BRUNO TAMBORENO, “LITOGRAFIAS EM PROCESSO” (2018)
Resumo
As medidas de isolamento físico, necessárias para conter a pandemia do novo coronavírus, provocam possíveis mudanças de comportamentos, sensibilidades, formas de relacionamento e comunicação, sugerindo a ideia de “um antes e um depois” em nosso modo de viver. Neste cenário de isolamento, observa-se, por exemplo, uma intensificação dos contatos sociais virtuais mediados por tecnologias digitais, simbolizando a desmaterialização dos vínculos marcada pela ausência presencial dos corpos. Com base no diagnóstico de Franco Berardi sobre a “mutação antropológica” dos últimos anos, este texto traz para discussão os efeitos sociais da nossa presença constante nas telas e a ética decorrente dos estímulos virtuais intensificados, especialmente neste período de quarentena.
Palavras-chave: covid-19, mutação antropológica, desmaterialização dos vínculos sociais.
Abstract
The measures of physical isolation, necessary to contain the pandemic of the new coronavirus, cause possible changes in behaviors, sensitivities, forms of relationship and communication, suggesting the idea of “a before and an after” in our way of life. In this isolation scenario, for example, an intensification of virtual social contacts mediated by digital technologies is observed, symbolizing the dematerialization of bonds, marked by the non-face-to-face relationship of bodies. Based on Franco Berardi’s diagnosis about the “anthropological mutation” of recent years, this text brings to discussion the social effects of our constant presence on screens and the ethics that arise from the intensification of virtual stimuli, especially in this quarantine period.
Keywords: covid-19, anthropological mutation, dematerialization of social bonds.
Em sua análise sobre as relações de interdependência entre a humanidade e os cogumelos, Anna Tsing[1] afirma que os “fungos são espécies indicadoras da condição humana”. O protagonismo planetário que ganhou o COVID-19 neste milênio leva-nos a incluir os vírus dentre estas entidades outras-que-não-humanas de cuja relação depende nossa vida na Terra. Além de colocar em xeque as premissas do necroliberalismo[2], com esgotamento das pessoas e dos recursos ambientais, a pandemia do novo coronavírus questiona nossa suposta hegemonia perante outras espécies e dá provas de que a domesticação não é agência exclusiva dos seres humanos. Esse vírus que saltou a barreira das espécies, por termos destruído os refúgios necessários à biodiversidade, é “excelente para nos dar metáforas”[3], pois nos tornou vítimas da forma como vivemos neste planeta[4]. Frente à ameaça do desconhecido indomável que desafia a ciência e exaure os profissionais de saúde, encontramo-nos enjaulados e, como diz Berardi,[5] resignados a uma revolta passiva.
Diante deste drama social de grande magnitude, assistimos, impotentes, às mudanças profundas de comportamentos, sensibilidades, formas de relacionamento e comunicação, sugerindo a ideia de “um antes e um depois” em nosso modo de viver. É nestes períodos de liminaridade, próprios de transições radicais, como identificou Victor Turner[6], que o sentimento de fragilidade e aflição dos indivíduos cria as condições para o surgimento de communitas. Diante das medidas de isolamento físico necessárias para conter a pandemia, surgem formas de resistência à tal “paralisia relacional”[7], configuradas numa grande quantidade de produções criativas feitas em casa e difundidas virtualmente. São transmissões em streamings, lives, podcast, leituras de poemas, aulas de dança, de yoga, apresentações musicais e teatrais, festivais, videoaulas, performances, reuniões coletivas, atendimentos psicológicos e terapêuticos, dicas de sobrevivência física, econômica e social, sem falar nos memes que figuram entre as produções criativas do momento. A oferta de conteúdos culturais, artísticos e científicos via redes sociais cumpre um papel essencial durante a quarentena e, para muitos, tem sido inclusive uma alternativa financeira diante da crise epidêmica.
