Cotidiano escolar: regiões de fronteira
A experiência de discorrer sobre um campo tão complexo como é o do cotidiano escolar nos instiga a realizar um recorte no meio de tantas coisas que se interligam e se relacionam, nos obriga a um exercício de sensibilidade para captar algo que fuja das lógicas obsessivamente detalhistas e já estabelecidas acerca do que é esse espaço nomeado cotidiano escolar. Numa direção distinta nos posicionamos de maneira mais experienciativa porque compreendemos que ao habitar o cotidiano experimentando suas plurais manifestações e modalidades configurativas, potencializamos o que há de mais genuíno em sua (in)constituição – sua diversidade de tramas, possibilidades e caminhos; portanto, nos inquieta um espaço que é, mas nos instiga ainda mais aquilo que está ilimitadamente sendo.
Este processo revela um olhar diferenciado em relação ao funcionamento deste espaço. Compreendemos o cotidiano escolar como uma região fronteiriça em que se manifestam concomitantemente práticas maioritárias em educação e expressões minoritárias de educação. Quando ressaltamos as expressões é e sendo queremos problematizar essa concepção maniqueísta do mundo, dos espaços e das coisas e, por isso, realizamos um paralelo com os conceitos de maioridade e menoridade objetivando que o leitor possa compreender os processos de co-habitação de ambos movimentos-conceitos. O maior e o menor não são proposições contrárias e opostas, mas co-funcionantes, ou seja, cada um se move em função de suas preocupações diferenciadas que são realizáveis, no mais das vezes, em consonância transversal.[1]
Deleuze e Guattari, na obra Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia (no ensaio Tratado de Nomadologia),[2] ilustram essa interação infinita através da relação Aparelho de Estado e Máquina de Guerra nômade; o que nos explicam é que a preocupação do Estado é conservar, funcionando pela soberania; esta, contudo, se manifesta quando há concretas possibilidades de apropriar-se e interiorizar aquilo que é seu alvo local. Paralelamente, a máquina de guerra funciona de maneira exterior, utiliza o ferramental da guerra para a dispersão, para a desconcentração dos grupos e a dissolução do poder. É a difusão que se manifesta na/pela conservação e vice-versa. Portanto, essas configurações não são independentes entre si, mas coexistentes e concorrentes, pois é pela força abrupta da disputa que são potencialmente criadoras. Não há mais juízo de valor, mas modos de funcionamento disjuntivos-inclusivos.[3]
Nesse sentido, podemos nos aproximar do conceito de menor na obra de Deleuze e Guattari intitulada Kafka – por uma literatura menor com menos ressalvas valorativas. Ao iniciarem a obra afirmando que somente a expressão nos dá o procedimento, já nos dão pistas acerca desta zona de confluência do cotidiano, não há como saber de antemão o que são as coisas e como proceder diante delas, somente pela força contingencial expressiva própria do cotidiano é que podemos proceder. Ou seja, a educação maior, conhecida, instituída, que impõe regras e limites, que se preocupa assim como o Estado, em conservar, guiar e valorar só existe porque paralelamente existem práticas fugidias de uma educação menor que se materializam exteriorizando esta pressão interior de uma maioridade requerida e é justamente esta disputa-tensão que ocorre permanentemente no cotidiano da escola.[4]
Estar sensível ao funcionamento desta circularidade é fundamental para que possamos experienciar políticas de resistência através das atuações pedagógicas, de modo a potencializá-las cotidianamente. Neste campo estão expostos variados sentimentos, o conflito, o prazer, a dor, o desafio e por isso, apostamos nos movimentos autoformativos e autogestionáveis como as formas mais claras de perceber o cotidiano em nós mesmos. Se somos nós mesmos um espaço sempre mesmo que retorna a cada instante diferentemente, porque não deixarmos o ter que pensar de lado, experimentando o diverso do cotidiano escolar que (nos) habita quando, de fato, o habitamos e nos localizamos nele. Quanto a isso recorremos à Jorge Luis Borges em seu conto “Funes, o memorioso”:
Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, cada reconstrução, porém, tinha requerido um dia inteiro (…) Minha memória, senhor, é como despejadouro de lixos.
Suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalização, abstrair. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos.[5]
Recorremos a Borges, neste momento, porque nos parece ser ele uma das figuras mais emblemáticas referente aos processos singulares de auto-invenção. Neste trecho, podemos observar o seu movimento intensivo-criativo, a experiência vívida de sua escrita, podíamos aqui tentar explicar os motivos que nos levaram a escolher estes trechos do autor e não outros, mas não é possível fazê-lo, pois a singularidade de Borges está em sua cotidianeidade-experimentativa na/da escrita e a multiplicidade reside em tudo que cada um pode fazer com seus escritos, ou seja, este mesmo escrito pode ser sentido/entendido/interpretado/requerido por diversas pessoas, em diferentes momentos, com distintos intuitos. Isso é mistura de corpos, isso é “Um” cotidiano. Ítalo Calvino em sua obra Seis propostas para o próximo milênio nos diz sobre Borges – “Nasce com Borges uma Literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura que é como a extração da raiz quadrada de si mesma: uma ‘literatura potencial’[…]”.[6] Esta potência da escrita de Borges, esta potência-múltipla dele é o que nos faz recorrer a ele e ao seu mundo cotidiano inventado que retorna sempre diferentemente.
Pormenores, quase imediatos: haverá expressão melhor para indicar o cotidiano escolar, região de fronteiras, de encontros e desencontros, de chegadas e partidas? Para além do pensar como generalização, importa-nos pensar o cotidiano escolar como pormenores, quase imediatos, como multiplicidade de temas menores, de aspectos menores, que, em sua minoridade, produzem os acontecimentos cotidianos. Importa-nos pensar o cotidiano escolar como espaço-tempo intensivo dos acontecimentos educativos, como possibilidade de resistência e de criação.
Maioridade/menoridade na língua e na linguística
Em um dos ensaios do livro-continente-rizoma que é Mil Platôs, intitulado 20 de novembro de 1923 – Postulados da Linguística,[7] Deleuze e Guattari fazem a desconstrução de quatro postulados básicos da linguística clássica, afirmando, através desta desconstrução, a dimensão política da linguagem.
