demonstre a gênese do negativo, a partir da afirmação, em suas dimensões sistêmicas.

O negativo ou representação, como teremos oportunidade de observar à frente, está do lado da afirmação sempre que em cada caso de solução para um determinado problema, ou seja, na proposição que o atualiza, persista o problemático como alternativa que constituiria outra proposição em um caso de atualização diverso. Sendo assim, o negativo não só confirma a diferença como faz valer sua afirmação ontológica.[34]

Mesmo a representação do idêntico, da analogia e da semelhança, deste ponto de vista, são entendidos como ilusões que passam a caracterizar o princípio ontológico desde que, no nível sistêmico, as formas do negativo (limitação e oposição) são tomadas como configurações do problema, e não como seus efeitos ou sombras na produção da diferença no problema. A teoria das multiplicidades de Deleuze possui elementos – a saber, uma ontologia e o sistema de diferenças que ela envolve – definidos com tal rigor que não são excluídos nem mesmo a função do idêntico e a gênese do negativo. A refutação leviana da filosofia da diferença, na qual se insere a teoria das multiplicidades, ocorre sempre que a diferença é pensada, não como elemento genético, mas como o inverso da ordem e da semelhança que o idêntico e a negação promoveriam ao serem alçados a princípios do pensamento.

Martin Buber y Martin Heidegger

Martin Buber y Martin Heidegger

Mas, se a caracterização da multiplicidade substantiva acarreta toda uma série de consequências relacionadas com a convivência desta em meio ao sistema-multiplicidade (atual-virtual), Deleuze ainda nos indicaria como tornar ainda mais rigorosa a definição do conceito de multiplicidade através de um cálculo dos problemas, ao invés de um cálculo ou lógica proposicional que somente valeria para os campos de resolubilidade de um problema. A aliança com a filosofia da diferença da qual ele extrai uma ontologia da questão para sua teoria das multiplicidades, vê-se agora duplicada por uma aliança matemático-filosófica com o cálculo diferencial, a partir do qual dá-se conta do elemento dos problemas e, desta maneira, pode garantir ao sistema-multiplicidade o alcance exigido pela multiplicidade substantiva (questão ontológica).

Cálculo diferencial e multiplicidades

Tratamento matemático da diferença

Dizíamos acima que o encontro de Deleuze com o cálculo diferencial é uma aliança matemático-filosófica, porque ele inicia-se com o tratamento da diferença na filosofia de Hegel e de Leibniz. Em linhas gerais, o objetivo dessa discussão é mostrar que, apesar da diversidade entre esses autores ser relevante, eles não conseguiram estabelecer um conceito de diferença, no máximo eles lograram inscrever a diferença em uma operação ainda concebida sob o signo da identidade. Por isso não é justo dizer, afirma Deleuze, que Hegel teria ido mais longe que Leibniz. Pelo contrário, Leibniz dá um tratamento mais profundo à diferença quando, considerando-a sob a marca do negativo, realça seu aspecto limitativo; ao passo que Hegel a entende como pura negatividade, isto é, como oposição levada às últimas consequências na forma da contradição.[35]

Máquina de cálculo de Leibniz

Máquina de cálculo de Leibniz

Ora, isto equivale a dizer que, em Hegel, a diferença é definida como contradição real a um Todo formado por tudo aquilo que uma coisa não é, incluindo a contradição de si mesma. Já, em Leibniz, a diferença se define pelos casos de coexistência de mundos possíveis como totalidade. No primeiro caso, a diferença vem com “a posição de um todo da realidade”, isto é, ela é acompanhada pelo “infinitamente grande” cuja determinação é completa. No segundo caso, o de Leibniz, a determinação completa somente chega quando o ponto de partida é a diferença do “infinitamente pequeno”, quando o limite com o infinito se faz na base de um campo dos problemas entendido como campo dos possíveis que circunscreve as realizações. Assim, a repartição do real em partes infinitas, o que como vimos, Deleuze denomina de distribuição da diferença que condiciona um problema, corresponde ao encontro com a diferença dessas partes no limite do possível.