No entanto, os realizadores têm se deparado com situações relativamente novas, a respeito do método e do formato com que os materiais são exibidos, uma vez que as produções culturais e artísticas virtuais não têm, digamos, o mesmo envolvimento “afectivo” sensorial que as oferecidas presencialmente. Uma imagem boa para pensar, recentemente divulgada nas mídias, é a da performance do pastor pregando em sua igreja para um auditório vazio, transmitindo o culto pela Internet. Uma cena que provoca um choque perceptivo ao salientar o vazio dos espaços e simbolizar, assim, a desmaterialização dos vínculos em curso.
Nossa intenção aqui é trazer para discussão os efeitos sociais da nossa constante presença nas telas e a ideia quase naturalizada de que ficar em casa é ficar online. A quarentena exige mudanças na maneira de reorganizar nossa convivência e nossa capacidade produtiva, em meio ao receio constante de que a vida possa nos escapar. Num momento em que as fragilidades são pungentes, é oportuno pensar nas formas de estar-junto que se configuram em meio à pandemia, bem como na maneira de lidarmos com as situações adversas (maneiras de “dar um jeito”) que se nos apresentam. O isolamento físico das últimas semanas (traduzido no vocabulário corrente como “isolamento social”) parece ter gerado, contrariamente à atitude de recolhimento solitário, uma intensificação dos contatos sociais virtuais e um aumento na demanda de trabalho feito em casa, facilitado por uma série de aplicativos novos que se transformam também de forma veloz. A casa e a rua[8] como oposição relacional envolvendo conotações morais, culturais, de gênero, política e religião, encontra-se abalada, poluindo fronteiras até então bem demarcadas entre os universos privado e público, acirrando ainda mais as desigualdades de gênero e violência contra a mulher[9]. Essas mudanças poderiam ser comparadas ao que o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini chamou, na obra Scritti corsari (1975), de “mutação antropológica”,[10] decorrente do surgimento da sociedade de consumo no capitalismo pós-guerra, sobretudo no contexto italiano. A mutação coletiva incidia não apenas na reorganização disciplinar das sociedades da época, como também nas formas de representá-las (a exemplo do cinema neorrealista), e no organismo físico, ou seja, no corpo.
Ailton Krenak, uma das principais lideranças indígenas do Brasil, que está dentre os maiores pensadores brasileiros da atualidade, fez recentemente um pronunciamento em vídeo sobre “como adiar o fim do mundo”[11]. Ele, como descendente de povos nativos que já viveram a experiência da dizimação por epidemias transmitidas pelos colonizadores (varíola, sarampo, gripe, peste bubônica, malária, difteria, tifo, cólera, etc.), compartilha suas preocupações com as formas de captura da vida potencializadas pela atualização constante das novas tecnologias, procurando evidenciar que sua presença e comunicação em vídeo era também um paradoxo. Ainda que as redes virtuais nos possibilitem um tanto de interação e alento, elas também nos fazem imaginar, segundo Krenak, relacionamentos que não existem. Ele diz o seguinte:
“Eu não sei como vamos fazer uma experiência de afeto mediado por uma tela. É como aquele netinho que fala com a vovó e dá um beijo no celular. Eu não sei o quanto essa mímica é saudável… e já está acontecendo isso. Domingo de manhã as mamães ligam o celular, botam os netinhos pra ver a vovozinha que está em qualquer lugar no mundo e mandam um beijinho na tela. Nós estamos substituindo o beijinho na face pelo beijinho no Face, na tela. O que vai acontecer com a gente? Quem sabe no futuro nós não iremos mais suportar o cheiro um do outro, a transpiração um do outro, o calor um do outro? A gente não pode mais ficar destreinado desses afetos, pois são eles que lembram a cada um de nós que estamos vivos”.[12]
Quem dedicou atenção à “mutação antropológica” dos últimos 30 anos foi o filósofo e ativista italiano Franco “Bifo” Berardi, pelo menos em duas obras traduzidas para o espanhol, a saber “Fenomenología del fin” (2017) e “Futurabilidad” (2019). Pode-se dizer que ambas tematizam, de maneira geral, a extinção do humano, tal como o concebemos atualmente. Não se trata de uma extinção biológica ou sociológica, mas algo profundo que acontece no âmbito das percepções e das sensibilidades emocionais. Quem tem mais de trinta anos já deve ter percebido que nossa capacidade cognitiva se alterou profundamente com a dependência que estabelecemos com os smarthfones, por exemplo. A mutação a que se refere Bifo tem a ver com a passagem do modelo conjuntivo de sociabilidade para o modelo conectivo, a partir da implementação das tecnologias informatizadas na vida cotidiana. Ou seja, ele quer entender a captura da linguagem humana ambivalente pela rede digital, “o vírus-linguagem”, como ele mesmo diz[13].
