A clínica entre dois planos

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A clínica entre dois planos

El problema es otro, si usted tuviera la paciencia de escucharme.
El problema es este camino, este hermoso camino que fluye, corre
y socorre, pero que no corre derecho como podría, y tampoco corre
curvo como sabría, no. Curiosamente se deshace.

Créame (por una vez usted crea en mí) se deshace.

Océano-Mar. Alessandro Baricco.

INTRODUÇÃO

Trípticos são um conjunto de três pinturas numa só tela, uma só forma agrupando-as. Cada parte de um tríptico cria cores, formas, deformações, um movimento diferente cada um. Movimento que acontece no próprio lugar, tendo em vista o agrupamento de três momentos sob uma moldura que os une, diferenças agrupadas. É a mesma tela, com partes diferentes, sem, no entanto, dar a cada uma das partes do tríptico uma linearidade. Com Deleuze, entendemos que a pintura torna visíveis forças invisíveis, no entanto, sem sobrepor a tais forças um sentido, uma representação.[1]

5.1

Cada parte do tríptico, separadamente, provoca diferentes níveis de sensação, diferentes forças são captadas pela mão que pinta. Todas as partes juntas, pelo conjunto de sensações ou diferentes níveis de sensação que deflagram, geram movimento, um movimento que circula por entre as partes e faz a tela movimentar-se. Nunca é a mesma tela, mas é o mesmo lugar, paradoxo da arte em fazer ver forças invisíveis.

Cada visibilidade que uma parte do tríptico faz emergir e ganhar contornos, descontornos, nuanças, não implica em montar uma história do movimento que realiza, ou antes, não faz das partes do tríptico um todo linear e coerente. Muitas forças seriam inenarráveis e, por isso, o apelo da pintura como arte de provocar sensações: para que haja sensação, é preciso captar forças – a força de um grito, de um verbo, de um corpo, de um sofrimento, de tal modo que não haja um enredo pronto, uma história do grito, do verbo, do oceano, etc., mas tão somente as sensações. Aqui a potência do artista plástico.

O tríptico é sem dúvida a forma em que se coloca de modo mais preciso a seguinte exigência: é necessário que haja uma relação entre as partes separadas, mas essa relação não deve ser nem lógica nem narrativa. O tríptico não implica nenhuma progressão e não conta história alguma.[2]

Com a noção de tríptico, faremos ressonância mútua entre três domínios: filosofia, arte e clínica – numa relação que se movimenta no lugar. Não o mesmo igual lugar, mas um lugar que difere a cada parte. Ou seja, apesar de ser o mesmo lugar, há partes cada uma com suas especificidades, entrelaçadas, apontando uma a outra, uma na outra. Diferenças agrupadas sob uma ressonância pela qual se relacionam. Dado que nosso interesse é o encontro clínico, buscaremos a ressonância entre os primeiros encontros – filosofia e arte – com o terceiro – a clínica.

5.2

O texto está dividido em três momentos. Um primero que se refere, especificamente, a dois tipos de encontros e aos diferentes tipos de corpos/modos de pensar que envolvem: um encontro de reconhecimento ou recogniçao entre sujeito e objeto, e outro de sensacoes, encontro com o desorganizado e o intensivo; encontro entre um corpo organizado sob sua forma orgânica, com funcoes e finalidades, com um corpo desorganizado de sensacoes e forças; entre um pensamento pressuposto sob a égide da representação, do senso comum e do bom senso que formam um sujeito, com um pensamento desmanchado e forçado pelas sensações que desorganizam e desconstroem pressupostos.

Em um segundo momento, traremos impressões acerca do cinema de John Cassavetes, retirando de seu método e sua matéria inspirações para compor o plano da clínica, nosso terceiro momento. Apresentamos um cinema e um tipo de artes plásticas os quais pensam um corpo. Ao acompanhá-lo, algo se passa pelos nervos, são corpos diferentes. Num cinema dedicado ao corpo, sentimos o enfoque nos gestos, nas posturas de seus personagens. Se há alguma história ali a ser contada, são os corpos que a contam, de tal modo que não formam um enredo finalizado. No nível dos nervos, dos rostos contraídos, espasmódicos, convulsivos, histéricos, não é a história que importa, mas sim as forças.

5.3

A ideia Deleuze-guattariana de Corpo sem Órgãos (CsO), em suas diversas frentes, será o conceito-limite que acompanha e produz este tríptico, dando a ver uma tensão que não opta entre dois polos, mas que transita entre eles, dissolve formas produzindo contágio para criação e partilha do que se sente com sensações disformes. Um corpo que se produz na desorganização das formas para criar outras provisórias, um corpo que subverte relações entre órgãos, entre faculdades do pensamento e se acopla a sensações que embaralham um corpo organizado e (des)formam um sujeito.

Nas ressonâncias entre Filosofia, Arte e Clínica, emerge uma matéria clínica que é ao mesmo tempo a definição e o método pelo qual a clínica se experimenta: avaliação na sensação que desorganiza. Como as relações de um tríptico, uma clínica tateia sensações e afectos enquanto dá a ver seu método.

OS ENCONTROS E SEUS CORPOS

Nesse primeiro momento, trataremos de descrever os tipos de encontros que nos levaram à questão clínica, ao encontro clínico. O primeiro tipo de encontros é de reconhecimento. Aqui a vida segue sua paisagem costumeira, seu lugar comum. Trata-se de uma passagem que não nos incomoda ou, se incomoda, é pouco. É quando podemos olhar para uma maçã vermelha ou para uma maçã verde e dizermos: ‘sim, é verde, tem gosto de maçã verde, é uma maçã’; ou então quando dizemos que uma maçã vermelha e uma maçã verde equivalem a duas maçãs. A cognição reconhece aquilo que de diverso a ela se apresenta.

5.4

Encontro qualificado pelo que é habitual, cotidiano, usual. É quando encontramos pessoas e dizemos ‘bom dia’ se gostamos dela ou nada dizemos do contrário. Utilizando-nos de um substrato filosófico para qualificar esse tipo de encontro, denominamo-lo de encontros de recognição ou, simplesmente, reconhecimento. Nesse tipo de encontro nossas diversas faculdades – razão, sensibilidade, entendimento -, concordam entre si que é possível a um determinado objeto ser objeto de conhecimento possível, assim como o sujeito que o conhece é um sujeito de conhecimento possível. Em termos mais simples dizemos: sim, concordamos, este objeto pode ser visto e tocado, pode ser imaginado, lembrado, enfim, cumpre requisitos para ser conhecido, assim como é dado ao sujeito a capacidade de conhecer. Na sua experiência e no diverso dos objetos que encontra, o sujeito se sente familiarizado a assinalar suas impressões, a reconhecer o que lhe aparece, identificado ao seu cotidiano. É um senso produzido a partir daquilo que há de comum entre os diversos elementos perceptíveis que a realidade nos oferece.