O primeiro postulado contra o qual se voltam é aquele que afirma que a linguagem seria informativa e comunicativa. Segundo eles, a linguagem é política: ela serve para mandar e fazer obedecer, assim como para desempenhar a própria obediência. A linguagem é sempre uma espécie de “palavra de ordem”, que implica em uma relação de mando-obediência. Eles abrem o ensaio com um exemplo particularmente interessante, justamente, por buscá-lo na educação das crianças:
“A professora não se questiona quando interroga um aluno, assim como não se questiona quando ensina uma regra de gramática ou de cálculo. Ela “ensigna”, dá ordens, comanda. Os mandamentos do professor não são exteriores nem se acrescentam ao que ele nos ensina. Não provêm de significações primeiras, não são a consequência de informações: a ordem se apoia sempre, e desde o início, em ordens, por isso é redundância. A máquina do ensino obrigatório não comunica informações, mas impõe à criança coordenadas semióticas com todas as bases duais da gramática (masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito do enunciado-sujeito de enunciação etc). Mais do que o senso comum, faculdade que centralizaria as informações, é preciso definir uma faculdade abominável que consiste em emitir, receber e transmitir palavras de ordem. A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer.”[8]
A ordem é redundância, na medida em que não se apoia em nada que não seja ela mesma. Esta é a fórmula usada por Deleuze e Guattari para desfazer a noção de que a função da língua é comunicar e informar, afirmando que sua real função é política, é servir como instrumento de mando e de obediência. E isto ganha relevo quando eles evidenciam que a escola, como máquina de ensino oficial, coloca a criança no contexto de coordenadas semióticas pré-estabelecidas, nas quais ela seja treinada – seja para mandar, seja para obedecer.
Como que invertendo a célebre proposição de Aristóteles, que afirmou que nós humanos somos seres políticos porque portadores da linguagem, Deleuze e Guattari afirmam que a linguagem é política, ou melhor, que nós falamos porque somos seres políticos. Falamos porque vivemos permeados por relações de poder que, na maioria das vezes, são relações assimétricas, do tipo mando-obediência. Assim, a função-linguagem é transmissão de palavras de ordem.
Por palavras de ordem Deleuze e Guattari compreendem:
“…a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma “obrigação social”. Não existe enunciado que não apresente esse vínculo, direta ou indiretamente. Uma pergunta, uma promessa, são palavras de ordem. A linguagem só pode ser definida pelo conjunto das palavras de ordem, pressupostos implícitos ou atos de fala que percorrem uma língua em um dado momento.”[9]
“A pragmática é uma política da língua”, afirmam Deleuze e Guattari.[10] Isto significa que os usos da língua definem uma prática política. Se uma língua é definida por suas constantes morfológicas, semânticas, sintáticas e fonológicas, os agenciamentos coletivos de enunciação são usos particulares destas constantes segundo variáveis intrínsecas a uma certa enunciação. Fundamental é, portanto, o uso que se faz da língua.
“A função-linguagem é transmissão de palavras de ordem, e as palavras de ordem remetem aos agenciamentos, como estes remetem às transformações incorpóreas que constituem as variáveis da função. A linguística não é nada fora da pragmática (semiótica ou política) que define a efetuação da condição da linguagem e o uso dos elementos da língua.”[11]
O segundo postulado a ser desconstruído é aquele que afirma que haveria uma maquina abstrata da língua, que não recorreria a qualquer fator extrínseco. Esse postulado é desmontado a partir de uma volta aos filósofos estóicos, que mostraram que a linguagem é da ordem do acontecimento, isso é, que ela exprime transformações incorpóreas resultantes de misturas de corpos.
Deleuze já havia trabalhado estas questões em uma obra do final da década de 1960, Lógica do Sentido, cuja tese básica é a de que o sentido é produzido, construído no paradoxo e não algo que está definido de antemão e que pode ser conhecido por uma analítica da linguagem. Deleuze mostra que os estóicos distinguiam duas espécies de coisas: os corpos, que são extensões, realidades físicas, e os acontecimentos, que são “incorporais”.
De forma um tanto sintética e esquemática, podemos dizer que os corpos se misturam entre si, produzindo estados de coisas. Mas as misturas de corpos produzem também acontecimentos incorporais. Para os estóicos, todos os corpos são causas e, portanto, entre eles não se produzem relações de causa-efeito. Estas relações são sempre entre causas corporais e efeitos incorporais, isto é, acontecimentos. Dizendo de outra maneira, as misturas de corpos implicam em acontecimentos. Não sendo coisas, os acontecimentos não propriamente existem, mas subsistem ou insistem. Não são expressos por substantivos ou adjetivos, mas por verbos, sendo o infinitivo seu tempo de conjugação.
O que interessa particularmente a Deleuze é que, com este tipo de abordagem, os estóicos subvertem o platonismo, ao afirmar que o incorporal, o ideal, é resultado de uma mistura de corpos, é um efeito e não uma causa, como teria pensado o sábio grego. O que nos interessa mais de perto é que Deleuze aplica esta lógica estóica à linguística: as palavras são corpos, coisas ou estados de coisas. Mas o sentido é o efeito da mistura dos corpos: o sentido é da ordem do acontecimento. Portanto, o sentido não é anterior á linguagem, mas produzido pela mistura das palavras e de seus estados. O sentido é imprevisível, por ser devir. O sentido é decorrente dos usos da linguagem. Na formulação nietzschiana de Deleuze, os sentidos dão “efeitos de superfície”, estão na “epidermidade das palavras”, não na profundidade dos enunciados.
Daí o sentido da “data” para os estóicos, na medida em que ela é a marca do acontecimento no tempo, a delimitação de sua efetuação. Note-se que todos os ensaios que compõem Mil Platôs são datados em seu título, justamente para demarcar o acontecimento que serve de ponto de partida para aquilo que é pensado em cada ensaio. E por isso, por ser da ordem do acontecimento, o ato linguístico é uma intervenção e não uma representação: “Expressando o atributo não-corpóreo, e simultaneamente atribuindo-o ao corpo, não representamos, não referimos, intervimos de algum modo, e isto é um ato de linguagem”.[12]
A contribuição da filosofia estóica leva a uma identificação da natureza dos agenciamentos:
“Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos: um de conteúdo, o outro de expressão. Por um lado, ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; por outro lado, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas sendo atribuídas aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem, de uma parte, lados territoriais ou reterritorializados que o estabilizam e, de outra parte, picos de desterritorialização que o arrebatam.”[13]
Essa bivalência dos agenciamentos já havia sido abordada por Deleuze e Guattari na obra que escreveram sobre Kafka, em que tentam mostrar que a obra de Kafka não se presta a uma análise psicanalítica tão à moda na época, meados dos anos 1970, mas que se abre para uma produção de sentidos, na medida em que é a expressão de uma literatura menor, espécie de agenciamento coletivo de enunciação.
