“Pai, você não vê que eu estou queimando? ”: questão colocada sobre a relação entre imagem e trauma motivada por uma pandemia[1]
BERGAMO
Resumo
O artigo propõe uma discussão a partir das imagens da morte que circularam no mundo durante a epidemia de coronavírus, especificamente as imagens de caixões e valas funerárias que apareceram em jornais, noticiários de TV, revistas e redes sociais nos últimos meses. Empreendendo uma análise que poderíamos chamar de fenomenológica, o texto articula a relação entre o conceito de imagem proposto pelo filósofo francês Georges Didi-Huberman e o tema do trauma lido através da psicanálise de Freud e Lacan. Tomando como ponto de confluência desta questão um sonho narrado por Freud em A interpretação dos sonhos, ao qual o título do artigo faz referência, o trabalho apresenta uma reflexão filosófica a respeito da morte e da responsabilidade ética e política implicada na morte do outro.
Palavras-chaves: imagem, trauma, covid-19, morte, pandemia, ética.
Abstract The article proposes a discussion based on images of death that circulated in the world during the coronavirus epidemic, specifically the images of coffins and funeral trenches that have appeared in newspapers, TV news, magazines and social networks in recent months. Undertaking an analysis that we could call phenomenological, the text articulates the relationship between the concept of image proposed by the French philosopher Georges Didi-Huberman and the theme of trauma read through the psychoanalysis of Freud and Lacan. Taking as a point of confluence in this question a dream narrated by Freud in The Interpretation of Dreams, to which the title of the article refers, the work presents a philosophical reflection about death and the ethical and political responsibility implied in the death of the other.
Keywords: image, trauma, covid-19, death, pandemic, ethics.
Imagem e trauma: Didi- Huberman, leitor de Freud e Lacan
Um caminhão avança por uma estrada de terra em uma cidade fictícia do nordeste brasileiro. No meio da estrada, uma série de obstáculos faz o veículo trepidar e, logo em seguida, vemos, através da tela de cinema, caixões vazios espalhados na estrada. Logo em seguida, os personagens se deparam com um carro de funerária tombado, onde jazem mais caixões vazios decaídos.
Estamos em Bacurau, a cidade imaginada que nomeia o filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, lançado em 2019, obra responsável por alegorizar as vicissitudes da sociedade brasileira contemporânea em um futuro distópico não muito distante, conforme uma cartela colocada logo no início da projeção nos orienta e localiza.
O caixão não é um elemento qualquer e insignificante na distopia, ele seria replicado em uma das antológicas cenas do filme, justamente, uma cena de enterro, na qual em um dos planos vemos os habitantes de Bacurau carregando um caixão em um cortejo fúnebre. Os mortos, de dentro da frieza de seus caixões, conservam muitas vezes o poder de fazer o que não fizeram em vida: atam ou desfazem laços e relações naqueles que, por terem ficado vivos, só mantém uma articulação com a morte a partir de uma inscrição simbólica.
Mais ainda, podemos dizer que a relação entre os mortos e os vivos, isto é, a relação entre o passado e o presente define o próprio modo como experenciamos o mundo e a temporalidade. Enterrar os mortos e trabalhar o luto diante daqueles que não mais se encontram entre nós é a condição fundamental para continuar vivendo. Isso não diz respeito apenas aos eventos singulares com que cada um enfrenta a perda de um ente querido, mas aponta fundamentalmente para a maneira como cada sociedade responde ao trauma da perda de um mundo histórico e à elaboração minuciosa diante de uma catástrofe coletiva. Segundo Arthur Nestrovsky e Márcio Seligmann-Silva no prefácio ao livro Catástrofe e representação: ensaios:
A palavra “catástrofe” vem do grego e significa, literalmente, “virada para baixo” (kata + strophé). Outra tradução possível é “desabamento” ou “desastre”; ou mesmo o hebraico Shoa, especialmente apto no contexto. A catástrofe é, por definição, um evento que provoca um trauma, outra palavra grega, que quer dizer “ferimento”. “Trauma” deriva de uma raiz indo-europeia com dois sentidos: “friccionar, triturar, perfurar”; mas também “suplantar”, “passar através”. Nesta contradição – uma coisa que tritura, perfura, mas que, ao mesmo tempo, é o que nos faz suplantá-la, já se revela, mais uma vez, o paradoxo da experiência catastrófica, que por isso mesmo não se deixa apanhar por formas simples de narrativa. [2]
Nosso tempo histórico passa hoje por um evento extraordinário: uma epidemia em escala global causada pelo novo coronavírus, conhecido como Covid-19. Essa epidemia, ou pandemia como os especialistas a categorizaram, já tirou milhares de vidas; colapsou hospitais e sistemas de saúde; fechou fronteiras de muitos países ao redor do mundo; suspendeu voos; alterou relações políticas e diplomáticas, colocou países e cidades inteiras em isolamento e quarentena e reorientou geopoliticamente o globo, para citar brevemente alguns dos efeitos imediatos.
A palavra catástrofe, portanto, é justamente o modo como podemos ler a natureza desse acontecimento: uma virada pra baixo, um desabamento, um desastre que causa um trauma – uma ferida – de proporções incalculáveis. Mas também, paradoxalmente, um evento capaz de mobilizar o sentido contraditório dessa mesma palavra: algo que faz suplantá-lo, atravessá-lo. O mundo, tal como conhecíamos antes – no início do ano ou há poucas semanas atrás – já não existe mais. E é urgente pensar como poderemos fazer a travessia após essa perda.
Esse texto, que começa discorrendo sobre uma imagem de um filme de ficção, se propõe a pensar a relação entre as imagens e o trauma, ao mesmo tempo em que se esforça para refletir sobre estratégias possíveis ao alcance de um precário pensamento filosófico tecido na urgência dos dias. Como li hoje pela manhã em um email que chegou através da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, a crise é a hora da filosofia.