Este senso é análogo a um órgão, cuja finalidade é produzir um acordo útil entre nossas diversas instâncias, nossos diversos sentidos e percepções, que nos proporcione sintetizar os conhecimentos que necessitamos para exercermos nossas atividades e nosso trabalho útil, seja no pensamento, seja no corpo. Um senso comum, ou uma forma de identidade que realiza a determinação de uma única direção para a diversidade complexa de nossas experiências, referida à unidade de uma forma particular de objeto ou de uma forma individualizada de mundo, aquilo que habitualmente denominamos ‘sujeito’.

(…) é o mesmo objeto que eu vejo, cheiro, saboreio, toco, o mesmo que percebo, imagino e do qual me lembro… e é no mesmo mundo que respiro, ando, fico em vigília ou durmo, indo de um objeto para outro segundo as leis de um sistema determinado.[3]

A este tipo de encontro se segue um tipo de corpo que o vive. Um corpo ‘senso-comum’, ou antes, um grande órgão para o qual não faltam esquemas sensório-motores para viver as situações cotidianas. Neste encontro de recognição, é licenciado ao corpo observar-se e reconhecer-se como corpo e como organismo, apesar de sua própria complexidade, seus elementos, seus órgãos, suas partes. Não falta organismo para se alimentar, para se deitar e dormir. Para se olhar no espelho e dizer ‘Sou eu’, bem como olhar os corpos ou sujeitos que o rodeiam. Olhos para ver, boca para comer, membros para se movimentar. Nossos órgãos estão aqui conformados ao seu hábito, à sua função orgânica, conformados ao ambiente que os cerca, bem como às formações sociais e os indivíduos que produzem e são produzidos neste contexto de hábito.

5.5

Ocorre que, um dia, acordamos com uma sensação. Ou então, as experiências cotidianas nos surpreendem. Um sonho, um evento, algo do diverso de nossas experiências nos faz desorganizar. Nossos esquemas sensório-motores cotidianos vacilam, o pensamento vacila. Algo em mim, uma instância em mim, já não reconhece – a si próprio, os objetos que me circulam, o corpo que tem. Algo em mim parece estar separado de mim mesmo. Já não é possível aqui se olhar no espelho e dizer: sim, este sou eu. E já estamos em presença de um outro tipo de encontro.

5.6

Neste tipo de encontro não há reconhecimento, síntese, mas algo de diverso se apresenta. Um desacordo, um choque no qual a sensibilidade apenas sente. Não reconhece, não concorda junto com as diversas faculdades que habitam um corpo que os objetos são familiares, que dois mais dois sejam quatro, que o corpo no espelho é meu corpo. Neste encontro, somente nos é dado sentir e isso nos confunde, nos desorganiza.

O sentido das coisas se desorganiza. O filósofo se pergunta: Quem pode acreditar que o destino do pensamento se joga nos atos de recognição?[4] Passa a estranhar o pensamento que reconhece e dá uma guinada na história da filosofia, dizendo que o pensamento, na verdade, não é a produção de um acordo concordante sobre o diverso da experiência, mas um desacordo vivido no choque do encontro com o diverso da nossa experiência. Há algo, na vida, que nos força a pensar, um encontro cujo objeto não é de recognição, mas um choque que a sensibilidade transmite às nossas diversas faculdades.

Em seguida, o filósofo se choca: Deleuze encontra em Artaud o corpo sem órgãos esquizofrênico, uma noção cuja radicalidade fará vacilar e modular sua trajetória filosófica.[5]

Neste encontro aparece um corpo, um corpo que estranha o próprio corpo e vive a dilatação de uma noite interior. (…) já estávamos nos debates de uma vida convulsiva, na noite de uma criação patológica que diz respeito aos corpos.[6] E o filósofo encontra um conceito (ou antes uma noção, ali um conjunto de práticas) que transmite a estranheza, a desorganização, os lapsos concernentes ao encontro que descrevemos. Encontro vivido como choque, onde as forças da vida e do diverso justamente forçam o pensamento ao movimento.

Mas que corpo é esse? Ou de que encontro estamos falando?

5.7

Pausa para o filme. O filme dará a ver esses corposem um tipo de encontro estranho. Aquilo que veremos no filme, também sentiremos: os corpos ali presentes darão a ver as forças invisíveis que mobilizam o pensamento. E o que se pensa são as atitudes e as posturas de um corpo. Não o corpo do primeiro encontro, não o organismo do corpo. Para captar esse encontro e este corpo que o sucede, a câmera está ligada permanentemente, até o rolo da película acabar. O cineasta abre o roteiro para improvisos e imprevistos dos atores no limite de seus corpos. Aquilo que a câmera registra, bem como o método de filmagem, tornar-se-ão o próprio filme. As lentes fazem tato, contato, contágio. As lentes de uma câmera háptica.

 

O FILME

Branco sob branco, branco da toalha na mesa de jantar, uma cristaleira ao lado com pratos, copos. Trata-se do primeiro plano que a câmera monta[7]. Ao fundo a cama, colcha branca. Mesa à frente, cama ao fundo, o quarto e a sala de jantar são um só e mesmo cômodo.

É manhã, a mulher está na cama. Ela agora é o primeiro plano: chorando, deitada, para cima os braços. Placas nervosas imobilizadas: braço enrijecido, punho fechado, o movimento mais perceptível é o do rosto, da lágrima que nele escorre.[8] A câmera está parada, é também uma placa nervosa imobilizada, testemunhando algo que quase para: o corpo rígido da personagem Mabel Longhetti.

Corpo que vibra, lágrima que cai, rosto que se contorce. A câmera capta a presença de um movimento intenso, um micro-movimento antes mesmo do gesto. Um ‘pré-movimento’ – como prefere dizer Hupert Godard – que antecipa algo, um prenúncio, provocando a experiência cinestésica imediata em quem assiste.[9] Modificações no rosto, série de movimentos intensivos, suas expressões.