Leibniz

Leibniz

As consequências desses modos diversos de tratar a diferença não são pequenas, principalmente porque elas se refletiram sobre a noção de múltiplo nessas filosofias. Isso também esclarece, por outro lado, porque estas filosofias não dispõem de um conceito de multiplicidade autônomo. Acontece que, como nos indica Deleuze, a autoposição do todo hegeliano não permite que seu método dialético receba um tratamento matemático, ao passo que a determinação pela diferença em Leibniz exige imediatamente o cálculo diferencial.[36] Vejamos o porquê deste afastamento quanto ao comprometimento da filosofia com o cálculo.

É por via de Leibniz que Deleuze observa no cálculo um catalisador de seu conceito de multiplicidade, muito embora considere que esta aliança filosófica com Leibniz seja insuficiente e deva se desdobrar em uma aliança com a matemática pós-leibniziana. É que o cálculo diferencial leibniziano ainda está imantado pelo idêntico e pelo negativo e, portanto, ainda não fornece um cálculo de problemas acabado. Por isso, Deleuze procurará nas matemáticas o elemento requerido para a teoria das multiplicidades e, ao mesmo tempo, fará a crítica filosófica da matemática, na medida em que esses novos aliados ainda mantenham em suas teorias o legado do tratamento da diferença de acordo com o cálculo leibniziano. Em suma, o cálculo é um componente natural da teoria das multiplicidades, mas ele precisa ser ainda adequado ao sistema de diferenças (multiplicidades) e trabalhar a diferença problemática.

2.27

Cálculo diferencial: o abismo do infinitamente grande e do infinitamente pequeno

Com efeito, ao se observar mais este passo na constituição do conceito deleuzeano de multiplicidade, podemos afirmar que o cálculo diferencial está para a diferenÇação assim como a integração está para a diferenCiação. O cálculo diferencial diz respeito aos componentes da multiplicidade virtual, a saber, ligações ideais, relações diferenciais e singularidades; enquanto a integração diz respeito à existência atual dessa multiplicidade, campo de resolubilidade. Por isso Deleuze se sente capacitado a concluir que “um objeto pode ser completamente determinado … sem dispor por isso de sua integridade que, somente ela, constitui a existência atual do objeto”.[37] Quer dizer, o cálculo faz parte dos problemas assim como a integração dos casos de solução.[38] Vejamos tal situação expressa em noções emprestadas à matemática.

A derivada de “x”(dx) é a diferença; ela não é nada com relação a “x” e por isso não exprime um não-A, termo de oposição pertencente a uma contradição. A diferença, então, é uma positividade da Ideia problemática que se opõe à negatividade. Contudo, o fato de dx não ser nada com relação a “x” não estabelece entre eles uma diferença de grau, uma diferença escalar, digamos, como se a derivada indicasse a existência de infinitesimais que seriam os átomos de “x”. A propósito, a dificuldade encontrada em Leibniz, segundo Deleuze, é que ele identifica a derivada com o limite do existente, como se ela fosse restrita ao campo de indivíduos possíveis de um mundo.[39] Pelo contrário, os valores numéricos de uma função (dy/dx) encontram seus limites nas relações diferenciais entre seus elementos e, como tal, o limite não corresponde a um valor que possua existência atual (numérica), pois sua realidade é puramente virtual (pré-individual), nem a realidade virtual é limitada por um campo de possíveis que ordena as relações diferenciais.

