Conversa de Luiz Orlandi e Gilles Deleuze

Home Dossier en Portugués Conversa de Luiz Orlandi e Gilles Deleuze
Conversa de Luiz Orlandi e Gilles Deleuze

Conversa de Luiz Orlandi e Gilles Deleuze, com participação de Gérard Lebrun, Jean François Lyotard, Marilena Chauí e Arnaud Villani.

6.

Orlandi: As conversações que o senhor manteve com Claire Parnet, seja por escrito ou em falas adensadas por imagens, como as do Abecedário, é que me inspiraram a solicitar este encontro na esperança de resolver uma dificuldade que me vem apoquentando: poderia ajudar-me a encontrar uma maneira de prefaciar a tradução brasileira do seu livro dedicado ao problema da expressão em Espinosa?

Deleuze: Pressupondo que o senhor conheça o livro, além de alguns outros escritos meus, não vejo em que consistiria sua dificuldade. E quanto à maneira de prefaciar essa tradução, ela só pode ser sua; só o senhor, em nome próprio, poderá construí-la e, ao fazê-lo, sentirá o que eu mesmo sinto ao escrever: fará a experiência de sua despersonalização…

Orlandi: Sim, evidentemente, já experimentei isso em algumas tentativas de escrita, mas gostaria de conversar, se o senhor se dispuser, para que alguns detalhes da minha própria maneira ganhem maior consistência…

Deleuze: Diga-me, então, mais claramente, o que o senhor pretende fazer.

Orlandi: Pois bem, em vez de se apresentar como introdução ao seu texto ou, pior ainda, como interpretação dele, meu prefácio ou posfácio precisa ganhar a forma do mais simples convite a quem vier a ler sua obra.

Deleuze: Vejo que o senhor quer eliminar do seu prefácio ou posfácio a dupla pretensão de ser uma introdução ao meu livro ou uma interpretação dele. Posso compreender isso, e acho até mesmo que nem precisa explicitar as razões de sua escolha. Mas o que seria esse convite ‘a quem vier a ler’? Isso me pareceu um pouco vago. Não seria apenas um direto convite para os outros lerem o meu livro, como fazem as orelhas ou as propagandas editoriais?

Orlandi: O ponto é este: não estou convidando as pessoas para lerem seu livro. Não estou fazendo propaganda dele. Esse livro já existe como acontecimento. Por si, ele já dá o que pensar, seja de um estrito ponto de vista de estudos espinosanos (concorde-se ou não com sua leitura, pouco importa), seja como prova de que é possível pensar criativamente quando se estuda um grande filósofo. Meu convite é outro. Seja ele de fácil ou difícil aceitação, meu convite é este: mesmo não sendo a primeira e nem feita de maneira contínua, convém que a leitura deste livro ocorra quando for pressentida como ocasião de um encontro excepcional.

Deleuze: Não quero discutir o que o senhor quer dizer com pressentimento, mas: por que excepcional?

Orlandi: Pressentimento no sentido animal de ficar à espreita, como o senhor próprio diz logo na letra “A” do Abecedário. E excepcional, porque, além de ser ela própria uma visita muito rara a ideias decisivas, a leitura poderá reabrir um outro e emocionante encontro, o conservado nestas páginas entre pensadores separados por vários séculos de agitações em todos os domínios. Emocionante, porque forças muito estranhas deram a esse tempo cronológico a intensidade de um arco retesado. E a sucessão das visitas a esse encontro apreenderá sutis variações na ponta incandescente da flecha, ali onde vibra o sentido problemático da obra, irredutível a uma única direção.

Deleuze (Rindo): Permita-me perguntar: sua retórica não está exagerando as coisas? Apesar disso, devo admitir que um livro, um bom livro, digamos, é sempre um território para bons encontros, contanto que isso acabe gerando desterritorializações interessantes e não apenas vagalhões de frases elogiosas, encomiásticas.

Orlandi: Concordo. Há um aparente exagero naquelas frases. Com mais sobriedade, eu diria que o seu livro não propõe apenas que estudemos Espinosa; ele nos incita a não deixarmos afrouxar esse arco a que me referi, esse arco da imanência, digamos, tornado tenso justamente por Espinosa, tensão que o senhor mantém ao longo de todos os seus livros. Quando digo isso, o senhor sabe do que se trata, não é?

Deleuze: Estou pressentindo onde o senhor quer chegar. À medida que os filósofos criam conceitos, fazendo-o em complexa correspondência com problemas, vai sendo traçado um plano de imanência, algo como um pressuposto pré-filosófico; esse plano, como Guattari e eu escrevemos, é um meio de fluência do pensamento conceitual, um meio que se move infinitamente em si mesmo, irredutível às criações conceituais, mas correlativo a elas, correlativo enquanto virtualidade que as entremeia intensivamente. O senhor está me levando a recordar certas frases. Sei que já dissemos o seguinte, por exemplo: os conceitos são como as vagas múltiplas que se erguem e que se abaixam, mas o plano de imanência é a vaga única que os enrola e os desenrola. Sei que minha relação com Espinosa tem a ver com isso, mas onde, precisamente, o senhor quer chegar?

Orlandi: Lembra-se que, ao pensar principalmente no prodigioso livro V da Ética, o senhor disse que Espinosa é o príncipe dos filósofos? Por que tão singela homenagem?

Deleuze: Ora, o senhor há de convir que, se fosse possível contar uma história da filosofia do ponto de vista da instauração de um plano de imanência, Espinosa seria o responsável pelo momento de maior radicalidade de uma tal história.

Orlandi: Sim, mas por que príncipe?

Deleuze: Muito simples: quando digo príncipe não estou pensando na hierarquia que, de um lado, o submeteria a um rei transcendente e, de outro, o sobreporia como transcendente a subalternos. A hierarquia que me atrai não é desse tipo, caudatária de relações entre classes ou entre posições de mando. A hierarquia que me atrai é a do jogo das singularidades, a da distribuição das diferenças em correspondência com problemas dos quais elas participam como mais ou menos ordinárias ou mais ou menos notáveis. Por isso, penso que Espinosa é príncipe dos filósofos no melhor sentido da palavra príncipe: aquele que é o mais notável em talento ou em outras qualidades. Mais rigorosamente, ele é o príncipe, porque sabia plenamente que a imanência pertencia tão-somente a si mesma, sendo ela um plano percorrido pelos movimentos do infinito, preenchido pelas coordenadas intensivas. Príncipe, por não ter aceito compromisso algum com a transcendência, por ter encontrado a liberdade tão-só na imanência. Como esse príncipe preencheu a suposição pré-filosófica da filosofia, seus próprios conceitos de substância e de modos é que se remetem ao plano de imanência como ao seu pressuposto.

Orlandi: Isso é vertiginoso! [Assim que proferi esta exclamação, senti que ela me veio de uma frase com que Bento Prado Júnior expressou sua admiração pela obra O que é a filosofia?, de Deleuze e Guattari: O que este livro nos oferece é a compreensão do que há de vertiginoso na filosofia – mas também, e seguindo o mesmo movimento de pensamento, do que há de vertiginoso na ciência e na arte] .

Deleuze: Pressuposto vertiginoso, concordo, pois a dupla face desse plano de imanência se diz como potência de ser e potência de pensar. Aí está a vertigem da imanência, verdadeiro desafio da inspiração espinosana. A questão é saber se chegaremos a estar maduros para ela.

Comentar e inventar

Orlandi: Permita-me observar, meu caro senhor, que suas frases acabam de sustentar o que nas minhas parecia retórica exagerada. Vê-se bem que o senhor não quer ou não pode afrouxar o arco que o liga a Espinosa.

Deleuze: Como assim?

Orlandi: É que várias das frases que o senhor acabou de dizer reapareceram trinta e dois anos depois da primeira publicação do livro que pretendo prefaciar aqui em sua tradução brasileira. Elas estão em forte ressonância com o livro, comprovando a permanência de uma atenção dedicada a Espinosa, atenção sempre estudiosa, mas não isenta daquelas audácias que marcam os acordos discordantes entre pensadores.