Assim, há como que uma dobra da língua, articulando seu dentro e seu fora: de um lado, a pragmática interna da língua, com seus fatores próprios; de outro lado, a pragmática externa dos fatores não linguísticos, que são levados para o interior da mesma língua, como os agenciamentos coletivos que marcam seus usos. Por conta desta dinâmica, afirmam Deleuze e Guattari que o modelo arborescente não dá conta de pensar a pragmática linguística: como veremos adiante, é preciso recorrer ao rizoma.
O terceiro postulado da linguística tomado por Deleuze e Guattari afirma que haveria constantes universais da língua que permitiriam defini-la como um sistema homogêneo. Segundo eles tal postulado é falso, pois há homogeneidade quando olhamos para a língua maior, mas há heterogeneidade nas línguas menores. Nunca há uma só língua…
O problema é que somos levados a pensar sobre a língua em uma perspectiva, em um modelo arborescente, que opera por ramificações. Deleuze e Guattari lembram as árvores chomskianas, que não nos fazem ganhar absolutamente nada quando as fazemos proliferar:
“…quando nos esforçamos para fazer germinar as árvores chomskianas, e para quebrar a ordem linear, não ganhamos verdadeiramente nada, não constituímos um rizoma, se os componentes pragmáticos que marcam as rupturas estiverem situados no ponto mais alto das árvores, ou desaparecerem no momento da derivação. Na verdade, o problema mais geral concerne à natureza da máquina abstrata: não há qualquer razão para relacionar o abstrato ao universal ou ao constante, e para apagar a singularidade das máquinas abstratas, quando estas são construídas em torno de varáveis e variações.”[14]
As línguas são compostas por variáveis, são atravessadas por variações. E estas variações operam de forma rizomática, não arborescente. Elas não ramificam, hierarquicamente, elas proliferam, sem nenhum controle, atravessando e sendo atravessadas por múltiplas varáveis, criando novas possibilidades. A referência é a da música: o tema e suas variações, muitas vezes, como no jazz, o tema sendo a própria variação. É o que Deleuze e Guattari chamam de um cromatismo generalizado da língua: “são línguas cromáticas, próximas a uma notação musical. Uma língua secreta não tem apenas uma cifra ou um código escondido que funciona ainda por meio de constante e forma um subsistema; ela coloca em estado de variação o sistema das invariáveis da língua pública”[15]
A esta variação contínua da língua, eles denominam estilo. Os diferentes estilos de uma mesma língua são proliferações rizomáticas, que vão se produzindo por diferentes conexões (e as conexões são sempre acontecimentos, portanto, da ordem do imponderável). Não se inventa, pura e simplesmente um estilo. O estilo surge fruto de agenciamentos coletivos de enunciação, não é uma mera criação psicológica individual. Como exemplos, eles citam Kafka e Beckett, entre outros escritores que estiveram sempre na fronteira das línguas que usaram, que muitas vezes eram bilíngues, sendo seu estilo resultado desta mestiçagem linguística.
O problema da linguística é sua opção por operar numa espécie de modo maior, desprezando o cromatismo das línguas:
“A linguística ainda não abandonou uma espécie de modo maior, um tipo de escala diatônica, um estranho gosto pelas dominantes, constantes e universais. Durante este período, todas as línguas estão em variação contínua imanente: nem sincronia nem diacronia, mas assincronia, cromatismo como estado variável e contínuo da língua. Por uma linguística cromática, que dê ao pragmatismo suas intensidades e valores.”[16]
Contra este modo maior da linguística, Deleuze e Guattari investem na possibilidade de um uso menor da língua, um uso de resistência e revolucionário, que faça a língua falar de outra maneira. Fazer a língua gaguejar é produzir variações infinitas que fazem com que ela escape do modo maior que a aprisiona. Esta perspectiva fica ainda mais clara em um ensaio solo de Deleuze (Gaguejou…), escrito algum tempo depois e publicado em Crítica e Clínica. Acompanhemos seu raciocínio:
“Não se trata de uma situação de bilinguismo ou multilinguismo. Pode-se conceber que duas línguas se misturem, com passagens incessantes de uma a outra; cada uma continua sendo um sistema homogêneo em equilíbrio, e a mistura se faz em falas. Mas não é desse modo que os grandes escritores procedem, embora Kafka seja um tcheco escrevendo em alemão e Beckett um irlandês escrevendo (com frequência) em francês, etc. eles não misturam duas línguas, nem sequer uma língua menor e uma língua maior, embora muitos deles sejam ligados a minorias como ao signo de sua vocação. O que fazem é antes inventar um uso menor da língua maior na qual se expressam inteiramente; eles minoram essa língua, como em música, onde o modo menor designa combinações dinâmicas em perpétuo desequilíbrio. São grandes à força de minorar: eles fazem a língua fugir, fazem-na deslizar numa linha de feitiçaria e não param de desequilibrá-la, de fazê-la bifurcar e variar em cada um de seus termos, segundo uma incessante modulação […] É um estrangeiro em sua própria língua: não mistura outra língua à sua, e sim talha na sua língua uma língua estrangeira que não preexiste.”[17]
Fazer uma língua operar em modo menor, minorar o uso de uma língua estabelecida é fazer um uso político da língua. Em geral, as minorações são agenciamentos coletivos de enunciação, mesmo que sejam fruto do trabalho de um escritor singular, como os exemplos de Kafka e Beckett, amplamente citados por Deleuze. Mas também podemos ver minorações da língua em usos coletivos feitos por determinados grupos sociais, que fazem gaguejar a própria língua, fazendo funcionar novas possibilidades.
O quarto e último postulado focado por eles no ensaio de Mil Platôs afirma que só se poderia estudar cientificamente a língua sob as condições de uma língua maior ou padrão. Segundo eles, isto é falso, na medida em que toda língua enseja línguas menores.