De outra maneira, pode-se dizer que a diferença sendo a positividade do problema, será tomada como negação apenas porque ela implica limite. A diferença não é, por conseguinte, uma oposição (não-A) proposicional que se exprimiria em uma contradição real, como desejava a dialética. Segundo Deleuze, a “contradição encontra a Ideia do lado da maior diferença, mas a diferencial (Leibniz) se arrisca a cair no abismo do infinitamente pequeno”.[40] Por isso é preciso escapar ao dualismo do infinitamente grande (geral) e do infinitamente pequeno (particular), e a maneira de fazê-lo seria equiparando-se a determinação do universal à determinação do singular, como indicamos acima ao indicarmos que tipo de relação há entre o campo problemático e o campo de resolubilidade de um problema. Não obstante, como essa equiparação poderia ser demonstrada lançando-se mão dos recursos do cálculo?

2.28

 

Conceito de multiplicidade e cálculo diferencial: o universal como função do singular

A indeterminabilidade inicial dos elementos diferenciais (dx,dy) com relação a “x” e “y”, configura por si só um “princípio de determinabilidade” (universalidade), isto é, existem ligações ideais entre as vizinhanças das diferenças, as quais, tomadas em relações diferenciais, por exemplo, dy/dx, como o “realmente determinável”, correspondem a um “princípio de determinação recíproca”. Há, contudo, ainda, o “efetivamente determinado” que corresponde a um “princípio de determinação completa”, ou seja, os valores de dy/dx como distribuição de singularidades.[41] Assim, o cálculo indica todas as fases de determinação dos componentes do conceito de multiplicidade, indicando que eles obedecem a regimes de realidade onde o universal é função do singular.

O regime do problema ou da Ideia (diferenÇação) é justamente uma das partes do sistema-multiplicidade formado por ligações ideais e relações diferenciais. Assim, os problemas podem ser resolvidos pelo cálculo diferencial. Deleuze alerta, porém, que é necessário ainda que a solução dos problemas (diferenCiação), ou seja, que a distribuição ou especificação/integração das singularidades completamente determinadas mantenha o elemento do problema na outra parte do sistema-multiplicidade. Pois, se o cálculo não se rende a uma interpretação infinitista, como acontece na matemática tradicional, não deve render-se igualmente à interpretação finitista da matemática moderna que faz do problema um simples cálculo auxiliar do desvio que trata da existência espaço-temporal, mas desaparece dos casos de solução.

2.29

Assim, se a distribuição de singularidades testemunha a imanência do problema com relação à solução, a especificação dessas singularidades deve testemunhar a transcendência do problema como instância organizadora dos casos de solução; o que não ocorre nem na versão infinitista nem na versão finitista do cálculo. Com efeito, a diferença entre cálculo diferencial e outros instrumentos matemáticos, como a geometria analítica e a teoria dos conjuntos, apaga-se desde que estas últimas, tanto quanto aquele, podem ser adequados a uma teoria dos problemas e de seus campos de resolubilidade. Quer dizer, o cálculo, assim como os outros instrumentos, não significa uma matematização do pensamento, mas um tratamento da Ideia como problema e como casos de solução de diversas ordens (ciências).[42]

A aliança que Deleuze estabelece com a matemática, portanto, não pretende que o cálculo ensine a pensar. O cálculo, como mais um dos fatores que dão consequência à teoria das multiplicidades, tem duas faces. Em primeiro lugar, ele dá forma a uma “nova dialética” baseada na transcendência/imanência do par problema-solução, isto é, ele dá conta da diferença na multiplicidade; na obra posterior de Deleuze e Guattari, o sucedâneo dessa nova dialética, que então teria sua face matemática menos visível, diz respeito à luta contra a axiomatização. Em segundo lugar, o cálculo possui um alcance epistemológico, na medida em que demonstra a gênese dos domínios científicos como diferentes multiplicidades, isto é, como casos de solução que mantêm o potencial do problema; igualmente, na fase posterior, da obra de Deleuze, quando de sua colaboração com Guattari, esse aspecto seria traduzido em termos da convivência entre dois modelos de ciência: o maior e o menor. De fato, a ideia de epistemologia em Deleuze não se aplica à unificação dos procedimentos do conhecimento; pelo contrário, somente enquanto cada ciência se volta para seu campo de resolubilidade próprio e desenvolve um cálculo de problemas que lhe seja afeito, se tornam possíveis as comunicações de uma “multiplicidade relacional” no elemento do problema. O que significa dizer que, uma disciplina ao atingir a intensificação problemática que lhe é própria, está simultaneamente se abrindo ao elemento das relações transdisciplinares, nas quais a problematização das multiplicidades põe em contato filosofia e ciência, filosofia e arte, arte e ciência.