Deleuze: Decerto o senhor tem razão. Mesmo quando mínimas, as variações fecundam o pluralismo das leituras. Uma primeira variação é facilmente observável: esse livro pode ser lido como monografia universitária anexada ao processo do meu doutoramento. Você sabe… [propõe que nos tratemos por você]

Orlandi: Ótimo! Essa palavrinha ou palavrão – senhor – não para de pipocar transcendentes numa conversa que não precisa deles…

Deleuze: Você sabe que eu trabalhei as ideias de Espinosa da maneira a mais séria possível. Fiz isso, segundo as normas da história da filosofia que vigoravam então. Eu me submetia, assim, a uma rigorosa disciplina, a mesma que exercia em meu tempo de estudante uma função repressora. O paradoxo é que essa função de modo algum obnubila minha boa lembrança de professores que marcaram minha formação, como Ferdinand Alquié e Jean Hyppolite, além de Jean Wahl, sem dúvida, aos quais não só homenageei em livros como dediquei amor e admiração. Contudo, embora se possa ler Espinosa e o problema da expressão como trabalho universitário, ele implica, como você está dizendo, tensões variadas. E mais: ele implica um modo de pensar que torna porosos os limites do comentário acadêmico. Você concorda comigo?

Orlandi: Eu até diria algo mais: graças a uma sinuosa imbricação de problemas, aparecem no seu livro tonalidades afetivas e zonas conceituais de interpenetração entre o texto espinosano e o seu próprio texto. No meu caso de leitor, ao imergir nessa atmosfera, fiquei exposto a uma região de contaminações recíprocas. Meu prefácio ou posfácio, não poderá, infelizmente, mapear esses domínios de invasão mútua sem correr o risco de meramente justapor passagens, justaposição que acabaria perdendo o que se cria entre esses distintos fluxos expressivos, coisa que só as mil e uma leituras poderão colher até mesmo com imenso prazer. E digo mais: seja qual for a variação privilegiada pelo leitor, ao percorrer linhas e entrelinhas do seu livro, anotando-as como pesquisador atento à letra das palavras ou desfrutando-as como quem se deixa levar pelo impulso inovador no domínio dos conceitos e da sensibilidade, sua leitura terá provavelmente a oportunidade de reanimar impressões teórico-emocionais que você próprio, Deleuze, diz ter vivido ao encontrar novos ares em meio a novos modos de pensar. Lembra-se daquele ar puro que lhe vinha de Sartre (1905-1980), esse pensador privado, como você disse, tão atento às difíceis articulações entre exigências coletivas e a subjetividade da pessoa? E essa impressão de novos ares restaura-se em sua convivência com o pensamento de Espinosa, esse nascedouro de ventanias. Ao ler seus retornos a Espinosa, sinto que ele é o pensador absoluto que mais lhe fez, como você já escreveu, o efeito de uma corrente de ar, dessas capazes de nos empurrar pelas costas toda vez que o lemos. Mas, retomando o que disse antes, acho que seus contatos com Espinosa não apenas conservam como desdobram esses fluxos de novos ares…

Deleuze[rindo]: Já que é para manter essa febre em nossa conversa, quero também dizer algo mais: quando se lê Espinosa, ele nos faz montar uma vassoura de bruxa. E a cada ano, em toda parte, surgem novos estudos dedicados a esse bruxo do século XVII. É impressionante isso.

Orlandi: Com efeito. Como o seu livro suscita a aventura de nos deixar expostos a uma multiplicação de novos ares, posso dizer que ele também propicia a ventura de voarmos agora ao sabor de uma dupla vassoura enfeitiçada, porque você também, Deleuze, tem algo de bruxo.

Gérard Lebrun [que por ali passava naquele momento]: Concordo com essa observação. É verdade que Deleuze é bruxo. Prova disso, como já escrevi uma vez numa referência à tradução brasileira de A Dobra. Leibniz e o Barroco, é que, ao ler esse livro, a gente não reconhece aquele Leibniz que estudamos ao longo dos anos anteriores; mas o engraçado é que a gente não mais se livra da leitura proposta por Deleuze, e passa a ver Leibniz com os olhos desse bruxo. E passamos a voar com essas novas vassouras, como você diz. Mas é também claro que há sempre a possibilidade de riscos, de enganos… desculpem-me a intromissão, eu estava só de passagem, levado pelos meus passeios ao léu, até logo.

Orlandi: Agradeço sua atenção, caro Lebrun. Até logo. Retomando nossa conversa, Deleuze, eu quero que meu prefácio ou posfácio não se entregue apenas a delírios ou se contente com quedas nesta ou naquela insuficiência interpretativa. É preciso que ele se mantenha em voo, isto é, em seu direito de convidar os leitores a estarem atentos ao dinamismo e à experimentação das ideias. Há um coriscar de questões em seu livro. Elas não desmaiam em erudições monótonas. As diferenças rebrilham no seu livro, não apenas em função de contendas filosóficas passadas, mas realçam uma espécie de insistência, a da permanente necessidade da criação conceitual, pois campo problemático e plano de imanência são coextensivos. Isso me parece coincidir com o próprio fio condutor do pensamento que se constrói no seu livro: eis-nos [sempre] forçados a pensar e sentir a diferença, como você escreveu uma vez.

Deleuze: Sim, mas tomemos o cuidado a que Lebrun nos convidou ao passar por aqui. Quando você fala nesse fio, acho que você está atento ao seguinte: esse fio é irredutível ao de Ariadne. Eu não distribuo aos leitores um novelo que os levaria a um único Espinosa, mas ao multi-espinosismo dos meus encontros. O labirinto das minhas frequentações é rizomático, como diríamos Guattari e eu (e também Eco naquele Posfácio ao Nome da rosa).

Orlandi: Claro! Esse labirinto é de outra complexidade. Em função disso, pergunto se não seria possível tecer um paradoxal preceito de leitura: o de frequentar com alegria os jogos da diferença, desde as jogadas irônicas no nível dos princípios até as humorísticas que se dispersam em consequências. Tem algum sentido isso?

Deleuze: Acho que tem algum sentido, pelo menos para mim, mas com o cuidado de se tomar como operatório na imanência um princípio que co-funcione com ela mesma, o princípio da afirmação diferencial.

Orlandi: Seria possível esclarecer um pouco mais isso?

6.1

Deleuze: Vejamos se podemos fazer isso numa simples conversa. Penso que o princípio de afirmação diferencial é próprio das linhas de fuga do labirinto rizomático. Este conta com fios de metamorfose que implicam o princípio a que me refiro. Como implica a afirmação diferencial, o fio de metamorfose corresponde, primeiramente, a um momento em que o pensamento conceitual se sente plenamente bem com a liberação daquilo que ele mais tentou disciplinar ao longo da história: a diferenciação que o ameaçava de fora e que acabou por invadi-lo, explodindo as armadilhas da interioridade; em segundo lugar, esse fio de metamorfoses nos diz o quão importante é efetuarmos nosso esforço próprio e, no caso presente, por exemplo, ele nos ajuda a não nos tornarmos bobamente seguidores deste ou daquele pensador; em terceiro lugar, o cuidado com a diferença equivale a estar sempre à espreita dos signos, disso que nos força a pensar, coisa que aprendi com os animais, como você destacou logo no início da nossa conversa, animais que vivem à espreita dos signos que os acossam em seus territórios. Pois bem, esses cuidados e espreitas devem constar, como diz você, entre os constituintes de uma leitura plural, esse tipo de leitura que eu gostaria que fizessem dos meus textos dedicados a Espinosa, já que é disso que estamos falando. Mas vejo que Lyotard já está nos ouvindo, e nos sorri. Boa tarde Lyotard, como vai?

Lyotard: Bem, digamos que bem. Estava de passagem por esta linda praça, vi vocês, me aproximei para cumprimentá-los; ouvi suas últimas palavras, Deleuze, e só acrescentaria uma observação. Mas, antes, gostaria de agradecer a você pelas bondosas palavras com que recebeu meu Discours.

Deleuze: Não foi bondade minha, mas admiração pelo seu magnífico livro.