Em primeiro lugar, é necessário pensar sobre o que é uma imagem e sobre como as imagens agenciam discursos e narrativas, sejam elas da esfera da ficcionalidade ou não. Os planos dos caixões vazios de Bacurau podem disparar uma reflexão filosófica sobre a relação entre os vivos e os mortos, escrita no auge de um cenário que de tão real[3], no sentido psicanalítico do termo, se assemelha a uma ficção.
Quando a pandemia ganhou contornos de gravidade extrema e as imagens do desastre começaram a se espalhar pelos televisores, celulares e computadores mostrando caixões enfileirados junto a notícias de caminhões lotados transportando corpos, agências funerárias em operação 24h e mortos sendo enterrados sem nenhum ritual de passagem, justamente o que permite que se desenvolva um trabalho de luto diante da morte, vi, novamente, como a montagem descontínua de duas imagens sem relação entre si, os caixões caídos na estrada de Bacurau e uma tela da jovem artista carioca Marcela Cantuária, na exposição “La larga noche de los 500 años” que esteve em cartaz durante ano passado em uma galeria do Rio de Janeiro.
Surgida como um clarão, vi novamente o quadro “Procissão no Sul Global”, como um lampejo do pensamento, com suas cores intensas e berrantes, como marca o estilo da artista. A tela sobrepõe no todo aparente do quadro três “cenas” de caixões sendo carregados por uma marcha de mulheres e indígenas, como se fossem projetados para fora da superfície pictórica, a invadir o próprio espaço físico do mundo. A procissão no chamado Sul Global narra os efeitos do passado do colonialismo, da escravidão e do genocídio indígena impostos por séculos —uma longa noite que ainda não terminou— na América Latina, processos históricos que continuam se perpetuam nos dias de hoje causando feridas, dores e mortes que permanecem sem uma elaboração histórica coletiva. O trabalho de Cantuária, indo na contramão dessa perspectiva, é um esforço constante em reler narrativas incômodas e confrontar o passado de violência perpetrada pelos mecanismos de opressão para dignificar os mortos e oprimidos pelos dispositivos sistêmicos de desaparecimento de seus corpos e de apagamento de sua memória.
As imagens, tais como a do filme, a da tela da artista ou as imagens dos mortos pela pandemia de Covid-19 extraídas da realidade desse evento, ao mesmo tempo em que são representações que conferem intelegibilidade à história, pertencem a um regime permeado por falhas e lacunas. O seu estatuto de acontecimento visual – sejam as imagens da arte ou da captação da realidade – é paradoxal: elas são um documento histórico, mas não como portadoras de uma simples verdade, e sim como índice de um pensamento que é produzido no extremo da catástrofe histórica. Resta saber se, como escreve Seligmann-Silva no ensaio “A história como trauma”, elas poderiam nos ajudar ou não “[…] no ‘trabalho do trauma’ que tem como finalidade a integração da cena de modo articulado e não mais patológico em nossa vida”[4].
Segundo o filósofo e historiador francês Georges Didi-Huberman, cada imagem é absolutamente solidária à linguagem e não existe imagem que já não seja constitutivamente atravessada pelo que ele chamou de duplo regime[5]: uma trama complexa na qual o visual está desde sempre implicado no linguístico. Como ele afirma em Imagens apesar de tudo: “[…] uma imagem surge amiúde no momento em que a palavra parece falhar, uma palavra surge frequentemente quando é a imaginação que parece falhar”.[6] Nesse sentido, a imagem não carrega a totalidade de nenhum evento, ela é sempre impotente diante do todo, de forma que o caráter das imagens seja estruturalmente lacunar.
Os apontamentos de Didi-Huberman na sua teoria da imagem são fortemente influenciados por conceitos basilares da psicanálise, sobretudo por Freud e Lacan. No seu escopo teórico, o autor francês nunca cessou de fazer uso da terminologia psicanalítica, de modo que palavras tais como sintoma, trauma ou real fazem parte da formação de seu pensamento desde a escrita da sua tese de doutorado, que trata justamente do tema da histeria visto a partir do prisma da produção iconográfica da Salpêtrière.
Nesse livro, intitulado Invenção da histeria: Charcot e a iconografia da Salpêtrière, Didi-Huberman marca uma posição que o acompanharia ao longo do desenvolvimento do seu trabalho, isto é, a relação indissociável entre um conceito próprio de imagem, que ele desenvolveria em obras posteriores, e a centralidade da problemática da linguagem trazida pela psicanálise, que ele retira de um Freud já relido por Lacan, referências salutares sem as quais ele não poderia alicerçar a sua crítica do campo da visualidade no contemporâneo. Na sua leitura da teoria freudiana da histeria, ele destaca que Freud teria visto na descrição dos ataques histéricos das pacientes de Jean-Marie Charcot e nas aulas que assistiu com o médico francês – e, portanto, nas imagens que presenciou e estudou – a chave para o ato inaugural da psicanálise, ao passar a interrogar os sintomas psíquicos que se descortinavam diante dele como eventos da linguagem. Para Didi-Huberman, Freud, antes que começasse a ouvir as fantasias e memórias de suas histéricas, tomou-as primeiro, tal como seu professor Charcot, como objetos do olhar. Ao dar-lhes voz em seu consultório, ele fundamentaria a teoria do trauma como uma cena e, portanto, como uma imagem das reminiscências – no duplo sentido de lembrança e cicatriz – inscritas na história de vida dos sujeitos, que as atualizariam de maneira falhada e que só poderiam acessá-las pela via da linguagem. Segundo o filósofo francês:
“Foi pela palavra que ele tomou a histérica. Compreendeu que uma simples frase podia ser “como uma bofetada em cheio no rosto”, ou seja, uma pancada, de qualquer modo, uma verdadeira pancada, e da qual era bem possível que o rosto trouxesse a marca, de uma forma ou de outra. Freud viu que contraturas histéricas —em Elisabeth von R., por exemplo, o fato de ela se descobrir “pregada num lugar”— podiam ser, digamos, a imagem-ato de alguns pavores. (…) Em suma, mesmo quando o reconhecia como um fragmento referido ao real, Freud interrogava o trauma de acordo com seus efeitos de sentido, seus desdobramentos na memória. (…) Portanto, o trauma como incidente já se prestava, em seu conceito, ao jogo a que se prestava a matriz de sua significação; é que em incidente há o incidere, com i breve, que é in-cado, cair por acaso, abater-se sobre, ou sobrevir, ou tornar-se a presa súbita de alguma coisa (incidere in furorem et insaniam : enlouquecer); mas também o incidere, só que com i longo, que é in-caedo, verbo do entalhe, da incisão: corte e gravura ao mesmo tempo, a violência de uma ferida – perenidade de um estigma, de uma escrita, de uma frase. Freud interrogava o trauma como evento significante. (…) A “cena primária”, dita traumática, já é, portanto, por se deslocar, um evento significante”.[7]
BACURAU
Na interpretação de Didi-Huberman, o trauma vem marcar o entrelaçamento da palavra à imagem, explicitando o nexo inseparável entre uma “cena” dita traumática e seu atrelamento à cadeia significante. Explico melhor: embora o trauma, enquanto furo na cadeia simbólica pareça estar fora da cadeia, uma vez que ele se apresenta como aquilo que desarranja a univocidade da mesma, a interpretação psicanalítica vem marcar que é justamente isso que está fora que sustenta a operação do encadeamento simbólico. É um tipo particular de vínculo que pode ser nomeado como exclusão-inclusiva, uma vez que é a exceção, o furo, o elemento limite a dar suporte à estrutura significante da representação. Em outras palavras, o irrepresentável – o trauma – é de saída o que a imagem deve pressupor para poder representar.