BRUNO TAMBORENO, “CELULAR” (2019)
Vamos entender melhor esse argumento. A lógica conjuntiva tem a ver, segundo o autor, com o envolvimento presencial dos corpos e a dimensão interpretativa ambígua que o caracteriza. É uma conjunção entre corpos que não depende de uma relação discursiva previamente codificada. Aí os signos são ambivalentes e não têm significados para além do que é dado na própria relação presencial. O sentido depende, portanto, de um contexto relacional e de uma atitude empática por parte dos sujeitos. Aqui o desejo, a empatia, a alteridade, a memória, a atenção, a intencionalidade, o toque, os abraços, os cheiros jogam um papel importante na decifração dos signos, pois os corpos conjuntivos não estão pré-formatados, são corpos eróticos vivos.
Já na lógica conectiva é diferente. Os corpos conectivos confluem conforme o código algorítmico, no qual a interpretação do sentido está previamente formatada. Os signos aí carecem de ambiguidade, pois envolvem a relação entre humanos e não humanos (máquinas), e sua interpretação depende de um sistema informatizado ou de uma fórmula para fixar os significados da relação (por exemplo, “não é não”) e assim poder se sustentar socialmente. Sem a fórmula, os sujeitos se mostram incapazes de ler e lidar com as situações intersubjetivas complexas, o que leva à intolerância e, por vezes, à violência. Trata-se de um formato tecno-virtual de relação (“hipertrofia digital”), cuja consequência maior é a sensação de impotência (depressão, ansiedade e pânico) aliada à automatização do comportamento social, dado que as relações passam a ser mediadas pelo “organismo bioinformático supra-individual”.[14]
Bifo chega a dizer que esse comportamento baseado na virtualidade adquire características virais ou típicas de um enxame. No lugar do organismo sensível conjuntivo e de engajamento corporal, temos agora o autômato que age conforme a rede técnica da governança desterritorializada. Bifo não nega a importância da rede tecnológica de informação conectiva e seu potencial para as transformações sociais, sobretudo aquelas agenciadas por movimentos de ativismo via rede social, anunciadas por Guattari. Seu foco recai sobre as consequências emocionais e perceptivas decorrentes da passagem do modelo conjuntivo para o modelo conectivo funcional. Numa entrevista publicada em outubro de 2018 Bifo diz: “La palabra ha sido despegada del cuerpo. Hablamos mucho, pero los cuerpos no se encuentran. Y cuando los cuerpos se encuentran no saben hablar. Ese es el problema de la relación erótica, pero también el problema de la relación política y de la relación social”.[15]
Vírus virtual / Vírus biológico
Em época de pandemia e enfermidade ética, como fazer para que a palavra e o gesto criativo voltem a ter corpo, sendo que esse corpo está em condições fragilizadas? Não se trata, evidentemente, de negar ou evitar as virtualidades que nos habitam, algo impossível, e sim considerar que o mundo virtual altera a noção do que significa viver-junto. Desse modo, é importante pensar na ética que se desenha com a presença sugestiva dos estímulos virtuais intensificados, sobretudo neste período de quarentena. É possível que a desmaterialização dos vínculos (e do corpo) provocada pelo distanciamento social da quarentena crie formas de solidariedade realmente efetivas? Que formas seriam essas e de que modo elas poderiam contribuir positivamente para o sustento da vida, em seu sentido ecológico, econômico, político, social e emocional, diante e depois da catástrofe epidêmica?