Lyotard: Bom, minha observação é esta, confiando que ela seja útil a seu interlocutor. Se a leitura do seu primeiro livro dedicado a Espinosa se mantiver aberta ao fluxo das linhas de diferenciação, ela certamente se transformará em colheita complexa, seja daquilo que o leitor vem buscando, seja daquilo que o afronta como algo inesperado. E digo também o seguinte: se você vier a falecer antes de mim, Deleuze, eu lhe farei uma homenagem no Libération apontando esse pendular da leitura entre o esperado e o inesperado. Por que farei isso? Porque todos os seus livros foram feitos para colhermos neles tudo o que precisamos. Principalmente aquilo de que não precisamos por não termos nem ideia da sua existência. O leitor, portanto, está convidado a explorar inventivamente essa dupla face da colheita, porque, com você, Deleuze, comentar é inventar. Seu livro, portanto, pode ser duplamente útil, principalmente se levarmos em conta que a “utilidade se mede pelo aumento da potência de inventar.

[E lá se foi Lyotard pela praça afora]

Orlandi: É uma pena que Lyotard não possa continuar conosco. O que ele disse bastaria até mesmo como núcleo do meu prefácio ou posfácio!

Deleuze: É verdade, mas devemos acolher o bom acontecimento que ele nos proporcionou, sua generosa observação, não destituída de certo sorriso, o que é bom!

Orlandi: Como você retomaria a observação feita por ele a propósito desse pendular da leitura, levando em conta minha dificuldade de prefaciar a tradução do seu livro?

Deleuze: Ele nos diz que comentar é inventar…

Orlandi: Correto. Isso me parece importante!

Deleuze: Mas é claro que não se trata de uma atividade inventiva deixada apenas à deriva de saltos ficcionais da imaginação.

Orlandi: Como assim?

Deleuze: É que, pelo menos no caso de Espinosa, a invenção, essa atividade consistente em formar pensamentos, encontra sua via correta quando se exercita em meio ao esforço investido numa definição dada.

[E Marilena, que por ali passeava com seus orientandos naquele momento, ao ouvir o que dizia Deleuze, sorri acenando sua aprovação e dizendo o seguinte: ]

Marilena: Pode-se ter uma ideia dessa elevada auto-exigência espinosana quando se leva em conta a tecedura do seu universo de definições.

Orlandi: Estou agradecido pela sua observação, prezada Marilena. Não poderia ficar conosco mais alguns instantes?

Marilena: Gostaria, mas estou atarefadíssima com este meu grupo dos Cadernos Espinosanos. Até outra vez.

Orlandi: Até breve. [Voltando-se para Deleuze, retoma a observação de Marilena]. Não seria absurdo ver nesse universo uma espécie de rede de controle da própria atividade inventiva, um meio de lançar-se a invenções a partir de um firme ancoradouro estruturado em definições? Uma espécie de antídoto ao delírio dos voos desamparados ou uma rede favorável à solidez da própria liberdade de pensar? Como as definições, na Ética de Espinosa, estão voltadas inicialmente ao Absoluto, procurou-se ver aí um dogmatismo espinosista, o que é uma forma de encerrar a discussão, não acha, Deleuze?

Deleuze: Sim, mas devo salientar o seguinte: o que está em pauta nesse cuidado com a invenção é menos uma negação da “potência de imaginar” e mais a afirmação do jogo que com ela estabelece uma outra potência nela envolvida, a “nossa potência de compreender”. Assim, “quanto mais compreendemos coisas, menos formamos ficções de gêneros e espécies”.

Orlandi: E isso não comporta um acerto de contas com Aristóteles?

Deleuze: Sim, evidentemente. Estou sublinhando, justamente, o modo como Espinosa, para além de Aristóteles, dá outro alcance ao método sintético. Estar atento a esse jogo é envolver-se com os meios que “permitem à potência de pensar ir de um ser real a outro real ‘sem passar pelas coisas abstratas’”.

Orlandi: Isso me faz lembrar de uma expressão de Marilena: trata-se da subversão espinosana, que você, Deleuze, parece concentrar nossa atenção a uma ideia de potência irredutível à ideia de mera possibilidade. Quando me lembro do quanto você se interessa por uma teoria do acontecimento, noto facilmente nela a importância da ideia espinosana de potência, de potência de agir, em última instância.

Deleuze: De certo modo, concordo com você, mas é preciso levar em conta alguns tensores fundamentais dessa dita teoria: os acontecimentos e seus signos – implicando diferenças de intensidade, o poder de afetar e ser afetado, tanto nos movimentos e repousos quanto nas lentidões e velocidades – estão ligados a um complexo circuito de imbricações ou preensões: as que vibram entre problemas e circunstâncias e as que oscilam entre a variação contínua da potência de agir e a variação contínua da potência das coisas.

Afirmação na imanência

Orlandi: Atrevo-me a dizer que esse ponto de vista nos convida a ver cruzamento de dinamismos implicados nas definições espinosanas. Convida-nos a encontrar em Espinosa uma viva atenção a essas dimensões da variação. Não é à-toa que sua ideia de potência promove uma redistribuição dos entes, uma nova maneira de pensá-los, percebê-los, senti-los.

Deleuze: Correto, o que nos leva de volta ao acerto de contas com Aristóteles: diferenciando-se unicamente como graus de potência, os entes já não se distinguem pela sua forma, seu gênero, sua espécie, sendo tudo isso secundário, derivado. E mais: para além da equivocidade linguageira do ser, assim como das suas univocidades intra-genéricas e das suas analogias, essa ideia dos graus de potência pode ser pensada como fundamentalmente ligada à ideia de univocidade do ser, de modo que um só e mesmo ser se diz num só e mesmo sentido, no sentido da potência. Isso quer dizer que a diferença entre os entes é unicamente de grau de potência na realização de um só e mesmo ser.

Orlandi: Como arrumar os argumentos nesse sentido?

Deleuze: Será que sua curiosidade não acabará atrapalhando nossa concentração no seu prefácio ou posfácio? De qualquer modo, não é o caso de tratarmos aqui desse tema tão controverso. Resumo apenas alguns passos da minha argumentação. Retomo certa passagem da Ética da seguinte maneira: Deus é causa de todas as coisas no mesmo sentido em que é causa de si. Quer dizer que causa eficiente e causa de si são ditas no mesmo sentido e, portanto, que Deus produz como ele existe. Concentro nessa conclusão o que, para mim, são dois aspectos da univocidade espinosana, a univocidade da causa e a univocidade dos atributos. Por que posso dizer isso? Porque, de um lado, Deus produz necessariamente e, de outro, ele produz necessariamente nesses mesmos atributos que constituem sua essência. Pois bem, o que se exprime no conceito espinosano de imanência, é justamente essa dupla univocidade da causa e dos atributos. Isso significa que o conceito espinosano de imanência exprime uma unidade e uma identidade: a unidade da causa eficiente com a causa formal e a identidade do atributo tal como ele constitui a essência da substância e tal como ele está implicado pelas essências de criaturas.

Orlandi: Assim sendo, parece-me que surge um problema: reduzidas a modificações ou a modos, não estariam as criaturas perdendo toda essência própria ou toda potência?

Deleuze: Não, pois a univocidade da causa não significa que a causa de si e a causa eficiente tenham um só e mesmo sentido, mas que ambas se dizem no mesmo sentido do que é causa. Então, afirmar a univocidade dos atributos não quer dizer que a substância e os modos tenham o mesmo ser ou a mesma perfeição, pois a substância é em si, ao passo que as modificações estão na substância como em outra coisa. Vale dizer: os mesmos atributos, tomados no mesmo sentido, constituem a essência de um e estão implicados pela essência do outro.

Orlandi: E se a gente comparar num relance essa construção conceitual do unívoco espinosano com a pensada em relação a Duns Escoto (1266-1308), a que conclusão chegaremos?

6.2

Deleuze: Muito simples: a comunidade ontológica espinosana não se limita, como em Duns Escoto, ao pensamento de um Ser neutralizado, de um ser indiferente ao finito e ao infinito. Ora, o Ser qualificado da substância é o que se afirma na imanência espinosana, nessa nova figura tomada pela teoria da univocidade. Devemos anotar esse diferencial espinosano: ao mesmo tempo em que se afirma que a substância permanece em si nesse Ser, é nele também que os modos permanecem como em outra coisa.

Orlandi: Mas não é esse diferencial, posto como necessário no confronto aí esboçado entre Espinosa e Duns Escoto, que você estabelece como sendo ainda insuficiente na sua própria construção conceitual da univocidade do ser?