Para o filósofo francês, as imagens pertencem à economia traumática porque elas operam como elementos não completamente subsumidos a uma economia simbólica. Assim como no trauma, há também nas imagens algo que escapa ou se perde, e tanto a análise clínica quanto a tarefa filosófica de legibilidade das imagens se proporiam a perseguir ou interpretar sem que, com esse mesmo gesto, se deixasse de reconhecer sua impossibilidade de decifração e seus limites. Tanto o trauma quanto a imagem nos conduzem sempre a uma região informe – e nisso reside sua particular complexidade.
Em Além do princípio do prazer, Freud nos orienta a entender a etiologia do trauma, destrinchando os mecanismos psíquicos que atuam na fixação das neuroses traumáticas. Nesse livro, o psicanalista dá segmento ao trabalho que havia esboçado cerca de três anos antes nas Conferências introdutórias de psicanálise, quando abordou o tema da fixação dos traumas na décima oitava conferência. Não nos interessa aqui adentrar nas minuciosas explicações do comportamento do aparelho psíquico fornecidas por Freud, uma vez que a intenção do artigo é relacionar a questão das imagens ao conceito de trauma por um aspecto que ficará claro a partir da citação a seguir. Segundo Freud:
Às excitações externas que são fortes o suficiente para romper a proteção nós denominamos traumáticas. Acho que o conceito de trauma exige essa referência a uma defesa contra estímulos que normalmente é eficaz. Um evento como o trauma externo vai gerar uma enorme perturbação no gerenciamento de energia do organismo e pôr em movimento todos os meios de defesa. (…) Creio que podemos nos arriscar a ver a neurose traumática ordinária como a consequência de uma vasta ruptura de proteção contra estímulos.[8]
Na passagem de Além do princípio do prazer acima citada, o trauma é entendido como algo que resulta de uma ruptura da rede de proteções que funcionavam como um anteparo para o inconsciente, isto é, no momento em que essa barreira é dissolvida, a neurose traumática é alocada como uma cicatriz indelével no seio do sistema psíquico dos sujeitos.
Nesse sentido, o trauma, então, é uma ferida da memória causada pela impossibilidade do sistema em receber e absorver estímulos que acabam por atravessá-lo. Segundo Seligmann-Silva, no ensaio já citado, o trauma é “[…] um evento transbordante”[9], uma “[…] incapacidade de recepção de um evento que vai além dos ‘limites’ da nossa percepção e torna-se, para nós, algo sem-forma”[10]. Isso que o autor chama de sem-forma, um irrepresentável, portanto, vem a ser repetido e retornar na compulsão à repetição da cena traumática por meio de sintomas ou sonhos que assombram as vidas dos indivíduos modernos acometidos por neuroses traumáticas.
Essa concepção freudiana do trauma como algo que, de fato, ocorreria em uma espécie de cronologia precisa e que caberia ao psicanalista desvendar o mecanismo de desencadeamento da ferida, pode não ter sido abandonada, mas se deslocou para o “fantasma” da cena. Lacan, na sua leitura atenta de Freud, iria mais além ao postular que todo sujeito só nasce a partir do trauma. Para o psicanalista francês, o registro simbólico, ou seja, aquilo que inscreve os sujeitos falantes em uma cadeia de sentido, só advém a partir de uma perda fundamental. Isso que aparece como perdido nunca foi, de fato, perdido, mas na experiência de vida dos indivíduos aparece como se tivesse sido perdido. É algo constitutivo do próprio psiquismo que Lacan nomeou com a expressão francesa trou réel – um furo no real, e é isto de que se trata: um furo, algo que vem para desmanchar a integridade do todo.
Nesse sentido, de maneira análoga, há algo na topologia das imagens que também excede o campo da visualidade, que rasga uma superfície aparentemente fechada em seus limites para lançar uma luz sombria sobre a história, o passado e a memória. As imagens não são documentos produzidos em uma linguagem domesticada e inocente, elas perturbam um ordenamento, deslocam ou desagregam a univocidade do mundo, que não pode ser representado como em um espelho ou tampouco ser completamente irrepresentável. As imagens carregam consigo potências inassimiláveis, e nisso reside seu traumatismo e sua particular exposição:
Operadora de eclosão ou ainda de abertura, a imagem introduz um excedente não reintegrável na ordem do saber e provoca, a partir de dentro, uma exposição ao fora. Sua força de abertura provém talvez do fato de que ela não pode, em si mesma, se retirar em direção a nenhum regime de interioridade: na exposição de sua nudez, ela dá a ver que só existe dentro e por esse espaço onde ela se precede perpetuamente e onde igualmente ela precede todo olhar antecipador. [11]
Enquanto excedente não reintegrável na ordem do saber, as imagens operam como testemunhas de uma história narrada a partir do trauma, “[…] atos que não podem ser construídos como saber nem assimilados à plena cognição, eventos em excesso em relação aos nossos quadros referenciais”[12]. A partir dessa descrição, notemos como as imagens não se destinam a mostrar o evento histórico tal qual uma ilustração que reproduz ou tem a pretensão de reproduzir um dado elemento. Elas engendram aquilo que “[…] excede qualquer significado substancializado, para o que, no acontecer, é impacto que explode dinamicamente qualquer reificação conceitual e delimitação constativa”[13].