Em outras palavras, uma série de micromovimentos sobre uma placa nervosa imobilizada. A partir do momento em que uma parte do corpo teve de sacrificar o essencial da sua motricidade para tornar-se o suporte de órgãos de recepção, estes terão apenas principalmente tendências ao movimento, ou micromovimentos capazes, para um mesmo órgão ou de um órgão a outro, de entrar em séries intensivas.[10]

De súbito, Mabel levanta o tronco e chama pelo marido, Nick Longhetti. Agora os olhos dela estão bem abertos. Quem atende ao chamado de Mabel é Garson, Garson Cross, a quem Mabel conheceu num bar na noite anterior. Não sabemos se Mabel dormiu com ele. Não sabemos qual a história. A narrativa do filme não é cronológica, não tem começo, meio e fim, mas outro tipo de história narrada pelo corpo em seus movimentos, uma história desorganizada.

5.9

Mabel dá-se conta do marido ausente, a queda da promessa de uma noite especial feita no dia anterior. Faz cair o tronco na cama, não sem antes fechar os olhos e cair o rosto. A câmera testemunha, ela quase tateia essas expressões.

Pouquíssimas horas depois, Mabel é acordada pelo marido que chega. Pelo menos oito homens o acompanham, são colegas de trabalho. Vêm do estaleiro, da hora-extra que impediu Nick de passar a noite com sua esposa.

Eles todos almoçam à mesa, no quarto-sala do casal Mabel e Nick Longhetti. Os dois estão sentados cada um em uma ponta. Ao redor, oito homens pelo menos. Uma multidão em Mabel. Ela se esforça para ser atenciosa, ainda que insegura. Extremamente atenciosa com a multidão de trabalhadores. Sente-se uma tensão.

5.10

Eles comem espaguete. A cena é familiar, mas a sensação é de um estranhamento constrangedor quase insuportável. Refeição trivial, ela conversa com cada um dos homens. Toca em alguns, pede para que cantem, acaricia-os. Da boca de um italiano sai um esboço de ópera, um canto meio minguado. Atravessa-lhe outro canto, vigoroso, intenso, ária de Aida da boca de um negro nova-iorquino do Harlem. Ele canta para Mabel.

Constrangidos, enredados na mesa de jantar pela atenção de Mabel, o constrangimento se senta à mesa. A cena é longa, por demais longa e sem cortes, para que a aparição dos micro-movimentos seja forçada àquele que vê a cena, testemunha participativa de sensações.

Estamos no centro de uma obscenidade que faz vacilar a cena, que excede à própria ideia de representação, que nos faz entrar no filme por bem ou por mal. (…) O objetivo não é tanto organizar o prazer do espectador, representando uma cenografia onde tudo seria irremediavelmente visível, mas sim submergir a sua percepção através de um jogo de facetas múltiplas que impeçam, constantemente, o olhar de fixar-se sobre um objeto e de encontrar a distância certa. Sempre muito longe ou muito perto, o espectador não consegue jamais assenhorar-se do plano.[11]

Os rostos em primeiro plano, um colega ali derruba espaguete nas calças, outro mostra um rosto constrangido pelo toque das duas mãos de Mabel nas bochechas. Ela não para de brincar, mexer e tocar nos colegas de Nick. Quer ser legal com os caras, ela mesma o dirá. Parece seduzi-los até que, no auge do embaraço, Nick explode e a faz calar na frente de todos: senta a bunda aí, diz.

5.11

Os colegas foram embora. Nick está furioso. Eles não sabem que ela é assim, diz Nick. Eles não sabem o que fazer, como se comportar. Mabel retorce a boca, endurece o polegar. Micro-movimentos, série intensiva de espasmos. Ela quer ser uma boa esposa, ela quer ser legal com os caras que trabalharam tanto à noite. Ela os enreda a todos. Ela é o enredo.

A influência. Todos na mesa estão sob influência. Mabel alastra.

O histérico é ao mesmo tempo aquele que impõe sua presença, mas também aquele para quem as coisas e os seres estão presentes, presentes demais, e que dá a cada coisa e comunica a cada ser esse excesso de presença. Há então pouca diferença entre o histérico, o histerizado e o histerizante.[12]

Corpos colados, misturados, atravessados. O corpo de Mabel atravessa o corpo dos demais personagens, a tal ponto que não se sabe mais do lado de quem está a histeria, a loucura, a intensidade, a influência. O corpo torna-se um limite, limite do que se pode ver, daquilo que é invisível, não-representável. Para tornar-se limite, John Cassavetes faz seus atores se entregarem com seus corpos no exercício cênico até um ponto de ruptura, ponto onde já não haverá mais representação. Os gestos, a expressão, os corpos contarão uma história, uma encarnação do roteiro em processo contínuo de escrita, no corpo do ator.

Quedas, desequilíbrios, rostos retorcidos, rostos que sangram, paralisias. Quedas em diferentes níveis, de alto a baixo, dos olhos que veem ao estômago que sente aquilo que vê, o peito que sente o que vê. A sensação é provocada por diferenças de níveis, dirá Deleuze referindo-se à pintura de Francis Bacon, porque passa de um domínio a outro, de um órgão a outro. Desequilíbrio, desorganização, há alguma violência nisso tudo. Violência da sensação que atinge diretamente o sistema nervoso, tornando o organismo suspenso e desorganizado, imobilizando o esquema sensório-motor.

A câmera de Cassavetes, ao suspender o organizado e fazer saltarem sensações puras, fluxos de sangue, de amor, de álcool; ao desfazer as formas fixas em favor das forças – unidades rítmicas da sensação -, promove uma histeria. As paralisias, os rostos retorcidos, as sonoridades altas e confusas, essa desorganização, se servem de desmanchamento das formas. Nesse desfazimento, um contágio se promove.

A sensação faz com que, por um momento, todos sejam histéricos, todos estão sob influência. A sensação, nos filmes de Cassavetes, nos força a sentir aquilo que os personagens sentem. Nessa partilha, que é ao mesmo tempo violência no corpo, sentida como horror na desorganização dos nossos esquemas cotidianos, novas formas emergem. O tato comparece: a câmera que se aproxima – rostos no primeiro plano, formas desfeitas no primeiro plano, fluxos de sangue, de amor, de desorganização – dá a ver uma confusão de desfazimento do organismo, mas igualmente se aproxima e promove tato, um novo contorno.