A unidade da língua é política; é uma forma de dominação:
“Formar frases gramaticalmente corretas é, para o indivíduo normal, a condição prévia para qualquer submissão às leis sociais. Ninguém pode ignorar a gramaticalidade; aqueles que a ignoram pertencem a instituições especiais. A unidade de uma língua é, antes de tudo, política. Não existe língua-mãe, e sim tomada de poder por uma língua dominante, que ora avança sobre uma grande frente, ora se abate simultaneamente sobre centros diversos”.[18]
Mas, se o uso maior da língua, a afirmação de sua unidade, é um ato de poder, fazer proliferar as minoridades linguísticas (que Deleuze e Guattari chamam de idioletos) também o é… Ficamos num jogo de poder constante, com afirmações e resistências, refluxos e contra-fluxos, que só faz proliferar os usos da língua. Assim, os autores enfatizam que não se trata de dois tipos de línguas, as maiores e as menores, mas sim de dois tratamentos possíveis, de dois usos ou de duas funções para uma mesma língua. Uso maior e uso menor da língua opõe-se e, às vezes, entram em conflito, no jogo político; mas não são excludentes. Uma língua só pode ser maior quando se cristaliza em regras e gramaticalidades, mas o faz justamente para regular e tentar impedir seus usos menores. Por outro lado, um devir-menor da língua só é possível frente ao exercício de sua maioridade: elas não são mutuamente excludentes.
O uso menor da língua caracteriza-se por uma dupla tendência: por um lado, operar uma espécie de “empobrecimento” da língua, um esgotamento da forma, uma simplificação da sintaxe; mas, por outro lado, é este mesmo “empobrecimento” que potencializa as variações, as mudanças, estabelecendo um gosto pela sobrecarga.
“Subtrair e colocar em variação, diminuir e colocar em variação, é uma só e mesma operação. Não existe uma pobreza e uma sobrecarga que caracterizariam as línguas menores em relação a uma língua maior ou padrão; há uma sobriedade e uma variação que são como um tratamento menor da língua padrão, um devir-menor da língua maior. O problema não é o da distinção entre língua maior e língua menor, mas o de um devir. A questão não é a de reterritorializar em um dialeto ou em um patuá, mas de desterritorializar a língua maior. Os negros americanos não opõem o black ao inglês, fazem com o americano, que é sua própria língua, um black-english.”[19]
Poderíamos dizer o mesmo hoje em relação à mistura de duas línguas no território americano, o inglês e o espanhol, que alguns têm chamada de spanglish, “espanglês”. A mestiçagem leva a uma desterritorialização tanto do inglês quanto do espanhol gerando, por um uso absolutamente político das duas línguas, um devir-menor do inglês padrão norte-americano. E marca uma diferença, é um outro devir-minoritário, em relação ao uso da língua pelos negros. Na continuação, os autores ressaltam a não independência das línguas menores:
“As línguas menores não existem em si: existindo apenas em relação a uma língua maior, são igualmente investimentos dessa língua para que ela se torne, ela mesma, menor. Cada um deve encontrar a língua menor, dialeto ou antes idioleto, a partir da qual tornará menor sua própria língua maior […] É em sua própria língua que se é bilíngue ou multilíngue. Conquistar a língua maior para nela traçar línguas menores ainda desconhecidas. Servir-se da língua menor para por em fuga a língua maior. O autor menor é um estrangeiro em sua própria língua. Se é bastardo, se vive como bastardo, não é por um caráter misto ou mistura de línguas, mas antes por subtração e variação da sua, por muito ter entesado tensores em sua própria língua.”[20]
Estrangeiro em sua própria língua: de dentro da língua maior, instrumento do poder e da dominação, instaurar línguas menores, devires minoritários da língua, estratégias de resistência e contra-poderes. Lançar novos dados sobre o tabuleiro do jogo político. Segundo Deleuze e Guattari, podemos distinguir a língua maior, as línguas menores e os devires minoritários da língua maior. Cada um destes elementos são diferentes aspectos, diferentes peças neste jogo político.
Se entendemos o majoritário, a língua maior, como estado de poder e de dominação, ela pressupõe a sistematização e o esquematismo, luta para ser modelo e para manter-se modelo. No âmbito da língua menor, porém, o jogo é outro. O devir minoritário é a potência de criação, que se contrapõe a um estabelecido que já não pode criar. É por isso que a língua maior precisa de línguas menores: mesmo para manter-se enquanto tal, para estar viva, ela precisa ser atravessada pelos devires minoritários, pelos potenciais criativos. É também por esta razão que não se pode falar em um “devir-maior”: se o majoritário é o sistema homogêneo, então ele já o é de antemão, não pode vir a ser. O minoritário, ao contrário, justamente por não ser o sistema homogêneo, o estabelecido, pode devir, pode vir a ser, pode criar e proliferar.
O devir minoritário é, segundo Deleuze e Guattari, a autonomia. Vejamos:
“Há uma figura universal da consciência minoritária, como devir de todo o mundo, e é esse devir que é criação. Não é adquirindo a maioria que se o alcança. Essa figura é precisamente a variação contínua, como uma amplitude não cessa de transpor, por excesso e por falta, o limiar representativo do padrão majoritário. Erigindo a figura de uma consciência universal minoritária, dirigimo-nos a potências de devir que pertencem a um outro domínio, que não o do Poder e da Dominação. É a variação contínua que constitui o devir minoritário de todo o mundo, por oposição ao fato majoritário de Ninguém. O devir minoritário como figura universal da consciência é denominado autonomia. Sem dúvida não é utilizando uma língua menor como dialeto, produzindo regionalismo ou gueto que nos tornamos revolucionários; é utilizando muitos dos elementos de minoria, conectando-os, conjugando-os, que inventamos um devir específico autônomo, imprevisto.”[21]
Em suma, o devir-revolucionário é molecular: opera nos pequenos estratos, no âmbito de uma microfísica do poder. A macrofísica, a política molar, é do âmbito da Dominação. Impossível produzir ações políticas criativas e transformadoras neste âmbito, que é a esfera do Estado. Mas é possível opor resistência dentro mesmo do corpus do Estado, como um vírus que o faz funcionar mal. Assim como é possível introduzir viroses na língua maior, fazê-la gaguejar, proliferando devires menores da língua, línguas menores. Poder maiúsculo que luta para manter-se; poderes minúsculos que lhe escapam o tempo todo, proliferando diferenças e possibilidades outras.
A língua é sempre instrumento de poder. Língua maior homogênea que opera por palavras de ordem; línguas menores heterogêneas que gaguejam, que fazem gaguejar a língua maior. Política do Estado e políticas minoritárias, umas atravessando as outras.
Maioridade/menoridade na política: aparelho de Estado e máquina de guerra
Para abordar o tema “política” nas obras de Deleuze e Guattari faz-se necessário adicionar um s na palavra – Políticas. Pensar a política, ou melhor dizendo, políticas para esses autores é, antes de mais nada, o processo de experimentação do mundo através de um bando, de um manada, de um povo, é pensar minorias.