Sendo assim, as imagens dos caixões empilhados, das valas funerárias e as notícias de milhares de mortos sem direito a qualquer rito funerário que inundaram os noticiários, jornais e redes sociais durante a pandemia de Covid-19 não assustam porque revelam os acontecimentos do presente conferindo-lhes uma visão recortada da realidade. Ao contrário, o que há de angustiante nessas imagens – e também nos caixões de Bacurau ou na tela de Cantuária – é que nelas se inscrevem coisas impossíveis de dizer. Um excesso, algo em torno do qual a linguagem orbita, sem nunca conseguir enunciar totalmente, uma falha alocada no cerne de sua formação. Dito de outro modo, elas são traumáticas porque apontam para o real, e o real vem para nos atingir mais violentamente do que a própria realidade.
A proposta desse artigo diz respeito a uma convocação para se deter nessas imagens, não apenas porque elas são signos visuais que exprimem e narram a verdade tal como está acontecendo, mas porque elas são o testemunho de um trauma histórico do presente. Testemunhar não é proferir um discurso coerente, nem tampouco esclarecer ou demonstrar um conhecimento sobre algo que foi vivido. Ao contrário, na linguagem testemunhal está em jogo uma perda da linguagem, algo que não é comunicável ao outro e que permanece sem-forma no dizer. A respeito do testemunho, o filósofo italiano Giorgio Agamben nos diz:
Podemos dizer que dar testemunho significa pôr-se na própria língua na posição dos que a perderam, situar-se em uma língua viva como se fosse morta, ou em uma língua morta como se fosse viva. (…) A respeito de que tal língua dá testemunho? Porventura de algo – fato ou evento, memória ou esperança, alegria ou agonia- que poderia ser registrado no corpus do já-dito? Ou da enunciação, que atesta no arquivo[14] a irredutibilidade do dizer ao dito? Não enunciável, não arquivável é a língua na qual o autor consegue dar testemunho de sua incapacidade de falar.[15]
No texto “Educação e crise: as vicissitudes do ensinar”, Shoshana Feldman relata a experiência de projetar vídeos do Fortunoff Video Arquive contendo testemunhos do Holocausto a sua classe de alunos para trabalhar questões como trauma, testemunho, narração e história. Como referências, ela trabalha em sala de aula autores como Freud, Camus e principalmente Paul Celan, o poeta que, junto com Primo Levi, se converteu em uma das grandes vozes testemunhais do universo concentracionário. São esses dois escritores/poetas que Agamben também convoca em seu livro O que resta de Auschwitz.
Após a experiência de assistir às imagens dos testemunhos com os alunos, Feldman recria o texto da “Palestra de Bremen” de Celan, texto que havia sido lido na sala de aula durante o curso. De acordo com ela, os alunos vivenciaram uma “perda linguagem”[16], lidaram com o sentimento de que “a linguagem era inadequada”[17] e sentiram uma espécie de “desconexão”[18]. O que ela tentava transmitir para os alunos é que “[…] precisamente desta perda que Celan fala, esta perda para a qual todos nós fomos, de alguma forma, feitos para viver”[19].
É preciso sublinhar que essa perda estrutural, essa para a qual nós mesmos fomos feitos para viver, diz respeito ao transbordamento evocado pelo mecanismo traumático. Como já afirmei, há algo de suspenso na linguagem, sobre o qual é possível falar ou não falar, que põe em xeque a pressuposição de que há uma conjunção perfeita entre o plano do significado e o do significante, por meio do qual a linguagem operaria sem falhas garantindo o sentido e a conciliação harmônica na comunicabilidade. Esse domínio da linguagem no qual experimentamos um desamparo traumático, em que ficamos nus e expostos ao fora da linguagem, é o que, nas palavras do próprio Celan, pode ser evocado pela expressão das “ […] mil escuridões dos discursos que trazem a morte”[20].
Como na assustadora imagem do poeta, as imagens —pelo menos aquelas sobre as quais precisamos nos debruçar em um mundo saturado por imagens— também são inadequadas, como se também uma escuridão terrível as assombrasse. Como Didi-Huberman escreve em Quando as imagens tomam posição, elas tem um “excesso de conhecimento”[21], que não deve ser entendido apenas no sentido positivo da transmissão histórica de algum conteúdo que pode ser facilmente assimilado, mas precisamente o inverso disso: enquanto excesso, elas expressam sempre um resto que não pode ser domesticado pelos discurso.
Quando nos colocamos diante da imagem para vê-la, ela também nos olha, e na distância entre o olhante e o olhado se produz uma perda, que é sempre uma fonte de mal-estar. Quando eu olho para as imagens catastróficas da morte causada pelo Covid-19, eu não vejo apenas aquilo que se apresenta como visível, mas me exponho à ameaça das mil escuridões sobre a qual fala Celan, escuridão que, mesmo sem recursos de uma ordem estabelecida —uma vez que ela não mais existe—, nós temos de atravessar. Essa escuridão metafórica tem a ver com a sensação insuportável de viver em um mundo em que nem o discurso científico é capaz de nos fornecer quaisquer garantias. Há perguntas em jogo: ¿como sobreviveremos? ¿Quando descobrirão uma vacina? ¿Quando acabará a epidemia? ¿Quando poderemos sair novamente? E, para elas, não há um consenso, um discurso unificado que possa dar uma certeza, uma palavra final e nos apaziguar Como escreveu Guimarães Rosa repetidamente ao longo do seu Grande sertão: veredas “viver é muito perigoso”.