Quando o corpo visível enfrenta, como um lutador, as potências do invisível, ele apenas lhes dá sua visibilidade. É nessa visibilidade que o corpo luta ativamente, afirma uma possibilidade de triunfar que não possuía enquanto essas forças permaneciam invisíveis no interior de um espetáculo que nos privava de nossas forças e nos desviava.[13]

A câmera se aproxima. É como se tocássemos as peles, as sensações, conquista de uma nova forma. Os corpos que se aproximam, oscilam, caem, mas igualmente se reconstituem: “momentos quase milagrosos onde o corpo se desfaz e, ao mesmo tempo, se revela a si mesmo”.[14] Ela se aproxima cada vez mais de um corpo, como se pudéssemos com os olhos tateá-lo. Quanto mais se tateia, mais se desorganiza o organismo – ‘de perto, ninguém é normal’ diz Caetano Veloso na música ‘Vaca Profana’; e nessa dissolvência, tão mais necessário esse mesmo tato para revestir o desorganizado de cautela, prudência.

5.12

Quanto mais se aproxima, de acordo com o enquadramento que a cena adquire, mais o corpo se reveste de sensações. O corpo dos atores e atrizes, o corpo do espectador. E as sensações modulam: signos de potência aqui, de impotência ali, com uma música a fortalecer, um grito a alegrar, um fluxo de álcool a eletrizar, um tapa a fragilizar.

O primeiro plano é o plano do contato, mais próximo do rosto, não o rosto orgânico, mas o rosto que expressa a potência ou a impotência que sente. Modulações e sensações que não são poucas. Primeiro plano do tato, do contorno. Um novo contorno para novas sensações, o método de Cassavetes é aquele que oscila de acordo com cada nova sensação que uma cena ensaiada, filmada.

Colocamos lado a lado dois tipos de encontro e os corpos que os sucedem. Pelas lentes do cineasta John Cassavetes procuramos acentuar aquilo que no segundo tipo de encontro descrevemos: sensações que dissolvem um corpo e seu organismos, dando a ver um outro tipo de corpo que percorrem e fazem mutação na organização dos órgãos. Pela via da sensação, o cineasta exprime os corpos caindo, se retorcendo: a desorganização em cena.

Mas por que corpos que vacilam? Por que dar a ver tantos gestos esquisitos, fluxos de desorganização, corpos retorcidos e quedas? Deleuze, Artaud e Cassavetes ajudam-nos a compreender a insuficiência de certos modos de pensar – fundamentados nos atos de recognição e que forjam um corpo de um só órgão, o corpo orgânico. Artaud gritara que o corpo com seus órgãos funcionais de modo algum se equivalem ao corpo. Neste grito, ele denunciava todo o peso da organização que as formações sociais impõem ao corpo, ao desejo.

Os corpos que vacilam nas lentes de Cassavetes e o Corpo sem Órgãos de Deleuze e Artaud dão visibilidade àquilo que em nós é criação. O modo pelo qual se transmite essa visibilidade é fazendo-nos entrar à força, de qualquer modo, na obra, para junto com ela sentirmos aquilo que nos desfaz enquanto sujeito. A sensação é agente de deformações no corpo e as de-formações indicam desfazimento de formas rígidas em proveito de novos arranjos pelos quais a criação do ‘novo’ se produz.[15]

Deleuze, ao tomar o conceito de Corpo sem Órgãos em Artaud, indica uma dimensão para além das formas do sujeito e do organismo. Um domínio que não é o das formas nem tampouco dos valores pré-concebidos que as formações sociais impõem sobre os indivíduos, tornando paralisada a criação de outros modos de vida, outras subjetividades.

A sensação atinge um corpo e não um organismo. Ela embaralha o organismo, pois este não é suficiente para apreender a sensação, as ondas rítmicas, aquilo que não pode senão ser sentido. O corpo torna-se um limite, o organismo se desorganiza e o que resta é justamente o corpo. O organismo não é a vida, ele a aprisiona. O corpo é inteiramente vivo e, entretanto, não orgânico. O corpo é, por isso, sentido sob o organismo: quando a sensação nos atinge, é o corpo e não o organismo quem grita, ri, chora, convulsiona.

Assim como o corpo organismo não é suficiente para apreender a sensação, o pensamento em suas categorias representacionais se queda imóvel. Não mais senso-comum, não mais bom senso, não mais a linearidade das formas kantianas categóricas. O paradoxo é a sensação, quem pensa é o próprio corpo e não o organismo colocado em cima do corpo.

O CsO é uma noção que adquire diferentes tonalidades ao longo do pensamento de Gilles Deleuze. Em A Lógica da Sensação, este corpo emerge através da sensação: ela é mestra de deformações que, através de ondas de amplitude variável no encontro com forças externas ao corpo, atinge os órgãos, a carne e os nervos, desfazendo a forma do organismo em proveito do corpo literal. Este corpo literal é o que aparece quando o organismo se desfaz, ou, quando a forma do organismo deixa de ser equivalente ao corpo que o contém.

Há uma crueldade que aparece na dissolução da forma do organismo. Os órgãos ficam soltos quando percorridos pela sensação que adquire um caráter, dirá Deleuze, excessivo e espasmódico, rompendo os limites da atividade orgânica.

A não equivalência entre corpo e organismo foi reiterada em Mil Platôs, com Guattari. O corpo sem órgãos foi apresentado como um conjunto de práticas de experimentação, que colocam em circulação forças, intensidades que povoem o corpo, conjurando a forma organismo e promovendo novas formas, provisórias, sempre provisórias, no sentido em que não há finalidades nesta experimentação: nem formar um novo sujeito hegemônico através das experimentações que põe em circulação, nem tampouco tornar-se a própria desorganização. Esta desorganização não seria um novo ideal em detrimento de um ideal subjetivo, corporal.

Deleuze e Guattari parecem modular a radicalidade da noção artaudiana de CsO, ressaltando que dissolver o organismo, colocar em circulação forças desejantes que deem novas combinações aos órgãos e aos modos de vida não equivale a destruir o organismo, mas desfazer a sua organização, mostrando-a em sua provisoriedade. Esta é uma modulação de prudência que os autores salientam, salvaguardando no corpo todas as ‘cotas’ de organismo que ele precisa para continuar vivo e seguir desmanchando formas excessivas que aprisionem a criação.