“As minorias e as maiorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é um modelo ao qual é preciso estar conforme: por exemplo, o europeu médio adulto macho habitante das cidades… Ao passo que uma minoria não tem modelo, é um devir, um processo.”[22]
Quando se fala em política, a dificuldade que temos de realizar este movimento plural é justamente por conta de compreendermos a Política diretamente relacionada a um modelo, o artigo definido a já pressupõe este modelo que estará na base de toda concepção identitária-modelista que iguala homens e estados de coisas. Já vimos com Aristóteles[23] que o conceito clássico de política se define por esta ser uma ciência responsável pela felicidade humana, dividindo-se em dois segmentos: o primeiro designado Ética, que seria responsável pela felicidade individual do homem na polis, e a segunda que é a Política propriamente dita, responsável pela tão almejada felicidade coletiva desta mesma polis. Nesse sentido, as perguntas que não se calam são: A política conseguiria mesmo traçar um plano de felicidade comum a todos através da investigação do funcionamento de um Estado? O que seria, então, esta felicidade, esse bem-estar comum? Como funcionaria?
Para Deleuze, um povo se cria, se autogestiona através de seus encontros com/através da arte, dos (des)encontros de suas diferenças, ou seja, para ele, esta política é arte, é através da arte que há resistência, contudo, este povo não se ocupará da arte, ao contrário é esta que fará com que o povo reencontre algo perdido no tempo e no espaço. Nesse sentido, o conceito de utopia, muito utilizado quando nos referimos à política (modelo) não é adequado, pois não cessa de criar ilusões (metafísicas) acerca de um bem-estar impossível de se concretizar, dada as ricas e potentes diferenças em voga. “A utopia não é bom conceito: há antes uma ‘fabulação’ comum ao povo e à arte.”[24]
A partir de outro ângulo de visada lançamos juntamente com Deleuze nossos olhares para este povo-bando que se configuraria como uma minoria criadora, o artigo indefinido entra em cena, Uma política, ou mesmo, Políticas. Uma minoria, segundo ele, que pode até querer tornar-se maioria através desses modelos, mas mesmo quando isso acontece não se perde a potência dessa minoridade anterior que é sempre perversão e criação. “O povo é sempre uma minoria criadora, e que permanece tal, mesmo quando conquista uma maioria: as duas coisas podem coexistir porque não são vividas no mesmo plano.”[25]
Na obra Diálogos, Deleuze dedica-se a um capítulo intitulado justamente Políticas, e ali ele explicita três grandes linhas que nos constituem, a primeira é a linha molar, que se caracteriza por sua direção única e sua dureza, é uma segmentaridade rígida, designa o macro; a segunda é a linha molecular, que proporciona a flexibilidade, a mobilidade, os fluxos contínuos, os limiares, é o funcionamento do micro; a última linha é de natureza totalmente distinta, a linha de fuga, esta levada desde os segmentos, passando pelos limiares em direção ao desconhecido; esta linha percorre o caminho da alma, abstrata e simples, mas por sua expressão sinuosa, torna-se menos detectável. “Em todo caso, as três linhas são imanentes, tomadas umas nas outras. Temos tantas linhas emaranhadas quanto a mão. Somos complicados de modo diferente da mão. O que chamamos de nomes diversos […] não tem outro objeto do que o estudo dessas linhas, em grupos ou indivíduos.”[26]
A primeira linha (molar) comporta segmentos que explicitam o funcionamento de seus agenciamentos.[27] Estes segmentos operam primeiramente através de máquinas binárias que funcionam dicotomicamente, desenvolvem dispositivos de poder diferentes entre si, e, por fim, relacionam-se através de um plano organizativo consistente que objetiva traçar formas e desenvolvimento dos sujeitos em suas inserções formativas, ou seja, esta linha diz respeito ao processo de estabilização-harmonização de coisas e pessoas no espaço. É a linha constituinte do Aparelho de Estado.
Já as outras linhas não procedem através desta “lei”, mas por limiares, entrecruzamentos, construindo devires. É a Máquina abstrata (nômade). Os planos em que operam as distintas máquinas também diferem, embora se misturem, o primeiro plano é o de consistência e o segundo é o de imanência. Nesse sentido, o que nos importa alcançar é que tais configurações aparentemente disjuntivas, na verdade são inclusivas, ou seja, os planos estão sempre sendo entrecortados e as máquinas metamorfoseando-se. A operação a ser captada não é de um binarismo, mas de uma multiplicidade, os estados de coisas estão em eterna co-habitação, conjunção, um Aparelho de Estado não existe sem ter suas configurações colocadas em cheque pela Máquina de Guerra, assim como esta não existe sem as capturas incessantes do Estado.
“Não falamos, portanto, de um dualismo entre duas espécies de ‘coisas’, mas de uma multiplicidade de dimensões, de linhas e de direções no seio de um agenciamento. […] Não há mais desejo de revolução do que desejo de poder, desejo de oprimir ou de ser oprimido; mas revolução, opressão, poder, etc.; são linhas componentes atuais de um agenciamento dado. Não que essas linhas preexistam; elas se traçam, se compõem, imanentes umas às outras, emaranhadas umas nas outras, ao mesmo tempo que o agenciamento de desejo se faz, com suas máquinas emaranhadas e seus planos entrecortados.”[28]
Estas três linhas: a molar relacionada ao sedentário, a molecular ligada ao migrante e a de fuga desenhando o nômade, fazem com que encaremos a política não mais pelos prismas fixos – modelar-sedentário, molecular-movente ou fugidio-deslizante, mas através desses estados entrelaçados em concomitante perpendicularidade, movimentos transversais que fazem a maioridade do Estado estar em eterna consonância fronteiriça com a minoridade da Máquina de Guerra. Por isso, a política não é, está sempre sendo, a política aqui é experimentação. “A política é uma experimentação ativa, porque não se sabe de antemão o que vai acontecer com uma linha. Fazer a linha passar, diz o contador, mas justamente pode-se fazê-la passar em qualquer lugar.”[29]
Todas as problemáticas em Política, segundo Deleuze, nunca foram de ordem ideológica, mas organizacional, ou seja, há sempre um modelo prévio de organização política que desenha este Aparelho de (E)estado. Contudo, nos parece que a política de que nos fala Deleuze está aquém e além do estado, está, antes de mais nada, nos modos de compreensão e conjuração dessas linhas de força, em como funcionam, se manifestam e criam, é justamente pelo incontrolável dessas linhas que experimentaríamos Políticas genuinamente diferenciadas.