Didi-Huberman, cuja concepção filosófica é um embate direto com as imagens, mantém uma postura crítica em não recalcar o pensamento ante o real da história. Seu esforço incansável de ler e reler o passado e o presente, se confrontando com uma vasta montagem de imagens através dos tempos, implica uma tomada de posição de quem não renuncia à tarefa ética de elaboração do trauma. Em Quando as imagens tomam posição, o filósofo francês faz referência ao Kriegsfibel (ABC da guerra) de Brecht, uma obra construída a partir de imagens e legendas, cujo prefácio diz: “Alguém que esquece o passado não poderá lhe escapar. Este livro quer ensinar a arte de ler as imagens (diese Buch will die Kunst lehren Bilder zu lesen). O não iniciado decifra tão dificilmente uma imagem quanto um hieróglifo”.[22]
A partir da citação do trecho, Didi-Huberman desenvolve a passagem brechtiana da seguinte forma:
“Alguém que esquece o passado não poderá lhe escapar”: isso significa que uma política do presente, ainda que seja construção do futuro, não poderia desconsiderar o passado que ela repete ou recalca (os dois muitas vezes juntos). Ora, as imagens formam, do mesmo modo que a linguagem, superfícies de inscrição privilegiadas para esses complexos memoriais. O projeto da Kriegsfibel assemelha-se a uma dupla propedêutica: “ler o tempo e ler as imagens”, em que o tempo tem alguma chance de ser decifrado. [23]
Para o filósofo, a imagem aponta para algo enigmático e desconhecido, que excede os limites do enquadramento visual, como uma cena traumática que deixa um resto inapreensível na relação entre os indivíduos e a realidade. Nesse texto, busco esmiuçar como podemos deslocar o conceito do trauma enquanto uma patologia, cujo aparecimento na literatura médica se deu com Freud na virada do século passado, para uma interrogação filosófica ampliada sobre o problema do ver e do saber enquanto tal.
“Pai, você não vê que eu estou queimando”: o despertar a partir do trauma
Quando chamo atenção para determinadas imagens legadas pela pandemia causada pelo novo coronavirus, ao posicionarem no centro da cena os ausentes, ou melhor, justamente aqueles que fizeram a experiência mais dolorosa diante da doença, instaura-se o mal-estar diante de uma perda fundamental, o medo do finitude e a angústia diante da perda do objeto de amor que sobrevive e assombra o inconsciente de uma comunidade de viventes. São as imagens da morte —os caixões ou as valas abertas destinadas a aqueles que ainda estão por viver o limite dessa experiência— que vem para trazer à tona o fantasma do trauma no registro imaginário, assim como elementos da angústia comparecem como imagens nos sonhos, por exemplo.
PROCISSAO NO SUL GLOBAL
Em Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória), Cathy Caruth coloca que o resto traumático “[…] intromete-se sempre na visão – sugere, portanto, uma relação maior com o evento, que se estende para além do que pode ser visto ou conhecido e que está intrinsecamente ligado ao atraso e à incompreensão que permanece no centro desta forma”.[24]
O trecho acima se refere tanto a essa temporalidade tardia na qual o trauma é inscrito, isto é, como evento que não é plenamente absorvido pela economia psíquica e vem a interpelar o sujeito a posteriori[25] como também ao conteúdo inacessível que permanece velado (recalcado) e retorna tardiamente. Nesse mecanismo de ação, há uma tensão que se constitui no operador entre a violência traumática, de um lado, e a complexidade de uma significação revista, do outro.
Quando há um choque entre a imagem do passado e a do presente, aquilo que estava adormecido e em estado de latência retorna violentamente. Nesse sentido, a proposta do presente artigo é pensar a partir das imagens e tentar situá-las em uma economia de sentido, uma vez que estamos diante de uma catástrofe histórica —a pandemia global— que exige uma atitude ética urgente de se pôr diante do acontecimento ainda que sob o risco de errar ou fazer análise apressadas. Não por acaso, os mais importantes pensadores e filósofos da contemporaneidade se sentiram convocados a responder ao que estamos vivendo. Essa elaboração apressada é necessária, uma vez que ela contribui para dar alguma referência ao esfacelamento do mundo que se descortina diante dos nossos olhos.
Em seu ensaio, Caruth analisa um sonho surpreendente narrado por Freud no sétimo capítulo de A interpretação dos sonhos. Já no início do capítulo, Freud conta um sonho que ouvira de uma paciente: ele mostra um pai velando dias e noites o leito de seu filho doente; quando a criança morre, o pai resolve descansar em um quarto mantendo a porta entreaberta para o quarto onde está o corpo do filho morto rodeado por velas e acompanhado de um velho que recita orações. O pai dorme e sonha que o filho se coloca ao lado da sua cama, segura seu braço e diz as seguintes palavras: “Pai, você não vê que eu estou queimando?”. Ele então acorda, vê um clarão, vai até o outro quarto e constata que o velho dormira e uma vela caíra sobre o corpo do seu filho, queimando parte do corpo da criança. Com isso, o sonho acaba.