É preciso ressaltar que, nos dois tipos de encontro que temos descrito, não há preeminência de um em relação ao outro. Os corpos deformados, vacilantes, bem como o CsO, não se separam dos corpos cotidianos com seus esquemas sensório-motores organizados. Não há preposição suficiente que indique a relação de imanência entre esses dois tipos de corpos. Em outras palavras, a desorganização e a dissolvência não são uma finalidade em si, bem como o organismo. O que se deflagra é a insuficiência de um corpo dirigido pela forma organismo, a hegemonia de uma organização que não é capaz de conter os afectos, as sensações que justamente embaralham os órgãos, investindo o corpo e o pensamento de intensidades que produzem novas organizações.

O que importa é o movimento, de uma forma a outra forma. E não deter-se numa forma hegemônica. E para isso, acompanham-se as sensações, as dissolvências, para uma avaliação que indique como, na desorganização desses corpos e suas formas, é possível criar novas formas.

O que queremos salientar, ao trazer este CsO em A Lógica da Sensação e Mil Platôs, é a dimensão de criação como um plano primeiro em relação ao plano das formas hegemônicas impostas pelas formações sociais, formas pelas quais um individuo e seu corpo se tornam um organismo e uma subjetividade assujeitada. O CsO já está aí, apesar de – e na – forma do organismo, arrastando-se nele “como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto e nômade da estepe”.[16] Sua presença é com o que nos debatemos e amamos. Frente a ele, a experiência subjetiva revira como Jano, bífida, mas duas direções da vida: para frente e para trás, compondo e decompondo, sendo e deixando de ser no processo de criação de si.:

A dimensão criativa presente na noção de Corpo sem Órgãos é sucedânea da concepção de desejo como produção, não atrelado a uma falta constitutiva, como lemos em Mil Platôs. Desejo que não remete a sujeitos, a formas fechadas e definidas de fora do indivíduo, mas que se define pelo seu próprio exercício de experimentação e que se compraz no ato de desejar – a “alegria imanente ao desejo” de que nos falam Deleuze e Guattari.[17]

Escultra de Francesco Albano

Escultra de Francesco Albano

Desde O Anti-Édipo há uma concepção de desejo como produção, o que implica recusar qualquer determinante prévio às maquinações construtivas, como os processos edipianos e as relações familiares tomadas como instâncias reguladoras e mediadoras da subjetividade. Desejo que será definido por seu caráter produtivo, nunca representativo. De acordo com Deleuze e Guattari, seriam as operações edipianas que atrelariam desejo à falta e regulariam toda a produção através dessa falta.

Os problemas do desejo, neste sentido, não são problemas de falta, mas de “Como”. Como Criar para Si um Corpo sem Órgãos? Como lograr habitar esta dimensão de criação que acontece apesar da forma sujeito na qual me reconheço?

Escultra de Francesco Albano

Escultra de Francesco Albano

Problemas do desejo. Ou antes, tensões entre corpo orgânico e corpo sem órgãos. Trouxemos o cineasta John Cassavetes e um desfile de corpos que vacilam, que caem. Há uma certa violência, uma crueldade no desfazimento do corpo orgânico e da subjetividade a ele coextensiva. Se o desejo é uma produção não atrelada à falta e o ato de desejar se preenche de si próprio, se ele é alegria imanente, por que o horror, as quedas?

Este plano de desorganização, sem forma, plano de forças que tentamos afirmar através de Deleuze e Guattari, é paradoxal. Há um só tempo, ele é vivido como excesso e criação: vetor bífido da vida. Há na sensação das forças que dissolvem as formas do organismo e do sujeito um excesso, posto que este plano é informe, não tem nome, não tem sujeito. É um plano que, por não ter formas, assegura que novos arranjos se façam. Há um excesso porque tais forças não são ainda passíveis de serem comunicadas, de ganharem nome, sentido.

Antonin Artaud

Antonin Artaud

Os gestos de um corpo percorrido pelas forças dão a ver aquilo que é insuportável demais na vida e ultrapassa nossos regimes perceptivos, sensório-motores, que não suportam mais uma dada organização, mas deseja outras. Deflagra-se neste excesso uma mutação subjetiva e corporal que deseja o novo. Como indica Jousse , “o gesto é uma forma de entrar – para o pintor, no quadro; para o cineasta, no filme -, de penetrar a qualquer preço na obra, de fazer corpo com o espaço que se quer explorar”.[18]

A sensação vivida como excesso, tem um vetor de propagação intenso, seu ‘contágio´. O CsO de Deleuze e Artaud, bem como o plano cinematográfico de Cassavetes, são importantes operadores que nos ajudam a criar um método da clínica. O encontro clínico emerge e se faz na tensão entre dois encontros, entre dois tipos de corpos. O encontro clínico é um plano de experimentação que faz frente crítica aos modos subjetivos hegemônicos, acolhendo os corpos que padecem de sua forma sujeito. Em Deleuze, Artaud e Cassavetes, encontramos um plano clínico e uma matéria clínica.

O MÉTODO DA CLÍNICA

Com o dispositivo de Cassavetes dizemos: isso que não se consegue verbalizar e nomear pode ser partilhado pela via da sensação. Na sensação do cinema de Cassavetes, chegamos à convergência da clínica e do CsO.

5.17

O cinema de Cassavetes deriva de um método processual que faz do filme uma obra aberta sem uma finalização linear: o filme registra o próprio ato de filmar. Filma-se a experimentação contínua da equipe de filmagem, a câmera e o microfone estão sempre ligados.

os principais eixos do método de Cassavetes: cumplicidade e mesmo identidade entre produtor e diretor; recusa a uma submissão restritiva à técnica, colocada a serviço do filme e não o inverso; proximidade e relação privilegiada com o ator; mistura de improvisação e texto para encontrar uma narrativa desembaraçada de códigos e clichês; enfim, montagem concebida como um work in progress, em processo.[19]

É assim também no método da clínica: experiência de abertura no encontro para dar a ver as forças que percorrem os corpos e tomar o ‘partido’ daquilo que, na sensação, faz partilhar afectos.

Cassavetes monta uma máquina para não deixar os personagens sozinhos com aquilo que sentem. No excesso que a personagem Mabel sente, o que o diretor faz é engordar, engordar, engordar as sensações da personagem até que elas saiam de Mabel e se alastrem pelos outros personagens, inclusive o espectador. Ao fazer isso, o cineasta parece criar um plano comum que tira Mabel da experiência solitária de quem vive um excesso, da impossibilidade de compartilhar aquilo que sente.

Lentes cassavetianas tateiam forças disformes e, ao mesmo tempo, produzem contorno: tato e contato. A câmera parece tatear constantemente os corpos, as expressões, diante da desorganização disparada.