 2.30

 

Considerações Finais

Com a formação do conceito de multiplicidade através das noções de problema/solução, questão ontológica e de cálculo diferencial, Deleuze, na verdade, determina um campo filosófico que já estava delineado antes mesmo da formulação desse conceito em sua filosofia. Esse campo pode ser adequadamente denominado de “pensamento pluralista”. A partir daí é que o conceito pode adquirir uma definição própria. Aliás, vimos que este conceito está munido de uma instância genética a partir da qual nascem as multiplicidades, seja como casos de solução (multiplicidade atual), seja como campos problemáticos (multiplicidade virtual). Deleuze, porém, ainda precisaria nos contar como as coisas podem ser tomadas imediatamente como multiplicidades e de que maneira um pensamento das multiplicidades as deve percorrer, como podemos navegá-las. Como, enfim, não trairemos o conceito de multiplicidade e nos tornaremos aptos a tratar a realidade, seja ela qual for, como multiplicidade? Trata-se, portanto, do alcance empírico da teoria das multiplicidades, pois não se trata tão somente de criar um conceito de multiplicidade, mas de descobrir multiplicidades e explorá-las.

2.31

 

 

Bibliografia

  1. Deleuze, Gilles, Le Bergsonisme, Paris, PUF, 1966Deleuze, Gilles, Différence et Répétition, Paris, PUF, 1968.
  2. Deleuze, Gilles, Logique du Sens, Paris, Minuit, 1969.
  3. Deleuze, Gilles, Cinéma 2: L’Image-Temps, Paris, Minuit, 1985.
  4. Deleuze, Gilles, Foucault, Paris, Minuit, 1986.
  5. Deleuze, Gilles, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990.
  6. Deleuze, Gilles, Critique et Clinique, Paris, Minuit, 1993.
  7. Deleuze, Gilles, “Prefácio para a Edição Italiana”, in Deleuze, Gilles, Guattari, Félix, Mil Platôs, Rio de Janeiro, editora 34, 1995, p. 7-9.
  8. Deleuze, Gilles, “L’Actuel et Le Virtuel” (Annexe: Chapitre V), in Deleuze, Giiles et Parnet,Claire, Dialogues, Flammarion, 1996.
  9. Deleuze, Gilles, Guattari, Félix, Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980.
  10. Deleuze, Gilles, Guattari, Félix, Qu’Est-Ce Que La Philosophie?, Paris, Minuit, 1991.
  11. Duffy, Simon (ed.), Virtual Mathematics: the logic of difference, Bolton, Clinamen Press, 2006.
  12. Orlandi, Luiz. B.L., Do Enunciado em Foucault à Teoria da Multiplicidade em Deleuze, in Ítalo TRONCA (org.), Foucault Vivo, Pontes, 1987.