A obra escrita por Guattari e Negri intitulada Las verdades nómadas & General Intellect, poder constituyente, comunismo vai tratar desses experimentos políticos outros, de como o problema organizacional do qual falava Deleuze acima, não é de ordem exterior, ligada unicamente ao Estado, mas potencialmente subjetiva e ligada aos bandos, a uma coletividade.
“A partir de ahora organizar significa sobre tudo operar sobre si mismo, en cuanto que colectividad singular, construir, reconstruir, continuamente esta comunidad em um proyeto multivalente de liberación. No en referencia a uma ideologia directriz, sino dentro de las articulaciones de lo real”.[30]
Outrossim, o que percebemos é que são os mecanismos funcionantes do Estado e da Máquina que diferem, enquanto a preocupação do primeiro está em conservar, controlar e dividir-fragmentar espaços, em suma, territorializar, a segunda opera deslizando pelo espaço, dispersa, desterritorializando. Contudo, são os processos de reterritorialização que caracterizam as mudanças de ambas em suas relações. A Máquina de guerra toma a disciplina para resistir indisciplinadamente contra as artimanhas do Estado, enquanto este se utiliza da soberania para sua necessária retroalimentação com a primeira. Em suma, o Estado só existe como tal porque interioriza e se apropria da Máquina, há aí uma fagocitose, em paralelo, a Máquina existe se exteriorizando em relação ao aparelho do Estado.
“Não basta afirmar que a máquina é exterior ao aparelho, é preciso chegar a pensar a máquina de guerra como sendo ela mesma uma pura forma de exterioridade, ao passo que o aparelho de Estado constitui a forma de interioridade que tomamos habitualmente por modelo, ou segundo a qual temos o hábito de pensar.”[31]
Há, portanto, a exterioridade (expressão e resistência) como potência da Máquina de Guerra e a interioridade (controle e soberania) como potência do Aparelho de Estado. Essas duas potências encontram-se em coexistência, funcionando distintamente. O espaço do Estado é estriado (dividido, estratificado, controlado por suas facções), o espaço da Máquina de Guerra é liso, é o próprio deserto, a estepe, onde os bandos se reúnem e vivem-experimentam as fugas. Os guerreiros, os bandos nômades não se deslocam como os migrantes ignorando os pontos pelos quais passam, os nômades fazem da própria terra, algo desterritorializado em que todos os pontos são importantes, têm relação e se comunicam, ou seja, o nomos espaço nômade distingue-se da polis espaço do sedentário porque o primeiro não é passível de divisões, mas de deslizantes multiplicações, o espaço nômade é o espaço de fronteira.
Ao contrário do que é costumeiro pensar, o nômade tem um território e através de seu caminhar nunca ignora os pontos que existem como subordinados dos seus trajetos. Os pontos existem para serem abandonados, ou seja, os pontos são, para os nômades, alternâncias que servem de ligação dos caminhos. É fundamental entender que o espaço entre um ponto e outro tem uma consistência, autonomia e direção muito próprias e por isso, assim como o rizoma, a vida do nômade é intermezzo. O nômade é um ocupante sem-lugar, ele se diferencia do migrante em função desta condição, porque enquanto o migrante se desloca de um ponto a outro sem a preocupação com sua localização, o nômade se movimenta por uma questão de consequência e necessidade de fato.
“O problema é que toda vez que confundimos a máquina de guerra com os fins do Estado, deixamos de ver a sua exterioridade com relação a esse aparelho burocrático e sedentário. A vida do guerreiro é, em essência, uma vida nômade. Suas relações não se estabelecem da mesma forma que as de um homem comum; sua vida está longe de ter a segurança daqueles que exercem profissões sedentárias […]”[32]
Pensar, então, a relação maioridade/minoridade na política a partir dessas configurações nos obriga à compreensão do cotidiano escolar como um espaço ao mesmo tempo regido pelas leis deste Estado maior que diz sobre suas configurações e funcionamentos, mas que também desenha outras experiências micropolíticas escapando-resistindo ao instituído. Neste mesmo cotidiano observamos as expressões mais variadas de suas linhas erráticas com sua força-potência nômade, presenciamos a experiência fundamental da política com e não da política para. Portanto, há a “política experimentada” com subjetividades envolvidas (minoridades) e há também a “política almejada” para sujeitos e instituições (maioridades), ambas convivendo nesta ilimitada circularidade que as faz distintamente singulares e plurais ao mesmo tempo. Este é um desafio contemporâneo, o de saber viver e experienciar a riqueza dos estados de coexistência que desenham mundos.
Cotidiano escolar: heterotopias e práticas de resistência
Feito este percurso pela questão da maioridade/minoridade na língua e na linguística, bem como na política, estamos em condições de fechar este texto com uma exploração do cotidiano escolar como espaço de produção o de linhas de fuga, como espaço-tempo de produção de práticas de resistência, de uma educação menor, nômade, para além de todo o estriamento produzido pelo aparelho de Estado que toma a educação em sua maioridade. Para tanto, recorreremos ao conceito foucaultiano de heterotopia.
A educação, não raro, é vista como uma espécie de utopia. O termo utopia, o não-lugar, remete para um espaço irreal, que não tem lugar, ou ainda não tem lugar. Foucault ressaltou isso numa conferência de 1967 para arquitetos, intitulada Outros Espaços:
Há, inicialmente, as utopias. As utopias são os posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais.[33]
Se as utopias são espaços irreais, elas são justamente usadas como instrumento político de crítica, como forma de mostrar que tudo pode ser diferente, que outras realidades podem ser construídas. Desde a planificação social proposta por Platão, que tinha no sistema educacional o eixo a partir do qual tudo o mais se estruturava, isso parece ter se tornado uma constante na teoria educacional. Os monges medievais planificaram a vida em seus mosteiros, para que ela fosse a via de acesso ao divino; na modernidade, a lógica do poder disciplinar implicava justamente em uma planificação e racionalização do espaço escolar. Se há algo que a escola moderna não é, em nossos dias, é justamente utopia. A instituição escolar moderna é absolutamente tópica, lugar instituído.