Ainda que as imagens trazidas por Freud sejam extremamente perturbadoras, o psicanalista assente que a explicação do sonho é bastante simples, afirmando que esse sonho não “coloca nenhuma tarefa à interpretação”[26] e que “o sentido é dado abertamente”[27]. Mais adiante, Freud, entretanto, reconhece mais uma vez a natureza complexa dos fenômenos psíquicos que não se deixam capturar isoladamente, sendo preciso reunir e comparar toda uma série de produções do psiquismo para iluminar pontos cegos da teoria psicanalítica. Segundo os palavras do próprio Freud, ao assentir que no domínio do inconsciente tudo se complexificaria, “[…] o trecho cômodo e agradável do nosso caminho ficou para trás”.[28]
De acordo com as explanações de Caruth sobre o sonho em questão, enquanto Freud persegue a investigação acerca da função do dormir e do acordar a partir dessas imagens oníricas, explicando a razão pela qual dormimos e modulando a pergunta sobre por que sonhar se poderíamos simplesmente acordar, Lacan vai analisar o sonho a partir da perspectiva do trauma. Caruth diz que, em Lacan, “[…] o sonho de Freud não é mais sobre um pai dormindo diante de uma morte externa, mas sobre a forma como a própria identidade do pai, como sujeito em seu despertar traumático, está vinculado ou fundado na morte à qual ele sobreviveu”.[29]
É justamente nesse ponto que gostaria de me ocupar a fim de desdobrar um pensamento sobre as imagens que compareceram nesse texto. O caráter de urgência que reclamamos ao longo do artigo alude a um dos aspectos salientados por Caruth da leitura feita por Lacan sobre o sonho narrado por Freud. De certa forma, no sonho, a criança pede para o pai responder ao seu chamado, “Pai, você não vê?”, endereçamento ao que o pai responde tarde demais. Como afirma Caruth, “acordando para ver, o pai descobre que ele, mais uma vez, viu tarde demais para poder evitar a queimadura”[30]. Isso quer dizer que o sonho repete diretamente o fora da realidade, ou seja, a impossilibidade do pai em responder ao real trazido pela morte do filho. De acordo com ela: “Acordar é, precisamente, acordar apenas para a repetição de uma falha anterior de ver a tempo. A força do trauma não está, portanto, somente na morte, mas no fato de que, em seu próprio apego à criança, o pai foi incapaz de presenciar a morte da criança, quando ela ocorreu. O acordar, na leitura que Lacan faz do sonho, é em si mesmo o lugar do trauma”.[31]
Podemos dizer a partir dessa história singular que no vínculo entre os mortos e os vivos se adensa a experiência do trauma, uma vez que essa ligação é sempre balizada pela cisão entre os outros, os que já morreram, e nós. Acompanhando a formulação de Caruth, ela conclui que “Lacan lê a história do pai como um sobrevivente inerente e constitutivamente vinculado ao endereçamento feito por uma criança morta”[32]. Esse endereçamento pode ser elaborado como uma responsabilidade diante da alteridade que não pode mais responder. A frase enfática da criança que desperta o pai —você não está vendo? — traz consigo o imperativo para que nós também tenhamos a coragem de ver —não para saber mais— mas para narrar a história daqueles que não podem mais falar.
As imagens dos caixões e das valas abertas ressituam o modo como devemos nos confrontar com a realidade empírica da catástrofe, “[…] não como aquilo que pode ser conhecido ou não sobre a realidade, mas como a história de uma responsabilidade urgente, ou como aquilo que Lacan define, nessa conjuntura, como uma relação ética com a realidade”.[33]
Aprendendo a morrer: da responsabilidade ética pelo outro
Em muitos relatos pesquisados ao longo das últimas semanas, colhi uma profusão de textos que descreviam o terror desse momento histórico, sobretudo em lugares nos quais a situação atingiu níveis críticos, em países como a Itália, a França e a Espanha, por exemplo. Em seu belo texto testemunhal, o filósofo Paul B. Preciado, acometido pelo Covid-19, relata que “[…] a realidade era indistinguível de um sonho ruim e a primeira página dos jornais era mais desconcertante do que qualquer pesadelo causado pelas minhas desilusões febris”[34]. Em outro depoimento, o dono de uma funerária na Itália afirmava que não dormia há três dias, mas “parecia que estava em um pesadelo”.
Foram essas vozes e as imagens que me conduziram ao sonho de Freud, cuja literalidade das imagens entrevista pelo psicanalista aponta para o real da morte e da perda que o trauma agencia. “Nunca aprendemos a morrer”,[35] constata o texto do filósofo camaronês Achille Mbembe também sobre a epidemia de coronavirus. O que quer dizer que a morte é algo que nos parece sempre distante, ela é sempre do outro, e não nossa, mas que, diante de em evento extraordinário, ela como se aproxima de nós, reacendendo nossos medos e angústias diante da perda da nossa própria vida e da de nossos entes queridos. Nunca aprendemos a morrer, ou ainda, é desde sempre urgente nossa responsabilidade ética com tal aprendizado. Não apenas o aprendizado do luto pessoal, mas da dor diante da morte do outro, esse outro que é um qualquer.
Atentemos para a forma como essa palavra ganha na filosofia de Giorgio Agamben outra tonalidade, a partir do característico gesto arqueológico que marca a obra do filósofo. Em A comunidade que vem, a palavra qualquer designa “[…] um termo que, permanecendo impensado em cada um, condiciona o significado de todos os outros”. [36] Sua raiz etimológica é a palavra latina quodlibet, que contém uma referência explícita ao verbo desejar/querer (libet), quod-libet ens, o ser qual-se-queira, qual-quer. De acordo com Agamben, “[…] a tradução corrente no sentido de “não importa qual, indiferentemente’ é certamente correta, mas, quanto à forma, diz exatamente o contrário do latino: quodlibet ens não é o “ser, não importa qual”, mas “o ser tal que, de todo modo, importa”.[37]
Nesse sentido, para forjar uma comunidade ética de viventes é preciso revirar a concepção usual de qualquer, ou seja, retirá-la do campo da indiferença, para compreendê-la enquanto singularidade, isto é, o ser que, não importando quem ou quais sejam as suas características, me importa. Assim, a morte do outro qualquer não deve ser alijada de uma experiência ética coletiva, e parece ir nessa direção a lição de Lacan do sonho contado por Freud. As imagens traumáticas que evoquei ao longo do texto permitem nos fazer abrir os olhos, como o pai que enfim desperta para encarar o real da morte do filho bem diante dele. “Você não vê que eu estou queimando?”, suplica a criança. A leitura de Lacan desse sonho, ao contrário do que possa parecer com a morbidez do tema, é otimista. Ela joga luz na ideia de um despertar ético diante do trauma e em uma forma possível de respondê-lo.