Notas

[1] Parte do presente artigo foi publicado com o título “A origem do conceito de multiplicidade segundo Deleuze em Trans/Form/Ação, UNESP, Marília, impreso, v.19, 1996, pp.151 – 161.
[2] Gilles Deleuze, Félix Guattari, Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980, pp. 45-46, 602-605; Gilles Deleuze, Félix Guattari, Qu’Est-Ce Que La Philosophie?, Paris, Minuit, 1991, p. 144.
[3] Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990, p. 201; y Gilles Deleuze “L’Actuel et Le Virtuel” (Annexe: Chapitre V), in Gilles Deleuze et Claire Parnet, Dialogues, Flammarion, 1996, p. 179.
[4] Luiz. B. L. Orlandi, Do Enunciado em Foucault à Teoria da Multiplicidade em Deleuze, in Ítalo Tronca (org.), Foucault Vivo, Pontes, 1987, p. 39-42.
[5] Gilles Deleuze, “Prefácio para a Edição Italiana”, em Gilles Deleuze, Félix Guattari, Mil Platôs, Rio de Janeiro, editora 34, 1995, p. 8; y Deleuze, Gilles, Différence et Répétition, Paris, PUF, 1968, pp. 235-238, 315.
[6] Gilles Deleuze, “Prefácio para a Edição Italiana”, em Gilles Deleuze, Félix Guattari, Mil Platôs, Rio de Janeiro, editora 34, 1995, p. 9.
[7] Ibidem.
[8] Gilles Deleuze, Le Bergsonisme, Paris, PUF, 1966, p. 3
[9] Ibid., p. 8.
[10] Ibid., p. 23-24.
[11] Ibid., p. 29-30.
[12] Ibid., p. 31-33.
[13] Gilles Deleuze, Félix, Guattari, Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980, p. 45-46; Gilles Deleuze, Foucault, Paris, Minuit, 1986, p. 23, 124 n. 46; y Gilles Deleuze Pourparlers, Paris, Minuit, 1990, p. 130.
[14] Gilles Deleuze, Foucault, Paris, Minuit, 1986, p. 22.
[15] Gilles Deleuze, Le Bergsonisme, Paris, PUF, 1966, p. 38.
[16] Ibid., p. 41-42.
[17] Gilles Deleuze, Félix Guattari, Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980, pp. 258, 451-452, 484-485, 605, 610-611; Gilles Deleuze, Cinéma 2: L’Image-Temps, Paris, Minuit, 1985, pp. 13, 16-17, 26, 167-169; Gilles Deleuze, Critique et Clinique, Paris, Minuit, 1993, pp. 176-177.
[18] Gilles Deleuze, Le Bergsonisme, Paris, PUF, 1966, p. 25, 44.
[19] Ibid., p. 103-105.
[20] Gilles Deleuze, Différence et Répétition, Paris, PUF, 1968, pp. 161-162.
[21] Ibid., p. 235.
[22] Ibid., p. 207.
[23] Ibid., p. 207-210; Gilles Deleuze, Logique du Sens, Paris, Minuit, 1969, p. 147.
[24] Gilles Deleuze, Différence et Répétition, Paris, PUF, 1968, p. 210-211.
[25] Ibid., p. 212.
[26] Gilles Deleuze, Logique du Sens, Paris, Minuit, 1969, p. 144-145.
[27] Gilles Deleuze, Différence et Répétition, Paris, PUF, 1968, p. 212.
[28] Ibid., p. 216.
[29] Ibid., p. 258-260.
[30] Gilles Deleuze, Foucault, Paris, Minuit, 1986, p. 115-120.
[31] Gilles Deleuze, Différence et Répétition, Paris, PUF, 1968, pp. 90-91.
[32] Ibid., p. 169.
[33] Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990, p. 131.
[34] Gilles Deleuze, Différence et Répétition, Paris, PUF, 1968, p. 261-262, 266, 269.
[35] Ibid., p. 70-71.
[36] Ibid., p. 65.
[37] Gilles Deleuze, Différence et Répétition, Paris, PUF, 1968, p. 67.
[38] Gilles Deleuze, Logique du Sens, Paris, Minuit, 1969, p. 69-70, 127 n.4.
[39] Gilles Deleuze, Différence et Répétition, Paris, PUF, 1968, p. 223.
[40] Ibid., p. 221.
[41] Ibid., p. 222.
[42] Ibid., pp. 229-235.

Leave a Reply