Somente uma experiência de sensibilidade, poderá fazer partilhar aquilo que talvez seja muito difícil de dizer. Cassavetes vai lançar mão de um método, um jeito de filmar. Rostos, muitos rostos, muitas expressões. A câmera se demora nos gestos expressivos num movimento que acontece no próprio lugar, gestos de paralisia, de endurecimento, de tremor.

A sensação que percorre os corpos neste encontro desorganizado que o cineasta filma dá a ver um método clínico que avalia os modos de produção da subjetividade e acessa o plano desorganizado inerente aos indivíduos. O filme e a clínica se encontram nesta experiência afetiva desorganizada que ambos os métodos querem acessar. A clínica, ela também, não se separa de seu objeto nem o separa de seu processo de produção, colocando-os num mesmo plano de contato. O movimento clínico será acompanhar um mesmo movimento que vai da dissolução de formas fixas que devem, justamente, se dissolverem para que novas apareçam.

No plano das sensações e da violência do desacordo, eu sinto o que você sente, e um outro se torna possível, acordo que chamamos de partilha diferente do que se acorda no senso comum.

A avaliação clínica procede por sem pressupostos valorativos e judicativos, mas tão somente uma atenção às doses. O que se suporta? Que índices de novidade uma desorganização nos faz experimentar? O que se avalia é o que se sente, as forças que se sente como insuportáveis e que já indicam um modo de vida em diferenciação, que pede efetuação. A avaliação se faz pela possibilidade de abertura das formas de si acessando o que não se suporta porque ainda sem suporte e sem território. Nessa abertura, torna-se visível a mutação sensível que comparece como excesso e como novidade.

A avaliação como ato clínico pergunta “COMO”. A pergunta “Como Criar Para Si um Corpo sem Órgãos?”, que abre o sexto platô de Deleuze e Guattari, nos dá a pista para acessar esta dimensão desorganizada que já habita para além dos sujeitos. Como acessar esse CsO que se faz e aquilo que advém como nova organização nos indivíduos que comparecem na clínica?

Parece-nos que, não podendo libertar-se dessas correntes que o atormentavam, ele acabou tomando com força o partido delas, entusiasmando-se ao figurá-las na sua vitória real, no seu triunfo.[20]

Na tensão entre formas e forças, corpo orgânico e corpo sem órgãos, o plano da clínica acompanha um sujeito transitório, quer dizer, um movimento de mutação onde organizações se desfazem para que outras possam se concretizar. Esse movimento é ‘um respiro do CsO’, ou, quando este deixa de impedir conexões para respirar a produção e deixá-la livre para formar novas produções, garantindo a permanência do processo. Nesse respiro, vem à tona um sujeito que pode usufruir daquilo que o desejo nele produz, sem tornar-se uma subjetividade hegemônica. O CsO cria para si uma organização que é passagem, uma organização pela qual um sujeito de passagem pode dizer: Então era isso! Ao invés de dizer Então era eu!

Então era isso! Sinto que algo se desorganiza em mim, sinto que algo deseja em mim, apesar de mim. Sinto, sensação que não remete a sujeito nem a objeto. Mesmo que se diga EU SINTO, este EU não é o sujeito, mas impessoalidade que deseja. Aceder ao desorganizado será menos a busca de uma nova organização do que uma abertura ao deixar falar, expressar o desorganizado em nós. Perguntar-se “COMO práticas fazem falar um CsO inexprimível em mim?

Isso respira, o CsO respira no verbo desejar. Nem desejo de desorganização nem tampouco desejo de organização, mas nessa tensão que é paradoxalmente sofrimento e criação, insuportável, emerge uma suavidade alegre que tateia o movimento de desejar.

Uma clínica para além da dicotomia representação x CsO emerge: clínica não voluntarista, sem valores pressupostos, com seu corpo vulnerável. Corpo tateante que, no contato-contágio acompanha variações nas avarias que os corpos vivem e as doses de organismo que se vai, das forças que vêm e do corpo que permanece.

Avaliação das doses, a clínica visa, de dentro da experiência, tatear um “entre polos”. Os dois encontros que definimos no começo deste texto e os corpos que os sucedem: entre o organismo e o CsO. Estes polos não se separam um do outro, mas há uma tensão de permeabilidade entre eles, ou, em outras palavras, a tensão entre tais polos assegura que nem a organização atinja o limite máximo da forma rígida – um corpo organismo, uma subjetividade hegemônica, nem tampouco que a desorganização atinja o limite máximo da improdutividade – um corpo vazio, abismal, mortífero. Por isso insistimos na tensão entre eles. Como diz Orlandi: “a coisa é grave, porque os corpos sem órgãos ocorrem em mim”.[21]

O CsO é já uma experiência limite, colocada em movimento apesar e para além de uma intencionalidade. E assim a criação de um CsO move-se com risco e algo de excessivo: histeria, polifonias, o demasiado desorganizado. Nessa tensão própria ao corpo, entendemos que não é suficiente abolir a representação em favor de um plano demasiado desorganizado. O demasiado rígido do senso comum, do sujeito unificado, equivalerá aí ao demasiado desorganizado do improdutivo CsO: o risco. O risco do improdutivo do CsO é não produzir nada. Entre os órgãos soltos e uma nova conexão, nesse entretempos, o risco do improdutivo como finalidade, órgãos soltos a esmo que não tateiam como um cego mas que esvaziam-se.

Deleuze e Guattari, numa operação de prudência, ressaltam que a criação de um CsO opõe-se ao organismo mais que aos órgãos. Porque opor-se aos órgãos é minar possibilidades de rearranjá-los. Esse mesmo CsO que impede organização para permutar relações entre órgãos, objetos, é também o risco de que nenhum rearranjo aconteça. E eis que se sofre dessa desorganização assim como se sofre da organização. “Percebemos pouco a pouco que o CsO não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. O inimigo é o organismo”.[22]

5.19

No movimento prudente torna-se inevitável que a pergunta avaliativa se faça: por que se colocar em favor dessa instância de excesso, de desorganização? Por que erigir uma crítica ao sujeito, ao pensamento representativo? O que se ganha quando o desorganizado do CsO e seu improdutivo são tomados como positividade? O absurdo de tal aposta na desorganização é a busca de uma nova finalidade?