Se a pandemia rasgou uma suposta estabilidade do mundo, a teoria psicanalítica do trauma nos lança em um permanente confronto com aquilo que se apresenta desde sempre enquanto esfacelado, falhado. É preciso fazer um adendo: os quadros referenciais que organizam a existência e orientam os sujeitos não são os mesmos. Dependendo em qual lugar nos reconhecemos e localizamos, as referências mudam e pleitear uma estabilidade é incorrer em uma tarefa fracassada de antemão, a não ser que a identificação do pertencimento esteja justaposta completamente em marcadores hegemônicos, ficcionalizando a solidez de uma determinada ordem.
É próprio da racionalidade desejar um mundo sem lacunas. Há um desespero paranoico em penetrar o todo e alcançar “[…] o brilho da loucura e da racionalidade extrema, unidas no sonho comum de uma totalidade absoluta e sem rasgos”,[38] como diz a expressão de Jeanne-Marie Gagnebin. Para muitos, o mundo já havia desmoronado há tempos, mas a epidemia do coronavirus dilacerou uma estrutura frágil que ainda era capaz de sustentar um modelo que nos parecia familiar, a despeito de todas as suas incongruências, injustiças e opressões em funcionamento. A filósofa, retomando Adorno, define a tarefa ética e política do pensamento como “[…] lutar contra os sonhos (que se transformam rapidamente em pesadelos) de uma apropriação sem restos do mundo pelo sujeito onipotente”.[39]
Foram as imagens —essas com seu excesso não domesticável, com os sulcos de mil escuridões cindindo o visível— que circularam rapidamente no mundo a darem os primeiros sinais de que vivíamos uma catástrofe em escala global. Antes do discurso científico ganhar formulação, os signos da morte —os caixões, as valas, o os veículos transportando corpos, indivíduos mortos sem atendimento jogados na rua, indivíduos semi-mortos em seus respiradores artificiais— que se converteram paulatinamente em números e estatísticas nos encontraram primeiro a anunciar o real do trauma que, mesmo depois de superada a realidade, consegue deixar marcas e efeitos duradouros na humanidade. Ao me deter nessas imagens, propus tomar posição diante delas, olhar para elas à medida que elas me olhavam e, com isso, empreender o exercício filosófico implicado na legibilidade das imagens do presente.
No sonho narrado por Freud, a realidade é tão perturbadora que o sonhador deseja dormir, mas, ao fazê-lo, algo de dentro do seu próprio sonho persiste em atormentá-lo. Também ali, em meio às imagens oníricas, ele experencia um sofrimento profundo diante do trauma da morte do filho, que levanta de seu leito fúnebre para sussurrar ao pai: você não vê que eu estou queimando? Mas é a criança morta que, ao despertá-lo, parece também dizer: sobreviva, pai, sobreviva para narrar a história da minha morte. Só é possível sobreviver aprendendo a lidar com a morte, aponta Mbembe. Mas, aprender a morrer é, ao mesmo tempo, aprender a se responsabilizar pela dor do outro, esse outro qualquer carregado pela imagem, e que justamente por ser qual-quer, nos importa e afeta.
A filosofia pode não ser capaz de salvar vidas, mas ela permite, ao assumir um gesto ético e político, escrever simbolicamente a morte. Sèma, palavra grega, significa, ao mesmo tempo, túmulo e signo, nos ensina Gagnebin ao dizer que toda “[…] criação de significação é também um trabalho de luto”,[40] uma elaboração diante do trauma. Nomear e dar dignidade aos mortos, só assim poderemos —talvez um dia— aprender a morrer.
Referências Bibliográficas
- Agamben, Giorgio. A comunidade que vem. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013
- O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008
- Alloa, Emmanuel. “Entre a transparência e a opacidade: o que a imagem dá a pensar” In: ALLOA, Emmanuel (Org.). Pensar a imagem. Trad. Carla Rodrigues (coordenação), Fernando Fragozo, Alice Serra e Marianna Poyares. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017
- André, Jacques. “L’événement et la temporalité – l’aprèscoup dans la cure”. Revue française de psychanalyse, n.5, p.1285-1352, 2009
- Caruth, Cathy. “Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória)”. In: Nestrovsky, Arthur; Seligmann-Silva, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000
- Didi-Huberman, Georges. A invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015
- Imagens apesar de tudo. Trad. Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. Lisboa:KKYM, 2012
- Images malgré tout. Paris: Les Éditions de minuit, 2003
- Quando as imagens tomam posição. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017
- Feldman, Soshana.“Educação e crise: as vicissitudes do ensinar”. In: NESTROVSKY, Arthur; Seligmann-Silva, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000
- FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre, Rio Grande do Sul: L&PM, 2016
- “Além do princípio do prazer”. In: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010
- Gagnebin, Jeanne-Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009
- Mbembe, Achille. “O direito universal à respiração”. Tradução de Mariana Pinto dos Santos e Marta Lança. Revista Buala. Disponível em: https://www.buala.org/pt/mukanda/o-direito-universalrespiracao?fbclid=IwAR3zWof4fMjXC3MrWKxdAbm1VwuetzG2YsjyObPW-Egc1ioGKZb4SvTtyIA. Acessado em 10 de abril de 2020
- Nestrovsky, Arthur; Seligmann-Silva, Márcio. “Apresentação”. In: Nestrovsky, Arthur; Seligmann-Silva, Márcio. (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000
- Preciado, Paul B. “A conspiração dos perdedores”. Tradução de Luana Fortes. Revista Select. Disponível em: https://www.select.art.br/a-conspiracao-dos-perdedores/ Acessado em 5 de abril de 2020.
- Seligmann-Silva, Márcio. “A história como trauma”. In: Nestrovsky, Arthur; Seligmann-Silva, Márcio. (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000
Notas Bibliográficas
[1] Agradeço imensamente à amiga e pesquisadora Dra. Viviane Botton pela divulgação do Dossiê da revista Reflexiones Marginales e pelas trocas intelectuais sobre o artigo que apresento aqui
3 NESTROVSKY, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Apresentação”. In: NESTROVSKY, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio. (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000, p. 8.