Deleuze: Sim, essa comunidade ontológica não satisfaz ainda o projeto de uma radical erradicação da indiferença entre a substância e os modos; para tanto, seria preciso que a própria substância fosse dita dos modos e somente dos modos.

Orlandi: Suas leituras de Nietzsche certamente o socorreram nesse momento?

Deleuze: Certamente, não há porque negar isso. Mas o meu trabalho não se reduz a procurar aliados para Nietzsche. Nem ele precisa disso e nem minha admiração por ele é a de filiação. Estabeleci alianças, apropriando-me construtivamente do momento nietzscheano do unívoco, isto é, da afirmação do ser como devir implicando a vontade de potência e o eterno retorno seletivo da diferença. Era preciso, ainda, que o ser viesse a ser univocamente dito como diferenciação complexa, vale dizer, como imanência que se tece na dupla diferenciação, a virtual e a atual, intensivamente constitutiva de todo e qualquer ente. Seja como for, com Espinosa, tínhamos alcançado aquele momento do unívoco, momento prodigioso, no qual o ser unívoco deixa de ser neutralizado, tornando-se expressivo, tornando-se objeto de afirmação pura.

Orlandi: Quer dizer, em resumo, que seu livro não é um julgamento de Espinosa e nem milita por um espinosismo subsumido por um nietzscheanismo?

Deleuze: Isso é mais do que óbvio! Escrevi e volto a sublinhar que pensei Espinosa como o filósofo da afirmação na imanência. Mas é também verdadeiro que, com Nietzsche, procurei destacar e radicalizar a afirmação do múltiplo, a alegria prática do diverso, alegria para mim imprescindível ao filosofar crítico dos sentimentos negativos ou das paixões tristes, estes fundamentos do poder do niilismo. Mas todos sabemos, inclusive o próprio Nietzsche, que já Lucrécio e Espinosa escreveram páginas definitivas a esse respeito, tendo ambos, antes dele, concebido a filosofia como o poder de afirmar, como a luta prática contra as mistificações, como a expulsão do negativo.

Orlandi: E você mesmo, permita-me dizer, manteve sempre essa perspectiva. Recordo-me, aliás, de outro elogio de Lyotard a você: naquele fim de século niilista, dizia Lyotard, você era a afirmação.

Deleuze: Mas tudo isso exige um cuidado: nunca afirmar a imanência como imanente a algo, pois tal operação faria desse algo um transcendente, e a própria imanência seria negada.

6.3

Orlandi: Acho que sua própria maneira de ‘escrever-com’ e não ‘sobre’ um autor é praticante desse cuidado. Em vez de sobrepor-se como hegeliana ave de Minerva, sempre disposta a dar um golpe dialético e a emitir seu lúgubre pio do negativo, a bruxaria do seu livro consiste em desdobrar-se como afirmação num plano de imanência. É neste plano que suas multialianças conceituais operam sempre nesse regime da ideia de um ser que se diz univocamente como diferenciação complexa em todo e qualquer ente. Por isso, não optei por um prefácio ou posfácio interessado em discutir aqui se os seus comentários têm ou não razão ao pé da letra do texto de Espinosa. Há vibrações conceituais no pé de toda letra escrita por um filósofo, razão pela qual somos sempre convidados a ficar atentos à letra e ao espírito, isto é, atentos, como você disse uma vez, ao estado de permanente crise da filosofia, ao seu estado problemático de intenso jogo entre as saraivadas dos conceitos, os abalos do plano de imanência e os solavancos dos personagens conceituais. Acho mesmo que nossa conversa é um esboço dessas vibrações.

Peças de uma arte dos encontros

Deleuze: É um prazer concordar com você a esse respeito. Aliás, noto que você opta por variar no próprio momento em que se alia. Gostaria de ouvi-lo um pouco mais…

Orlandi: Penso que o estado de crise a que você e Guattari se referem oscila desde os casos de abandono de uns pensadores pelos outros até os casos em que nele se dinamizam singulares coesões. São estas últimas que ocorrem inúmeras vezes entre você e Espinosa: deixando de lado os personagens conceituais, digamos que entre vocês ocorrem alianças conceituais num plano de imanência que se relança em mil e um platôs; essas alianças são abertas, imbricam-se com outras, como aquelas entre você e Nietzsche, entre você e Bergson etc., sem que se legitime, seja ao pé da letra ou nas vibrações do espírito, a tentativa bem ou mal-humorada de colocar uma como centro das demais. Há muitas fugas curto-circuitando esses agenciamentos conceituais. Muitos anos depois de ter escrito seu Espinosa e o problema da expressão, você chegou a afirmar a “grande identidade Espinosa-Nietzsche”.

Deleuze: E você não gostou disso, pelo que noto!

Orlandi: Não é bem isso. É que você correu o risco de ser visto como alguém esquecido da prioridade do seu próprio princípio da diferenciação; como alguém que, tendo visto uma inspiração espinosista em Nietzsche, teria esquecido sua possível adesão à crítica feita por este, à crítica segundo a qual Espinosa não soube elevar-se à concepção de uma vontade de potência. Ora, aquela expressão e as insinuações de esquecimento tornam ainda mais necessário abandonar certo preconceito não incomum: o de higienizar as linhas que multirrelacionam os pensadores, e julgá-las a partir de filiações, de influências e de outros operadores da mesma espécie, todos dados à fabricação de árvores filosóficas. A respeito da grande identidade Nietzsche-Espinosa, em particular, estão em pauta inúmeros pontos de cruzamento entre formulações desses filósofos, pontos que você mobiliza graças a uma arte das dobras, como salienta Pierre Zaoui. Alheia à tentação de uma síntese última, essa arte é posta, isto sim, à serviço da imanência.

Deleuze: Está certo, concordo que se trata de uma arte das dobras, contanto que estejamos atentos aos vincos dessas dobras, vincos que se constituem justamente pela passagem de fios de metamorfose.

Orlandi: Pois bem, essa arte, que não apenas dobra, mas desdobra e redobra, se insinua por todos os interstícios do conjunto da sua obra, compondo ou retomando encontros os mais variados, de longa ou curta duração. Noto que no conjunto de todos esses encontros, os que contam com o nome de Espinosa estão entre os mais numerosos.

Deleuze: É mesmo? Você notou isso, é? Acho que eu mesmo não saberia apontar um por um.

Orlandi: E nem mesmo eu saberia apontá-los de memória. Mas como pressenti que nossa conversa chegaria a este ponto, anotei alguns exemplos de tais encontros aqui neste papel, afora aqueles já mencionados e outros constantes nos estudos dedicados por você diretamente a Espinosa.

Deleuze: Deixe-me dar uma olhada nessa lista de encontros que eu teria arrumado entre Espinosa e outros.

6.4

[Foi então que Orlandi passou às mãos de Deleuze a seguinte lista de encontros]:

  • Entre Espinosa e Proust em torno do humor judeu e da linguagem dos signos;
  • Há um inesperado e Orlandi encontro entre Espinosa e Sade, pois, apesar do sadismo ir do negativo, como processo parcial de negação sempre reiterada, à negação como ideia total da razão, haveria um espinosismo em Sade, presente no delírio próprio da razão demonstrativa, na afirmação da força demonstrativa, no surgimento do instinto de morte como pensamento terrível, como uma ideia da razão demonstrativa;
  • Entre os muitos encontros entre Lucrécio e Espinosa, há um relativo às inquietações da alma no homem religioso;
  • Entre Espinosa, Freud, William James, Bergson a respeito da comunicação dos inconscientes;
  • Entre, de um lado, a teoria da distinção real em Espinosa e Leibniz, que postula a pertença de elementos simples realmente distintos, embora não numericamente distintos, a um mesmo ser ou substância – teoria cuja fonte, segundo Gilson, remonta a Duns Escoto – e, de outro lado, uma teoria do desejo pensado como positiva conectividade entre elementos não ligados por laço direto, compondo-se, assim, um corpo sem órgãos, um corpo pleno substancial que não funciona absolutamente como um organismo. Tecido em linhas de fuga, esse corpo está como que vinculado a um virtual desenvolvimento espontâneo das forças, esta ideia fundamental de Espinosa;