E eis que não nos resta senão uma resposta igualmente absurda: sim e não. O fim do organismo é morte e o CsO ao limite, é morte. Seu limite total é a ausência do desejo, esse mesmo desejo que se quer preservar a todo custo, que se quer preservar a ponto de torcer e embaralhar regimes de funcionamento de órgãos, de sensações estranhas e limítrofes. É arriscado, é tensionado, é desconstrução. Por que não parar no reconhecimento do corpo cotidiano?

Insuficiente corpo cotidiano que sofre daquilo que nele deseja, daquilo que nele desorganiza, mas que nesse sofrer tem as condições da criação. Paradoxal CsO. Dissemos que algo deseja em mim. “Isso funciona em toda parte: às vezes sem parar, outras vezes descontinuamente. Isso respira, isso aquece, isso come. Isso caga, isso fode”.[23]

Quando vão embora o sujeito e o objeto, duas coisas acontecem: um desejo o menos voluntarista possível e um desejo que não procede pela falta. Nem desejo em dependência com sujeito, nem objeto dependendo da falta. O desejo desvela-se processual, não se detém numa função, numa finalidade que o permite movimentar-se e criar.

A ausência de finalidade não equivale de modo algum a um pouso definitivo no plano das desorganizações, mas é a condição de possibilidade para que ocorra a emergência desse plano de sensações através do qual se produzam diferentes sentidos para os modos de vida, diferentes modos de vida. A clínica se diferenciará do seu objeto, sem dele se destacar: no desorganizado, na ausência de valores pressupostos.

As problemáticas em torno de “Como Criar Para Si Um CsO?” não se traduzem pela afirmação de um corpo vazio, em que a experimentação com a permuta de fluxos entre órgãos torne-se um improdutivo tomado como finalidade.

Mas por que este desfile lúgubre de corpos costuras, vitrificados, catatonizados, aspirados, posto que o CsO é também pleno de alegria, de êxtase, de dança? Então, por que estes exemplos? Por que é necessário passar por eles? Corpos esvaziados em lugar de plenos. Que aconteceu? Você agiu com a prudência necessária?Não digo sabedoria, mas prudência como dose, como regra imanente à experimentação: injeções de prudência.[24]

O respiro do CsO, como temos mencionado, é o momento no qual a emergência de um sujeito transitório se faz possível, onde a permeabilidade entre forma e força torna o plano indiferenciado ou improdutivo do CsO algo de determinado ou determinável. Como diz Orlandi, são imantações passageiras, mas passageiras o suficiente para determinar a qualidade desse corpo, que ondas passam por ele, quais doses o tornam mais ou menos arriscado.[25]

As ondas que determinam e passam pelo CsO são sentidas, emitem sinais indicadores da experimentação em circulação. Uma avaliação se faz, sintetizando uma forma na qual o turbilhão do desorganizado difere de si e possibilita um sujeito provisório manifestando a potência participativa no corpo feito apesar de si. O CsO desde sempre está em movimento. O que se cria são as condições prudentes de acesso a essa dimensão involuntária.

CONCLUSÃO

Uma asserção – há algo na vida que nos desorganiza apesar de nós -, lança-nos um grande desafio experimental e experimentado dos encontros clínicos. Repetidas vezes dissemos: CsO. Fazer exprimir um, para que se torne visível o corpo que lá já estava, escondido, motor imóvel que pulula entre corpos organismos. A clínica, ela tem também seu corpo que se tece na tensão entre formas e forças.

Doses de corpos, orgânicos e não orgânicos. Doses de pensamento, unificado e fragmentado. Doses que não param de circular. Como concluímos isso que não para? Tateando um pouco mais e deixando o tato respirar, paragem provisória, respiro do CsO.

Os olhos veem a tela: fluxos de amor, álcool, partidas, partilhas, passagens, idade, tristezas, loucuras, alegrias inauditas, inaudíveis. Os olhos do terapeuta veem se sentar pacientes na cadeira à sua frente. Os olhos ouvem uma polifonia de sujeitos e corpos sem órgãos. As mãos tateiam aquilo que a visão das formas não consegue sentir.

– Estou cansada de mim, sou uma chata e estou ficando velha.

– Quando jovem fui uma idiota, hoje já não há mais tempo para fazer diferente.

– Meu filho tem 40 anos e depende de mim.

– Saiu para cheirar cocaína com meus tênis, engraçado, temos o mesmo número.

– Meu trabalho acabou: a cooperativa foi privatizada e o sindicado, subornado.

– Estou decepcionado, me aposentando e tenho medo do tempo sem trabalho.

– Bebo, não consigo transar com minha esposa.

– Minhas filhas não são minhas amigas, meu marido é velho chato e eu não sei do que eu gosto.

– Não tenho novidades para contar hoje.

Os olhos veem queixas, quedas, demandas. As demandas são os fluxos. Eles aparecem numa velocidade enorme, vertiginosa, os sons, os sentidos, as emoções. No esgotamento da organização, as possibilidades parecem cair e as demandas, sem réplica.

Os olhos não podem ver, eles não dão conta. Passa muito rápido. Dos olhos à consciência que organiza, ouvimos demandas intensas, sem aparente réplica. Mas, de repente, os olhos tateiam, as mãos olham, tremem.

Para qualificar a relação entre o olho e a mão, e os valores pelos quais passa essa relação, não basta dizer que o olho julga e as mãos operam. A relação entre a mão e o olho é infinitamente mais rica e passa por tensões dinâmicas, inversões lógicas, trocas e vicariâncias orgânicas.[26]

As mãos, aparentemente imóveis, tremem, tateiam com micromovimentos. Não há réplicas para ver, mas tatear, com mãos insubordinadas aos olhos, aquilo que se embaralha. E nesse embaralhar, as sensações, as forças dão a ver os corpos em presença clínica. O tato dos olhos lança a mão ao trabalho da pintura.

O trabalho clínico, por sua vez, tateia, um instrumento avaliativo diante dos afectos que turvam a visão, as formas. Diante do que se desmancha, tateiam-se as forças que delinearão uma nova forma. Tato de forças que presentifica potências profundas, desconhecidas pelo organismo que, desorganizado, assusta-se. Entre formas e forças, um respiro: o tato é um procedimento experimental, um conjunto de práticas para fazer emergir um corpo maleável, respirado, novo.