Não almejamos respostas fáceis e soluções imediatas a estas reflexões, dado que nossa forma de produção, inclusive intelectual, é em grande parte responsável pela situação de esgotamento a que chegamos. Preferimos buscar pistas na capacidade de resiliência das comunidades de aflição que brotaram da vulnerabilidade que nos religa em meio à condição liminar vivida na atualidade. Afinal, quantas epidemias serão necessárias para que repensemos nosso modo de vida, o meio ambiente, a condição humana, os regimes políticos, nossos vínculos e afetos? Para começar, talvez devêssemos levar a sério e ao extremo a ideia radical segundo a qual nossa capacidade de responder à crise passa, primeiramente, pelo restabelecimento das potências “afectivas” do corpo.
Referências
- Mbembe, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.
- Berardi, Franco. Fenomenología del fin: sensibilidad y mutación conectiva. Traducción de Alejandra López Gabrielidis. Colección Futuros Próximos. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Caja Negra, 2017.
- Futurabilidad: la era de la impotencia y el horizonte de posibilidad. Traducción de Hugo Salas. Colección Futuros Próximos. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Caja Negra, 2019.
- Chronicles of the psycho-deflation. Nero editions, 17 march, 2020. Disponível em https://www.neroeditions.com/chronicles-of-the-psycho-deflation/. Acesso em 10, abril, 2020.
- Brum, Eliane. O vírus somos nós (ou uma parte de nós). El País, Brasil, 31/03/2020. Coluna Opinião. Disponível em: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-25/o-virus-somos-nos-ou-uma-parte-de-nos.html. Acesso em: 10, abril, 2020.
- DaMatta, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
- Haraway, Donna. Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes. ClimaCom, ano 3, n. 5, “Vulnerabilidade”, 2016. Disponível em: http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/antropoceno-capitaloceno-plantationoceno-chthuluceno-fazendo-parentes/ . Acesso em: 10, abril, 2020.
- Pasolini, Pier Paolo. Scritti corsari. Milán, Garzanti, 2009.
- Tsing, Anna. Margens indomáveis: cogumelos como espécies companheiras. Tradução Pedro Castelo Branco Silveira. Ilha – Revista de Antropologia, 17 (1), 2015, p. 177-201. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2015v17n1p177/30606. Acesso em: 10 abril 2020.
- Turner, Victor. Dramas, campos e metáforas: a ação simbólica na sociedade humana. Niterói: UFF, 2008.
Notas
[1] Anna Tsing, Margens indomáveis: cogumelos como espécies companheiras, ed., cit., p. 185.
[2] Achille Mbembe, Necropolítica, ed., cit.
[3] Donna Haraway, Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fazendo parentes, ed., cit.
[4] Eliane Brum, O vírus somos nós (ou uma parte de nós), ed., cit.
[5] Franco “Bifo” Berardi, Chronicles of the psycho-deflation, ed., cit.
[6] Victor Turner, Dramas, campos e metáforas: a ação simbólica na sociedade humana, ed., cit.
[7] Franco “Bifo” Berardi, Chronicles of the psycho-deflation, ed., cit
[8] Roberto DaMatta, A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil, ed., cit.
[9] A esse respeito, ver entrevista da antropóloga Débora Diniz concedida a Úrsula Passos na Folha de São Paulo, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/mundo-pos-pandemia-tera-valores-feministas-no-vocabulario-comum-diz-antropologa-debora-diniz.shtml
[10] Pier Paolo Pasolini, Scritti corsari, ed., cit.
[11] Link para o vídeo de Ailton Krenak: https://www.youtube.com/watch?v=4NLcCm9bGrs.
[12] Idem.
[13] Franco “Bifo” Berardi, Futurabilidad: la era de la impotencia y el horizonte de posibilidad, ed., cit.
[14] Ibidem, p. 120.
[15]Entrevista de Bifo concedida a Amador Fernández-Savater disponível em: https://www.eldiario.es/interferencias/Volver-aburrirnos-Franco-Berardi-Bifo_6_826677345.html.
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