6.5

  • Entre Kafka e a presença implícita de Espinosa no tema da imanência, da justiça imanente, da alegria e do intensivo;
  • Entre Espinosa e Artaud reunidos na mesma pergunta: afinal, o grande livro sobre o Corpo sem Órgãos não seria a Ética? Ou em torno do personagem Heliogábalo, isto é, da experimentação na qual anarquia e unidade fazem uma só e mesma coisa, a mais estranha unidade que só se diz do múltiplo, a multiplicidade de fusão, as maneiras de ser ou modalidades como intensidades produzidas, vibrações;
  • Entre Espinosa e o naturalista Geoffroy Saint-Hilaire, nas lembranças a um espinosista, em torno da ideia de se chegar a elementos que só se distinguem por movimento e repouso, lentidão e velocidade sobre um plano de imanência ou de univocidade, isto é, sobre um plano de consistência ocupado por uma imensa máquina abstrata com agenciamentos infinitos, plano que a linguagem só expressa quando nela realmente funciona o que está implícito nas questões das crianças, os artigos indefinidos, os que aparecem como nesta pergunta: como uma pessoa é feita?, razão pela qual os autores concluem que o espinosismo é o devir-criança do filósofo;
  • Entre a verdadeira Ética que Espinosa escreveu e certa etologia, esse tipo de estudo dos mundos animais levado a cabo por Von Uexküll, estudo que busca os afectos ativos e passivos de que o animal é capaz num agenciamento individuado de que ele faz parte, como dizem as lembranças de um espinosista;
  • Entre Espinosa e Charlotte Brontë, Lorca, Lawrence, Faulkner, Michel Tournier, Pierre Boulez etc., visto surgirem hecceidades nas obras de cada um deles, isto é, uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data, acontecimentos que se caracterizam por modos de individuação irredutíveis a uma pessoa, sujeito, coisa, substância, individuações de tal modo concretas que elas valem por si mesmas e comandam a metamorfose das coisas e dos sujeitos;
  • Entre Espinosa, implícito, Francis Bacon e Artaud em torno do corpo sem órgãos e das aventuras picturais entre o olho e a mão;
  • Entre Espinosa, implícito, e Bergson a respeito do plano de imanência como agenciamento maquínico das imagens-movimento e como variação universal;

6.6

  • Entre Espinosa, implícito, e Vertov a respeito do sistema em si da variação universal;
  • Entre a reversão espinosana da filosofia – levada agora à aguda consciência do quanto o corpo força a pensar a vida, que é o que escapa ao pensamento – e o cinema que, pelo corpo, e não mais por intermédio do corpo, se une com o espírito, com o pensamento, destacando-se aí as artes de Antonioni e de Carmelo Bene;
  • Entre Espinosa, implícito, e Foucault a respeito da possibilidade de se pensar como poder de ser afetado a ideia de matéria da força e de se pensar como poder de afetar a ideia de função da força;
  • Entre Espinosa e Bergson, de um lado, e Foucault, de outro, a respeito do distinto encaminhamento dado aos seus respectivos dualismos de partida: como etapa provisória ultrapassada em direção a um monismo, no primeiro caso, e, em Foucault, como repartição preparatória que opera no seio de um pluralismo imerso na multiplicidade das conexões de forças, de tal modo que o próprio dualismo da força, afetar–ser afetado, é , em cada uma, somente o índice daquela multiplicidade, o ser múltiplo da força.
  • Entre Espinosa e Foucault a respeito da posição de ambos em prol da liberação do homem, posição que espantava não poucos cretinos, pois, perguntavam, como seriam esses pensadores favoráveis a essa liberação se o primeiro não acreditava em sua liberdade e nem mesmo em sua existência específica, enquanto o segundo proclamara a tão mal compreendida ideia de morte do homem;
  • Entre Espinosa, Pascal e Leibniz a respeito da distinção das ordens de infinidade;
  • Entre Espinosa e Fichte, pois há um profundo espinosismo no método pelo qual Fichte elabora uma oposição (já mostrada por Gueroult em seu estudo sobre A evolução e a estrutura da Doutrina da Ciência) ao método analítico de Kant, oposição tão complexa quanto aquela (que Gueroult expõe no primeiro volume do seu Spinoza, também publicado, como Espinoza e o problema da expressão, em 1968) notada entre a ordem geométrica analítica de Descartes e a ordem geométrica sintética de Espinosa.
  • Entre Espinosa e François Châtelet – ambos capazes de inspirar os combates na imanência – em torno da crítica aos que lutam pela sua servidão como se fosse sua liberdade e em torno da atenção à singularidade em detrimento do universal, do abstrato que nada explica;
  • Entre Espinosa e Wilhelm Reich, pois este redescobriu o problema que Espinosa soube levantar, e que os autores de O Anti-Édipo conservam como sendo o problema fundamental da filosofia política, assim expresso: por que os homens combatem pela sua servidão como se se tratasse da sua salvação?
  • Entre Espinosa e um certo espinosismo encarniçado presente no esgotamento do possível em Beckett .
  • Entre Espinosa e Kant, não por haver algo em comum entre eles, mas porque são admiráveis criadores de conceitos, como o da reversão pela qual Kant submete o movimento ao tempo. Porém, como os conceitos estão sempre ligados a problemas, caracterizando-se cada filosofia por intersecções de ambos, e como cada um de nós, graças a um mistério não elucidado, tem mais ou menos afinidade com este ou aquele gênero de problemas, donde a presença do gosto em filosofia, então nossa admiração por este ou aquele grande pensador acaba sendo distintamente filtrada, prismatizada, pelo estranho vínculo teórico-afetivo que nos liga a uma (in)determinada zona do campo problemático. Ora, como Deleuze, a respeito da ideia de crítica, se sente mais ligado aos problemas que se propõem buscar meios para acabar com o sistema do juízo, e como a crítica kantiana aparece como o método do tribunal da razão, então a admiração por afinidade problematizante leva-o a procurar alianças mais constantes com Espinosa, Nietzsche, Lawrence, Artaud… Em outros termos, como, sob certo aspecto, a Crítica da razão judicativa é o livro de Kant que erige um fantástico tribunal subjetivo, então a verdadeira crítica do juízo, diz Deleuze, aquela que rompe com a tradição judaico-cristã, é justamente a levada a cabo por Espinosa e, depois, retomada e relançada por quatro grandes discípulos seus: Nietzsche, Lawrence, Kafka, Artaud, tendo os quatro, aliás, padecido do juízo.

 6.7

Ousadia de pensar, agir, amar

Deleuze: Fico admirado com essa lista, sinal de uma notável paciência! Eu teria algo a dizer a respeito dela, mas quero conhecer a utilidade dela para o seu prefácio ou posfácio.

Orlandi: Ela é apenas uma listagem de recortes de encontros que o envolveram com outros filósofos, mas que implicaram o nome de Espinosa. Ela seria ainda mais longa. Mas o já apontado é suficiente, pelo menos como conjunto de sinais capazes de nos alertar em relação ao seguinte: o que reúne pensadores empiricamente separados no tempo e no espaço é coisa efetivamente complexa, é um notável e paradoxal fazer junto, é um singular acordo discordante entre potências de agir, e de agir em função de problemas com os quais estamos vinculados de maneira nem sempre clara e distinta, o que torna pelo menos precária a pretensão de julgar tais reuniões a partir de critérios exteriores a elas e até mesmo de critérios extraídos de um dos participantes apenas, seja ele o convidado ou o anfitrião. Do ponto de vista do prefácio ou posfácio ao seu livro, acho que essa listagem carece de dois reparos. Primeiro, ela não quer dissuadir o leitor a não anotar os eventuais erros de leitura porventura praticados por você.

Deleuze: Também acho importante que você não pretenda inibir o senso crítico dos leitores. Posso fazer isto ou aquilo com o pensamento alheio, mas, ao dizer que fulano disse algo, é preciso que ele o tenha dito em algum lugar.