4 Palavra que será utilizada ao longo do texto grafada com o itálico como forma de marcar a diferença em relação à noção de realidade. O real diz respeito à escansão lacaniana entre simbólico, imaginário e real. Enquanto o primeiro tenta organizar os eventos sistematicamente em uma cadeia de sentido; na qual um elemento entra em relação com os demais, não existindo por si ou isolado de um conjunto de posições; o segundo se refere ao campo das identificações e das representações implicadas na relação entre semelhantes. Já o real é a palavra utilizada pelo ensino de Lacan para dar conta de uma impossibilidade de representação ou de nomeação. A clínica lacaniana se orientará ao final do ensino do psicanalista a pensar cada vez mais enfaticamente a dimensão do real, registro marcado justamente por aquilo que não se integra à realidade, que é subtraído dela, uma vez que a realidade é um compósito simbólico-imaginário.
5 SELIGMANN-SILVA, Márcio. “A história como trauma”. In: NESTROVSKY, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio. (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000, p. 85.
6 “Ce double régime de toute image”. Cf. DIDI- HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Les Éditions de minuit, 2003, p. 48. (“o duplo regime de qualquer imagem”. Cf. DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Trad. Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. Lisboa:KKYM, 2012, p.52 ).
7 DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Trad. Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. Lisboa:KKYM, 2012, p. 47
8 DIDI, HUBERMAN, Georges. A invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da Salpêtrière. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015, p. 216 .
9 FREUD, Sigmund. “Além do princípio do prazer”. In: História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 192-194.
10 SELIGMANN-SILVA, Márcio. “A história como trauma”. In: NESTROVSKY, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio. (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000, p. 84.
11 Ibidem, p.84.
12 ALLOA, Emmanuel. “Entre a transparência e a opacidade: o que a imagem dá a pensar” In: ALLOA, Emmanuel (Org.).Pensar a imagem. Trad. Carla Rodrigues (coordenação), Fernando Fragozo, Alice Serra e Marianna Poyares. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 16.
13 FELDMAN, Soshana.“Educação e crise: as vicissitudes do ensinar”. In: NESTROVSKY, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000, p. 18
14 Ibidem, p. 18.
15 Nessa passagem, Agamben faz referência a uma discussão desenvolvida previamente a respeito do conceito de arquivo que, segundo ele, seria oposto ao conceito de testemunho. O filósofo está dialogando sobretudo com o Foucault de Arqueologia do saber, ao afirmar que “ entre a memória obsessiva da tradição, que conhece apenas o já dito, e a demasiada desenvoltura do esquecimento, que se entrega unicamente ao nunca dito, o arquivo é o não-dito ou o dizível inscrito em cada dito”, ao passo que o testemunho é “ o sistema de relações entre o dentro e o fora da langue, entre o dizível e o não-dizível em toda língua – ou seja, entre uma potência de dizer e a sua existência, entre uma possibilidade e uma impossibilidade de dizer”.. No sentido da proposição filosófica de Agamben, enquanto o arquivo se inscreve na modalidade do possível ou do impossível, o testemunho, enquanto atravessa por uma potência ou importência do dizer, pertence ao campo da contingência. Justamente por isso, ele diz mais à frente “o testemunho é uma potência que adquire realidade mediante uma impotência de dizer e uma impossibilidade que adquire existência mediante uma possibilidade de falar. Na articulação que eu proponho no texto, as imagens não pertenceriam à dimensão arquivística, mas sublinhariam a condição de testemunhas do evento, justamente porque elas não são compreendidas apenas como meras evidências visuais de um fato Cf. AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 145- 146.
16 Ibidem, pp. 160 -161.
17 Feldman, Soshana. “Educação e crise: as vicissitudes do ensinar”. In: NESTROVSKY, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000, p. 63.
18 Ibidem, p. 63.
19 Idem.
20 Idem.
21 Idem.
22DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017, p. 237.
23 BRECHT, Bertold apud DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017,p. 62.
24 DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017, pp. 36-37.
25 CARUTH, Cathy. “Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória)”. In: NESTROVSKY, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000, p. 112.
26 Temporalidade conhecida pelo termo alemão Nachträglichkeit utilizado por Freud, na qual um evento só ganha intelegibilidade num momento posterior, de maneira atrasada, como diz Cathy Caruth. Em Lacan, foi traduzida pelo francês après-coup, um só-depois, como foi traduzido para o português. O psicanalista Jacques André relaciona essa temporalidade à questão do trauma. Segundo ele : “O Nachträglichkeit consiste, então, em um duplo movimento que relaciona oposições: ele “condensa, mais que conjuga, a volta ao passado, a historicização, e o presente, a atualidade do trauma”. Cf. ANDRÉ, Jacques. “L’événement et la temporalité – l’aprèscoup dans la cure”. Revue française de psychanalyse, n.5, p.1285-1352, 2009, p. 1301.
26 FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre, Rio Grande do Sul: L&PM, 2016, p. 536.
26 Idem.
27 Ibidem, p. 537.
28 Idem.
29 Idem.
30 CARUTH, Cathy. “Modalidades do despertar traumático (Freud, Lacan e a ética da memória)”. In: NESTROVSKY, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação: ensaios. São Paulo, Escuta, 2000, p. 112.
31Ibidem, p. 119.
32Idem, pp. 119-120.
33Idem, p.123.
34 Idem, p. 124.
35 PRECIADO, Paul B. “A conspiração dos perdedores”. Tradução de Luana Fortes. Revista Select. Disponível em:. https://www.select.art.br/a-conspiracao-dos-perdedores/ Acessado em 5 de abril de 2020.
36 MBEMBE, Achille. “O direito universal à respiração”. Tradução de Mariana Pinto dos Santos e Marta Lança. Revista Buala. Disponível em: https://www.buala.org/pt/mukanda/o-direito-universalrespiracao?fbclid=IwAR3zWof4fMjXC3MrWKxdAbm1VwuetzG2YsjyObPW-Egc1ioGKZb4SvTtyIA. Acessado em 10 de abril de 2020
37 AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 10.
38 Idem.
39 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009, p. 90
40 Idem
40 Ibidem, p. 45.
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