Para falar de espaços distintos dos utópicos, mas presentes em todas as culturas, espaços outros de produção, de criação e de vida, Foucault cunhou o conceito de heterotopia. E caracterizou-o da seguinte forma, na conferência já citada:
“Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias.”[34]
Buscando compreender melhor a dinâmica desses lugares, Foucault classificou-os em dois tipos. Heterotopias de crise (presentes nas sociedades primitivas): lugares reservados a situações especiais, como a das mulheres após o parto ou menstruadas, para os adolescentes em ritos de passagem, para os velhos. Mas ainda em nossos dias esses tipos de espaços estão presentes: os colégios para meninos ou meninas, exclusivamente; o serviço militar para os rapazes; etc. O segundo tipo, mais presente nas sociedades atuais, ele chamou de heterotopias de desvio, dos quais podemos citar como exemplos as clínicas psiquiátricas e as casas de repouso.
O comum entre os dois tipos é que se tratam de lugares reservados para situações específicas. Um lugar para as mulheres após o parto, quando não deveriam encontrar-se com homens; um lugar para os adolescentes em seu rito de passagem para tornarem-se guerreiros; um lugar para o aprendizado específico dos meninos, outro para as meninas; e, no caso das sociedades atuais, um lugar para tratar dos loucos ou para que um indivíduo possa restabelecer-se do estresse cotidiano. Essas heterotopias são locais de passagem, não locais de permanência.
Foucault pensou em seis princípios que definiriam os lugares sociais classificados como heterotopias:
- Elas estão presentes em todas as culturas;
- Cada heterotopia tem seu funcionamento preciso numa dada sociedade, mas ele pode ser distinto em outra sociedade ou outra cultura;
- As heterotopias justapõem, num único lugar, vários espaços distintos, que são incompatíveis entre si; isto é, uma heterotopia é uma multiplicidade;
- As heterotopias implicam um recorte no tempo, como se colocassem “fora do tempo” de uma dada sociedade;
- Elas são, ao mesmo tempo, isoladas e penetráveis. Isoladas porque demarcam um lugar específico, não se confundido com seu entorno; mas penetráveis, visto que estão em interação com as sociedades nas quais se encontram;
- Sua função em relação ao espaço restante é ou de denunciar o ilusório deste espaço, ao apresentar-se ela própria como ilusão, ou então de servir como compensação a esse espaço (o que nos leva a dois tipos específicos: as heterotopias de ilusão e as heterotopias de compensação).
A proposta deste texto é que, na contramão do movimento da educação e das escolas modernas, utilizemos esse conceito foucaultiano para pensar o cotidiano escolar como um outro espaço, um outro lugar, em que outras relações sejam possíveis, em que a criação seja possível. Não local de permanência, mas lugar de passagem, entre-lugar. Tomar o cotidiano escolar como heterotopia, como um outro lugar distinto dos espaços sociais, mas também como um outro lugar em relação à escola instituída, estabelecendo relações outras, instituintes. Em outras palavras, tomar o cotidiano escolar como o entre-lugar da educação maior, aparelho de Estado estratificante e segmentarizador e da educação menor, máquina de guerra nômade, alisadora e produtora de linhas de fuga.
Como Foucault afirmou que as heterotopias são multiplicidades, na medida em que justapõem, num único lugar, vários espaços distintos, que são incompatíveis entre si, podemos pensar na possibilidade de criação de heterotopias no tópico. Isto é, a criação de espaços outros de relações instituintes e criativas, no espaço instituído (tópico). Ou, para dizer com Deleuze e Guattari, promover experiências de desterritorialização no território instituído, inventando linhas de fuga.
Se o topos da escola moderna é aquele do poder assimétrico, da normalização dos corpos pela disciplina e da planificação social pela biopolítica, ousar a justaposição de espaços outros, de um poder simétrico exercido como jogo, de relações experimentais e libertárias, em que ensinar e aprender sejam aventuras do pensamento. Justapor e transversalizar um espaço em que a relação pedagógica seja inventada na simetria, por mais que as posições de mestre e aprendiz sejam assimétricas.
São essas heterotopias no tópico que podemos chamar de uma educação menor, nômade. Uma educação menor é trincheira (ou, para dizer como Deleuze e Guattari, toca, resultado de um devir-animal), espaço de resistência, não um programa. Colocar-se à deriva, como barcos em águas desconhecidas. E, na repetição destas experiências, criar o diferente. Contra um modelo moderno de escola, esgotado, mas insistentemente reformado, renovado por novas planificações, em que as relações há muito deixaram de ser políticas para tornarem-se policiais; em que os muitos olhos da disciplina e os muitos olhos mecânicos do controle impedem a aventura e a errância, justapor, no mesmo espaço, a experiência, a aventura, a política como a emergência do inusitado nas relações.
O cotidiano escolar é a dobra da escola, seu dentro (educação maior, aparelho de Estado, utopia) e seu fora (educação menor, máquina de guerra, heterotopia). O cotidiano faz gaguejar a língua escolar, fazendo operar inventividades criativas naquilo que, em princípio e por princípio, não passa de palavra de ordem, palavra da ordem. Reencontramos, aqui, o devir minoritário da autonomia: o cotidiano escolar é espaço de construção de autonomia de professores e estudantes. Podemos ficar presos aos estriamentos da educação modelar e serial produzida como aparelho de Estado; mas também podemos opor resistência a este processo, inventando heterotopias no cotidiano escolar, espaços libertários e autônomos nas dobras do espaço estratificado.
Sendo um devir minoritário, conforme frisamos antes, com Deleuze e Guattari, a construção da autonomia como projeto educativo não tem como não ser utopia, como foi o projeto moderno. Mas utopia tomada aqui em seu sentido negativo, como espaço inexistente, projeto irrealizável. Querer produzir a autonomia como mega-empreendimento, como planificação, como educação maior, é investir na heteronomia, na proliferação de palavras de ordem. A produção da autonomia, como devir, como projeto minoritário, coletivo, mas produzido por cada um e “por baixo”, está mais para a heterotopia, isto é, para a invenção de espaços outros no contexto dos espaços instituídos, em que as relações libertárias e autônomas sejam inventadas e instituídas, em contraposição às palavras de ordem. O cotidiano escolar, como espaço-tempo de uma educação menor, região de fronteira e de proliferação das diferenças, é o espaço possível da criação da autonomia como linhas de fuga. Não um programa, um modelo, mas invenção constante de possibilidades que se multiplicam.
Referências bibliográficas:
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- Deleuze, Gilles, Guattari, Félix, Mille Plateaux – capitalisme et schizophrènie, Paris, Les Editions de Minuit, 1980.
- Deleuze, Gilles, Guattari, Félix, 20 de novembro de 1923 – Postulados da Lingüística, In Mil Platôs, vol. 2, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995.