Orlandi: Certamente. O leitor é livre para assinalar erros de leitura; é livre até mesmo para defender o autor comentado dos erros cometidos por comentadores, embora eu ache que as obras notáveis não careçam de defensores ordinários. E quando isso ocorre, geralmente em notas de rodapé, não é a grande obra que está em jogo, mas sim as jogadas entre ordinários. Outra coisa: o leitor é ainda livre seja no sentido de criar seu próprio encontro com o pensamento de Espinosa ou no sentido da melhor apreensão possível dos encontros do comentador com Espinosa. Digo também que esses cuidados ajudarão a ver melhor o que acontece neste Espinosa e o problema da expressão, onde comentário e invenção se articulam na ousadia de pensar e não nos aspectos cansativos e repressivos da mania de superar ou de ater-se aos aspectos negativos da apreciação.

Deleuze: Você sabe que essa questão não deixa de ser delicada. Por que escrevo um livro? Talvez seja melhor que ela fique um pouco mais clara. Mas eis que se aproxima Villani e ele deve ter algo a dizer; certa vez escrevi a ele uma carta a esse respeito. Lembra-se, Villani, que certa vez eu lhe escrevi uma carta tratando rapidamente dos aspectos que me levam a escrever um ou outro livro?

Villani: Boa tarde, amigos. É claro que me lembro. Escrevi um texto no qual a transcrevo parcialmente. Na carta você dizia três coisas capazes de justificar a existência de um livro: primeiramente, como função polêmica, o livro deve escapar do erro cometido por outros livros dedicados ao mesmo tema ou a um tema vizinho. (Por exemplo, seu Proust e os signos pretende combater o erro de privilegiar a memória como chave de leitura da obra de Proust). Em segundo lugar, como função inventiva, o livro merece existir quando consegue evidenciar que algo essencial foi esquecido sobre o tema. (No caso do exemplo em pauta, foram esquecidos justamente os signos). Finalmente, como função criadora, sua carta diz que um livro merece existir quando se apresenta como ocasião em que se é capaz de criar um novo conceito. (Como o conceito da coexistência de três e não dois – tempos na obra de Proust). Se Deleuze me permite resumir ainda mais a carta, eu diria que, metodologicamente, o primeiro ponto é lutar contra a ilusão dos falsos problemas, de modo que, em segundo lugar, se possa restituir os verdadeiros problemas. Finalmente, a invenção do conceito implica toda uma teoria relativa à fecundidade do novo. Mas como essa questão está mais ligada ao meu próprio texto, e como estou apressado, deixo-os em paz…

Orlandi: Estou feliz com sua passagem por aqui, meu caro Arnaud e muito grato pela sua colaboração. Lamento apenas que seu texto não tenha assinalado as três funções (a polêmica, a inventiva e a criativa) do ponto de vista do livro que estou tentando prefaciar nesta conversa.

[Risos. Villani se afasta e a conversa a dois é retomada]

Deleuze [Sorrindo]: Meu caro, não caberia a você encontrar os três aspectos aos quais fiz referência na minha carta a Villani? Ou seria melhor voltarmos ao seu interesse pela listagem dos encontros entre Espinosa e os outros?

Orlandi [Um tanto quanto constrangido pelo surgimento de uma tarefa inesperada]: Minha preferência é voltar à listagem, pois acho que seria um abuso meu aliviar os leitores desse trabalho. Penso também que aqueles três aspectos sugerem árduos planos de pesquisa. Em todo caso, em face do seu riso e para não dar a impressão de que estou fugindo da raia, devo acrescentar o seguinte: se eu me fiasse apenas no título do seu livro [Espinosa e o problema da expressão], eu diria que o problema da expressão se distribui pelas três funções que você aponta como necessárias para justificar a existência de um livro. No entanto, essa obviedade não indica suficientemente como o livro vai ritmando a própria dramaturgia da ideia de expressão nesses três níveis, seja no destaque de insuficiências interpretativas, seja ao apontar esquecimentos a que ela foi submetida, seja, finalmente, no desenvolvimento das inúmeras e inovadoras explicitações do como essa ideia em seus vários aspectos se enreda de maneira constitutiva na rede conceitual privilegiada pelo livro. E sabemos o quanto essa rede é decisiva no campo dos estudos espinosanos. Basta citar o que você diz na página 159: esses aspectos da expressão (complicação e explicação) são também categorias da imanência; a imanência se revela expressiva e a expressão se revela imanente em um sistema de relações lógicas no qual as duas noções são correlativas. Basta citar ainda o que se lê nas páginas 152 e 309, nas quais a ideia de univocidade leva a imanência expressiva a bastar-se a si mesma numa plena afirmação do ser. E assim por diante. Gostaria agora de voltar a um problema que a listagem dos encontros não evidenciou e que me parece excitar-se com a simples referência a essa dramaturgia da ideia de expressão.

Deleuze: Do que se trata?

Orlandi: Embora seja verdade, caro Deleuze, que aquela listagem discrimina, em extensão, uma amostra do quanto Espinosa está presente no conjunto dos seus escritos, ela, por outro lado, quase nada nos diz a respeito da intensidade dessa presença.

Deleuze: Concordo, acho que há um problema aí. Mas como você o enunciaria?

Orlandi: Permita-me dizer o seguinte: algumas das expressões que recolhi àquela lista podem ser ouvidas como passagens alegres de uma canção de amigo, como verdadeiras interjeições aplaudindo intensamente o que a leitura de Espinosa lhe propicia: o prodigioso livro V da Ética, Espinosa como príncipe dos filósofos, como príncipe da imanência, a Ética como o grande livro sobre o corpo sem órgãos, a grande identidade Nietzsche-Espinosa, o espinosismo como devir-criança do filósofo. Certamente, há humor nessas expressões, mas não gratuidade. Como outras mais, elas exalam a alegria de quem ama o filósofo estudado. Essa intensa presença vai desde sua afinidade com (in)determinado recorte do campo problemático até sentimentos, passando por conceitos, afectos e perceptos. É notório que você se sente bem junto a Espinosa, seja em aulas, seja ao dedicar-se diretamente ao filósofo em textos escritos, alguns mais outros menos longos.

Deleuze: Você tem alguma razão: esses arroubos podem realmente ser tomados como indicadores da minha intensa relação com Espinosa. Mas estou preocupado, agora, em saber com que palavras você diria isso ao leitor brasileiro, do ponto de vista do livro que está prefaciando.

Orlandi: Posso dizer que, em língua portuguesa do Brasil, o leitor tem agora em mãos o mais longo dos seus textos dedicados a Espinosa. Quando estiver terminando a primeira leitura do livro – depois de apreciar o seu esforço visando mostrar que o conceito de expressão sistematiza as três determinações fundamentais: ser, conhecer e agir ou produzir, depois de ler que o sentido, isso que se esparrama nas multiplicidades, não para de se reiterar como aquele expresso que é mais profundo que o nexo de causalidade e mais profundo que a relação de representação, e depois de observar o papel da ideia de expressão na abertura de uma filosofia pós-cartesiana – ele encontrará um apêndice assim intitulado: estudo formal do plano da Ética e do papel dos escólios na realização desse plano: as duas Éticas.

Deleuze: Mas onde você quer chegar ao dizer isso?

Orlandi: Quero dizer ao leitor que, no corpo do apêndice, ao mostrar que os escólios irrompem como vulcões, ocasionando grandes reviravoltas, você, Deleuze, conclui dizendo o seguinte: há, portanto, como que duas Éticas coexistentes, uma constituída pela linha ou fluência contínua das proposições, demonstrações etc., e outra, descontínua, constituída pela linha quebrada ou cadeia vulcânica dos escólios. Em uma, Deleuze leitor encontra um rigor implacável, uma espécie de terrorismo intelectual; na outra, a vibração já é a das indignações e das alegrias do coração, vibrações que manifestam a alegria prática e a luta prática contra a tristeza.

Deleuze: Estou gostando disso, mas me sinto um tanto quanto tenso, pois pressinto onde você quer chegar.

Orlandi [Sorrindo]: Mas é sem maldade que digo essas coisas ao leitor: cerca de dez anos após a publicação de Espinosa e o problema da expressão, em comunicação depois reescrita e publicada em Espinosa: filosofia prática com o título “Espinosa e nós”, você explicita o que entende por Etologia com o auxílio de conceitos elaborados junto a Espinosa. Pois bem, ao findar o texto, e grifando a contribuição de Victor Delbos a esse respeito, você retoma sua apreensão das ‘duas Éticas’, aquela em que se evidencia uma extrema elaboração conceitual a ser capturada por uma leitura sistemática e aquela em que assoma um impulso secreto interno, acessível a uma leitura afetiva.