Não há pressuposição técnica, valores pré-estabelecidos de réplica e intervenção, mas uma experimentação tateante que faz ela mesma um contorno para as polifonias que pululam. Os acordos da consciência, ao ouvirem demandas, licenciaram-se ao tato. Bloquearam-se frente àquilo que na vida é forte demais e que os esquemas organizados não suportam. Ao tatear os olhos se turvaram, as mãos vibraram e as potências de um corpo emergiram na desorganização, nas potências mais profundas que o organismo (esse corpo organizado que não equivale ao corpo) não pôde replicar. Irrompe aquilo que a um só tempo pode fazer sofrer e fazer potencializar, o indiferenciado que, ao tornar-se visível, ganha contorno.

O encontro clínico alça um plano de partilha: torna-se contato e este, contágio. O contrato terapêutico torna-se com tato. O contrato é alvo dos organismos e das formas rígidas, hegemônicas no corpo. Há momentos em que o organismo demanda sua hegemonia quando um indivíduo pede que de um CsO ele seja curado de vez, e a desorganização, enterrada. Afinal, desorganizar-se é excessivamente doloroso às vezes. Mas como dar a sentir que é nessa mesma sensação de excesso que o corpo se refaz? Fazendo expressar, vir à superfície aquilo que desorganiza.

A clínica maneja paradoxos e movimentos no lugar, trípticos de organização, desorganização, reorganização, passagens para alegrar na potência de mutação inevitável. Tatear, um tateio pelo qual o CsO se movimenta em sua potência desorganizada nas formas. Excesso que se maneja com doses de um contato que avalia, uma via pela qual a potência do desejo faz criar modos de vida.

5.20

BIBLIOGRAFIA

  1. Deleuze, Gilles, Cinema 1: A Imagem-movimento, São Paulo, Brasiliense, 1985.
  2. Deleuze, Gilles, Diferença e Repetição, Rio de Janeiro, Graal, 2006.
  3. Deleuze, Gilles, Lógica do sentido, Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 2008.
  4. Deleuze, Gilles, Francis Bacon e A Lógica da Sensação. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007.
  5. Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 3, São Paulo, Ed. 34, 1996.
  6. Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo, 34, 2010.
  7. Godard, Hubert, Gesto e Percepção, In Roberto Pereira e Silvia Soter (orgs), Lições de Dança 3, Rio de Janeiro, UniverCidade, 2002.
  8. Jousse, Thierry. John Cassavetes. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992.

DOCUMENTOS ELETRÔNICOS

  1. Benevides, Regina, e Passos, Eduardo, O que pode a clínica? A posição de um problema e de um paradoxo. Disponível em <http://www.slab.uff.br/images/Aqruivos/textos_sti/Eduardo%20Passos/texto10.pdf> (acesso em 12/02/2010).
  2. Deleuze, Gilles, Les Cours de Gilles Deleuze, Kant – Síntesis y tiempo. Aula de 14/03/1978. Disponível em <http://www.webdeleuze.com/php/texte.php?cle=62&groupe=Kant&langue=3> (acesso em 23/02/2011).
  3. Orlandi, Luiz Benedito Lacerda, Corporeidades em Minidesfile (2ª Edição Corrigida). <http://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2013/05/09/corporeidades-em-minidesfile-obs-2a-edicao-corrigida-luiz-b-l-orlandi/> (acesso em 15/05/2013)

FILME

Uma Mulher Sob Influência. Direção: John Cassavetes. Produção: Sam Shaw para Faces International Films, Inc. Intérpretes: Peter Falk, Gena Rowlands, Fred Draper, Lady Rowlands, Katherine Cassavetes, Matthew Laborteaux, Matthew Cassel, Christina Grisanti, O.G. Dunn, Mario Gallo, Eddie Shaw, Angelo Grisanti, Charles Horvath, James Joyce, John Finnegan. Roteiro: John Cassavetes. Estados Unidos, Faces International Inc. 1974. DVD (148 min), son., col.

Notas

[1] Gilles Deleuze, Francis Bacon e A Lógica da Sensação. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007.
[2] Ibid., p.74.
[3] Gilles Deleuze, Lógica do sentido, Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 2008, p.80.
[4] Gilles Deleuze, Diferencia y repetición, trad. María Silvia Delpy y Hugo Beccacece, Buenos Aires, Amorrortu, 2002.
[5] Para uma contextualização das diversas frentes do pensamento de Gilles Deleuze acerca da noção de Corpo sem Órgãos e os problemas concernidos nessas frentes, sugerimos o texto Uma Reviravolta no Pensamento de Deleuze, de José Gil, presente na coletânea de Eric Alliez, Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo, 34, 2000.
[6] Gilles Deleuze, Lógica do sentido, Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes, São Paulo, Perspectiva, 2008, p.101.
[7] Primeiro plano é o termo técnico dado à posição ocupada pelas pessoas ou objetos mais próximos à câmera, à frente dos demais elementos que compõem o quadro.
[8] Gilles Deleuze, Cinema 1: A Imagem-movimento, São Paulo, Brasiliense, 1985.
[9] Hubert Godard, Gesto e Percepção, In Roberto Pereira e Silvia Soter (orgs), Lições de Dança 3, Rio de Janeiro, UniverCidade, 2002.
[10] Gilles Deleuze, Cinema 1: A Imagem-movimento, São Paulo, Brasiliense, 1985, pp. 114-115.
[11] Thierry Jousse, John Cassavetes. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992, p.92.
[12] Gilles Deleuze, Francis Bacon e A Lógica da Sensação. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007, p.57.
[13] Ibid., p.67.
[14] Thierry Jousse, John Cassavetes. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992, p.90.
[15] Gilles Deleuze, Francis Bacon e A Lógica da Sensação. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007.
[16] Gilles Deleuze, e Félix Guattari, Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 3, São Paulo, Ed. 34, 1996, p.10.
[17] Gilles Deleuze, e Félix Guattari, Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 3, São Paulo, Ed. 34, 1996, p. 16.
[18] Thierry Jousse, John Cassavetes. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992, p. 61.
[19] Ibid., pp.26-27.
[20] Gilles Deleuze, Félix Guattari, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo, 34, 2010, p.31.
[21] Luiz B. L. Orlandi, Corporeidades em minidesfiles, documento eletrônico, 2007, p. 20.
[22] Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 3, São Paulo, Ed. 34, 1996, p. 21.
[23] Gilles Deleuze, Félix Guattari, O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo, 34, 2010, p.11.
[24] Gilles Deleuze, e Félix Guattari, Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 3, São Paulo, Ed. 34, 1996, p.11.
[25] Luiz B. L. Orlandi, Corporeidades em minidesfiles, documento eletrônico, 2007.
[26] Gilles Deleuze, Francis Bacon e A Lógica da Sensação. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007, p.155.

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