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- Foucault, Michel, Outros espaços, In Ditos e Escritos III – Estética: literatura e pintura, música e cinema, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001.
- Gallo, Silvio, Deleuze & a Educação, 2ª ed., Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2008.
- Gallo, Silvio, Acontecimento e resistência: educação menor no cotidiano da escola, In Camargo, A.M.F.; Mariguela, M. (orgs.), Cotidiano Escolar – emergência e invenção, Piracicaba, Jacintha Editores, 2007.
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- Schöpke, Regina, Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, Rio de Janeiro, Contraponto, São Paulo, Edusp, 2004.
- Vergnières, Solange, Ética e Política em Aristóteles – physis, ethos, nomos, São Paulo, Ed. Paulus, 1998.
Notas
[1] O conceito de transversalidade é utilizado por Félix Guattari com o intuito de substituir, na teoria psicanalítica, o conceito de transferência, ou seja, enquanto o primeiro se caracteriza por sua mobilidade e por se derivar de uma relação não localizável, mas escorregadia e intensiva, o segundo se realizaria de forma hierárquica, unitária e localizável. Nesse sentido, uma consonância transversal é uma harmonia intensiva, um acontecimento mistura de corpos que se efetuam sem que haja uma pré-condição, um controle, pura força intensiva de atração. Assim se processa o funcionamento de um cotidiano escolar, singularidade e multiplicidade consonando transversalmente. Cf. Gilles Deleuze, Félix Guattari, Introdução: Rizoma, In Mil Platôs, vol. 1, Rio de Janeiro, Ed. 34, 2004, p. 37.
[2] Na edição brasileira, este ensaio está no volume 5.
[3] Entendemos à priori que toda relação disjuntiva é necessariamente de exclusão, contudo, o que nos faz ver Deleuze é que há numa disjunção uma relação. Nas palavras de Zourabichvili “[…] a não-relação torna-se uma relação” In François Zourabichvili, Le vocabulaire de Deleuze, Ellipses, Paris, 2003, p.104. Diferentemente da dialética hegeliana em que os termos se relacionavam a partir da negação, confirmando a noção comum de disjunção, Deleuze nos mostra que a disjunção é ela mesma inclusa, pois as relações dos termos em questão se tornam ao mesmo tempo ilimitadas, indecomponíveis e desiguais a si. O conceito de membra disjuncta vai reforçar/potencializar o conceito de Diferença e Multiplicidade nas obras do autor.
[4] A respeito do tema educação maior/educação menor, ver Silvio Gallo, Deleuze & a Educação, 2ª ed., Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2008 e Silvio Gallo, Acontecimento e resistência: educação menor no cotidiano da escola, In Ana Maria Facciolli de Camargo e Márcio Mariguela (orgs.), Cotidiano Escolar – emergência e invenção, Piracicaba, Jacintha Editores, 2007.
[5] Cf. Jorge Luis Borges, Ficções, São Paulo, Ed. Globo, 1997, pp.121, 124-125.
[6] Ítalo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio, São Paulo, Companhia das Letras, 2007, p.63.
[7] Na edição brasileira, no volume 2 de Mil Platôs.
[8] Gilles Deleuze, Félix Guattari, 20 de novembro de 1923 – Postulados da Lingüística, In Mil Platôs, vol. 2, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995, p. 11-12.
[9] Ibid., p. 16.
[10] Ibid., p. 22.
[11] Ibid., p. 26.
[12] Ibid., p. 27.
[13] Ibid., p. 29.
[14] Ibid., p. 35.
[15] Ibid., p. 41.
[16] Ibid., p. 41.
[17] Gilles Deleuze, Crítica e Clínica, São Paulo, Ed. 34, 1997a, p. 124-125.
[18] Gilles Deleuze, Félix Guattari, 20 de novembro de 1923 – Postulados da Lingüística, In Mil Platôs, vol. 2, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995, p. 46.
[19] Ibid., p. 51.
[20] Ibid., p. 51.
[21] Ibid., p. 53.
[22] Gilles Deleuze, Conversações, São Paulo, Ed. 34, p.214.
[23] Ver, do filósofo grego, A Política e Ética a Nicômacos. Para uma análise aprofundada do tema, sugerimos Ética e Política em Aristóteles – phisis, ethos, nomos, de Solange Vergnières.
[24] Gilles Deleuze, Conversações, São Paulo, Ed. 34, p.215.
[25] Ibid., p.214.
[26] Gilles Deleuze, Diálogos, São Paulo, Editora Escuta, 1998, p.146.
[27] O conceito de agenciamento percorre toda obra de Deleuze e é especialmente trabalhado por ele e Guattari na obra Kafka por uma literatura menor (1977). Este conceito refere-se às instituições fortemente territorializadas e comporta dois segmentos: o conteúdo (agenciamento maquínico de desejo) e expressão (agenciamento coletivo de enunciação). Todo agenciamento contém essas linhas molares, pois são estas que caracterizam este funcionamento territorial, mas também comporta linhas moleculares, de bordas ou de fuga. O importante a se compreender em relação a um agenciamento é precisamente sua multiplicidade, são as metamorfoses pelas quais ele passa de um instante sem que se saiba ao certo como se processa tal movimento maquínico. O agenciamento não tem somente duas faces. De um lado, ele é segmentário, estendendo-se sobre vários segmentos contíguos, ou se dividindo em segmentos que são por sua vez agenciamentos. Gilles Deleuze, Félix Guattari, Kafka – por uma literatura menor, Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1977, p. 124.
[28] Gilles Deleuze, Claire Parnet, Diálogos, São Paulo, Editora Escuta, 1998, p.154.
[29] Ibid., p.159.
[30] “A partir de agora organizar significa sobretudo operar sobre si mesmo, enquanto coletividade singular, construir, reconstruir, continuamente esta comunidade em um projeto multivalente de liberação. Não referendando a uma ideologia diretriz, mas dentro das articulações do real”. Félix Guattari, Antonio Negri, Las verdades nómadas & General Intellect, poder constituyente, comunismo, Madrid, Ediciones Akal, 1999, p.68.
[31] Gilles Deleuze, Félix Guattari, Tratado de Nomadologia. In Mil Platôs, vol. 5, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1997, p.15.
[32] Regina Schöpke, Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, Rio de Janeiro, Contraponto, São Paulo, Edusp, 2004, p.168.
[33] Foucault, Michel, Outros espaços, In Ditos e Escritos III – Estética: literatura e pintura, música e cinema, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, p. 414-415.
[34] Ibidem.
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