Deleuze: Já estou entendendo seu jogo…

Orlandi: Deixe-me agora com a bola, já que o campo é todo seu. Pois bem, o enlace dessa dupla leitura é que propicia uma resposta mais complexa à pergunta: quem é espinosista? Pode ser espinosista, diz você, aquele que trabalha sobre Espinosa, sobre os conceitos de Espinosa, principalmente quando suscita suficiente reconhecimento e admiração. Mas pode ser espinosista também aquele que, não-filósofo, recebe de Espinosa um afecto, um conjunto de afectos, uma determinação cinética, um impulso, fazendo assim de Espinosa um encontro e um amor. Digo ao leitor que reencontramos aí mais um sinal do quanto você, Deleuze, é enfeitiçado por Espinosa. Sendo tão apegado ao jogo dos conceitos, tido até como praticante de um estilo seco, por que você dá tanta importância a essa dupla leitura do texto espinosano?

Deleuze – Responder a isso nos levaria muito longe…

Orlandi: É possível que uma resposta mais exaustiva deva remontar a Marx e, de modo mais abrangente, aos problemas da filosofia prática. Mas há uma resposta mais curta, concentrada em Espinosa, justamente, porque sua característica única, ímpar, é a seguinte: embora seja ele o mais filósofo dos filósofos, é também aquele que ensina ao filósofo a devir não-filósofo. Essa rápida resposta, que os professores de filosofia deveriam levar em conta e pedir, pelo menos, que os jornais não os chamem de filósofos, essa rápida resposta explica também porque a parte V da Ética é tida por você como prodigiosa.

Deleuze: Por quê?

Orlandi: Porque nela, graças a uma velocidade infinita, capaz de dobrar uma leitura na outra, o filósofo e o não filósofo se reúnem num só e mesmo ser. É nessa derradeira parte da Ética que se adensa o que já se espalhava pelas outras partes: o encontro do conceito e do afecto, o envolvimento mútuo entre a unidade extensiva extrema e a mais estreita ponta intensiva, esvaindo-se, assim, qualquer diferença entre o conceito e a vida, entre uma ponta e outra do arco retesado, entre o sol branco da substância e as palavras de fogo de Espinosa. Lembra-se que você diz isso, Deleuze, citando Romain Rolland?

Deleuze: Sim, claro! Você está garimpando entre-tempos intensos…

Orlandi: É a essa interferência mútua entre o conceito e a vida, caro leitor, é a esse descobrir-se no meio de Espinosa que nos leva Deleuze, isso que já levara Nietzsche a sentir-se arrebatado, como revela em carta a Overbeck datada de 30 de julho de 1881.

Intensidades do pássaro de fogo virando luz

Deleuze: Com isso, você já poderia findar o prefácio ou posfácio. Sinto-me envaidecido até em demasia. Acho que nossas línguas nos levam a falar demais…

Orlandi: Ainda preciso levar o leitor a uma pergunta: se acreditarmos em Espinosa e o problema da expressão, teremos duas Éticas num só livro denominado Ética? Não apenas duas, mas três! É isso mesmo. Cerca de dez anos após a primeira edição de Spinoza – Philosophie pratique e de vinte anos após Espinosa e o problema da expressão, você, Deleuze, já nos presenteia com uma tríplice leitura voltada para uma tríplice tensão. É o que se pode ler na breve “Carta a Réda Bensmaïa, sobre Espinosa”. Nada se perde da dupla leitura anterior: a sistemática, feita em função das noções ou conceitos, e a afetiva, colada à agitação vulcânica dos escólios; porém, graças a uma espécie de duplicação da leitura afetiva, graças, principalmente, a uma especial retomada da parte V da Ética, temos agora uma terceira Ética, que coexistia com as duas outras desde o início, diz você, mas que solicita uma mais intensa compreensão não-filosófica.

Deleuze: Foi bom você se lembrar disso. Nessa terceira Ética, Espinosa ainda nos fala através de conceitos, é certo, mas também por perceptos puros, intuitivos e diretos.

Orlandi: Quero dizer que você parece insaciável, pois nos leva a encontrar um Espinosa com estilo tridimensional, uma filosofia que se expande envolta em três línguas: a língua do rio dos conceitos, a língua vulcânica e subterrânea dos escólios e, finalmente, a língua como fogo ardendo na parte V e incendiando o resto da Ética. As duas Éticas anteriores, propiciando duas asas, eram capazes de levar filósofos e não-filósofos na direção de um limite comum. Porém, como um estilo carece de pelo menos três asas, e como Espinosa aparece agora dotado de um estilo tridimensional, trialádico, digamos, então ele vem a ser um pássaro de fogo.

Deleuze: Sim, mas veja bem: como os perceptos puros dizem respeito ao terceiro gênero do conhecimento, podemos dizer que a apreensão de uma terceira Ética já se preparava há algum tempo.

Orlandi: Com efeito, numa de suas aulas, ao falar da conveniência entre “minha própria intensidade” e a “intensidade de coisas exteriores”, ao falar do “amor”, você acrescenta: “o que me interessa nessa ponta mística é esse mundo das intensidades”. E ainda: para além da “alegria”, você volta a dizer que Espinosa “encontra uma palavra mística, beatitude ou afecto ativo, isto é, o auto-afecto”. E sabemos que esse mundo do “terceiro gênero”, de modo algum frouxo, é “muito concreto”, é um “mundo de intensidades puras”.

Deleuze: Volto a concordar com você, mas algo mais acontece em meu sentir-me bem com Espinosa…

Orlandi: Sim, eu sei disso. Por exemplo, uma dedicação mais sistemática ao tema das três Éticas aparece, finalmente, em 1993, no capítulo XVII do livro Crítica e clínica: Espinosa e as três Éticas. O leitor certamente ganharia muito capturando a já publicada tradução brasileira desse texto extremamente denso e acrescentando-a como segundo anexo ao livro que tento agora prefaciar. Primeiramente, esse texto reacomoda as metáforas, com o perdão da palavra: aquela Ética dedicada ao tratamento sistemático dos conceitos, das definições, axiomas etc. é ainda aquela dizível como um livro-rio que desenvolve seu curso; a Ética dos escólios, eclodindo em afecções e afectos, mantém-se subterrânea, mas como um livro de fogo, o que era esperado, pois, desde antes, o subterrâneo era vulcânico; finalmente, a Ética do livro V, a dos Perceptos, isto é, das Essências ou Singularidades, das puras figuras de luz, esse terceiro estado da luz, essa terceira Ética, que antes você ligava apenas ao fogo, é agora um livro aéreo, de luz, que procede por relâmpagos.

Deleuze: Sim, eu preciso da superfície…

Orlandi: Também acho… Em segundo lugar, é preciso dizer que essa reacomodação das metáforas não deve atrapalhar o leitor, pois este pode notar que, desde Espinosa e o problema da expressão, tratava-se de explicitar a distribuição da expressividade por dimensões agora apresentadas como três lógicas: uma lógica do signo (imersa nos escólios, presente no jogo do fogo com a Sombra do subterrâneo), uma lógica do conceito (secretada no nível das definições etc.) e uma lógica da essência (captada no modo como o livro V ultrapassa o método dos livros precedentes, remetendo sempre à velocidade absoluta das figuras de luz).

Deleuze: Você não está correndo o risco de exceder-se em tecnicalidades num prefácio ou posfácio? Não seria bom preparar um final menos carregado?

Espaço ideal, solidão povoada e reafirmação

Orlandi: Talvez você tenha razão. Minha intenção é modesta: ao longo dessas inúmeras referências fica pelo menos evidente a extensa e intensa convivência mantida por você com a filosofia de Espinosa. Penso que esse convívio deva ser visto num sentido amplo. Ele implica uma co-elaboração conceitual, uma certa maneira deleuziana de acelerar as passagens, de surfar numa variação de conceitos no meio da obra espinosana, de modo que construtivismo e expressionismo se enlaçam, mantendo-se sempre um sereno e agudo olhar crítico. Mas o seu bem-correr com Espinosa implica também uma singular maneira filosófica de viver, de modo que a procura da suavidade não dispensa a cólera contra os distribuidores de tristeza. Eis uma frase que diz muito bem essa dupla vertente do amplo sentido dado por você ao seu convívio com a filosofia de Espinosa: trata-se de erigir um plano comum de imanência onde estão todos os corpos, todas as almas, todos os indivíduos. Esse plano de imanência ou de consistência não é um plano no sentido de desígnio no espírito, projeto, programa, mas é um plano no sentido geométrico, secção, intersecção, diagrama. Então, estar no meio de Espinosa é estar sobre esse plano modal, ou melhor, é instalar-se nesse plano; e isso implica um modo de vida, uma maneira de viver. Que é esse plano, e como o construiremos? Visto ser ele plenamente plano de imanência, mas devendo, ao mesmo tempo, ser construído para que vivamos de uma maneira espinosista.

Deleuze: O que acaba de dizer é pertinente, mas acho melhor que você deixe o tratamento da noção de plano de imanência para outra ocasião, pois sabe que eu mesmo retornei a ela sozinho ou com Guattari em inúmeros textos, o que mostra, pelo menos, o quanto ela ocorre em prol de alguma problemática que se nos impõe. É que acontecem pequenos desastres interpretativos quando isto é esquecido, como quando alguém procura dizer o que eu estaria querendo dizer ao falar em plano de imanência, chegando alguns a levar meus cuidadosos ziguezagues a receberem o amparo da lucidez que eles julgam extrair de um pensador que nem mesmo costumo ler, o que não é o caso de Espinosa.

Orlandi: Compreendo sua preocupação. Dessa última referência ao plano de imanência extraio apenas a expressão estar no meio de Espinosa. Você concorda que há uma paixão deleuziana pelo meio, assim como pelas alianças e não pelas filiações. E essas alianças se dão sempre em graus muito diversos. Quando alguém está no meio de um movimento, seja político, artístico ou filosófico, ele só pertence a esse movimento, diz você, se ele próprio inventar no movimento. Acho isso muito importante.

Deleuze: Estamos de acordo. Essa paixão pelo meio movente traz consigo um certo desinteresse pelo início e fim de algo. Em vez de obsessões historicistas pelo passado ou futuro, o que conta é o devir; por exemplo, o devir-revolucionário e não o futuro ou o passado da revolução. Aos que se aferram ao começo ou ao fim de algo, da Terra ou de outra coisa, resta-lhes rastrear o estado de coisas inicial ou predizer a pulverização final, perdendo, em ambos os casos, o que ocorre no meio, justamente o irredutível ao começo e ao fim. O interessante é o meio, o que se passa no meio, pois é nele que há, não a mediana, mas o excesso, o devir, o movimento, a velocidade, o turbilhão. Do ponto de vista do tempo, estar no meio não quer dizer estar no seu tempo, ser do seu tempo, ser histórico, e nem também ser eterno; estar no meio é estar naquilo pelo quê os mais diferentes tempos se comunicam, é estar no intempestivo. É fazer com que irrompam na circularidade de Cronos aqueles entre-momentos aiônicos de uma variação decisiva, mesmo quando ela venha a custar a dor de uma lágrima que teima e queima. Por uma razão obviamente distinta daquela que me leva a tematizar a primazia do meio, Maïmon diz o seguinte: nosso conhecimento das coisas, portanto, começa no meio para deter-se igualmente no meio.

Orlandi: E a atenção ao meio pode implicar também uma constatação terrível: para bem caracterizar os seres humanos como os abandonados, como aqueles que foram deixados para trás, os Arawetés dizem que estamos no meio. Porém, mesmo repleto de limitações e condenações, é ainda no meio que se dão os mais dignos combates na imanência.

Deleuze: Com esta expressão, ‘combater na imanência’, você volta a provocar em mim lembranças do amigo François Châtelet, o que me é bom.

Orlandi: Em nossa conversa houve uma referência à arte das dobras.

Deleuze: De fato, e essa é uma das artes do meio. O vinco das dobras é salpicado por improvisos de outra arte, a arte do E, essa arte que Jean Wahl, meu querido professor, levou tão longe. A importância dessa arte, a explosividade da conjunção E, encontra-se nas operações de destituição da supremacia do verbo ser: trata-se de substituir o É pelo E; trata-se de pensar com E em vez de pensar É, por É; aí está a abertura do pensamento nômade, aí está onde pulsa a multiplicidade substantiva, irredutível ao joguinho do Uno e do Múltiplo. Essa chave de reabertura do nomadismo encontra justamente os que estão sempre no meio, seja a estepe, a grama e os nômades, seja pensadores nômades como Epicuro, Espinosa e Nietzsche.

Orlandi: Pois bem, o que tem a ver a arte do E nos seus encontros com Espinosa?

Deleuze: Tem alguma coisa a ver, primeiramente, porque o E implica tomar Espinosa pelo meio (alma e corpo) e não pelo primeiro princípio (substância única para todos os atributos), mesmo porque as coisas só começam a viver no meio. Em segundo lugar, tem algo a ver porque jamais teve alguém um sentimento tão original da conjunção e, uma apreensão tão perfeita de que tudo é encontro no universo, seja ele bom ou mau encontro.

Orlandi: E o valor de um prefácio estaria em provocar um bom encontro do leitor com o livro prefaciado. Meu temor é que um prefácio tão longo e desordenado pode acabar provocando justamente um mau encontro. Você não acha que devemos propor que nossa conversa seja impressa como posfácio ao seu livro?

Deleuze [Rindo]: Essa talvez seja uma boa solução, embora nossa conversa não tenha sido tão desordenada. Além disso, ao longo dela, ziguezagueamos sempre entre pré e posfácio.

Orlandi: O importante é que o leitor tenha visto ou venha a ver que o seu encontro com Espinosa, Deleuze, é de amor e alegria, o que acresce seu poder de ser afetado pelas Sombras, Cores e Luzes do mais filósofo dos filósofos. Mas é importante ver também que os seus encontros com Espinosa, Deleuze, ocorrem num espaço que se expande e se intensifica com outros encontros. Há uma expressão para esse espaço: algo se passa entre. É assim e é por isso que esse espaço se constitui. Algo se passa entre alguns filósofos em relação aos quais você sente afinidades a partir de tensões do próprio campo problemático que o impregna, que o imanta. Algo se passa entre Lucrécio, Espinosa, Hume, Nietzsche, Bergson…, e se passa em velocidades e intensidades diferentes. Pode-se fazer uma pergunta meio absurda: onde é que se encontra esse algo que se passa?

Deleuze: Como potência de certa ou incerta configuração do meio, isso que se passa entre eles não está nem em uns nem em outros, mas, verdadeiramente, num espaço ideal. Esse espaço ideal não faz parte da história, pois não se esgota no conjunto dos estados de coisas que efetuam aquilo que por eles se passa. Mas ele tampouco se resume num diálogo de mortos, pois não é uma antologia de enunciados convergentes ou divergentes.

Orlandi: Então, posso pensar que as ligações intensivas de sua vida e de suas obras foram o seu modo de participar da expressão-construção desse espaço ideal. Há muito trabalho investido nisso. No caso de sua dedicação a Espinosa, há uma dimensão de trabalho clandestino, diz você. Por que clandestino?

Deleuze: Clandestino, porque minha solidão nesse trabalho não era simplesmente relativa, não era uma solidão, por exemplo, de quem não fazia parte de uma escola ou de quem se limitava ao recolhimento de uma vida retraída. Clandestino, porque a expressão-construção desse espaço ideal é operada em meio a uma solidão absoluta, absoluta, mas no sentido de uma solidão extremamente povoada, mas não povoada de sonhos, fantasmas ou projetos que ocupam a solidão relativa. É extremamente povoada a solidão absoluta, porque tudo aquilo que a povoa tem algo a ver com a vibração de virtualidades, que podem chegar a nuvens, névoas, a uma nebulosidade de imagens ou partículas virtuais.

Orlandi: Talvez seja por isso que você pôde dizer, de maneira aparentemente delirante, que participar desse espaço ideal foi frequentar uma conversação interstelar, entre estrelas bem desiguais, cujos devires diferentes formam um bloco móvel que se trataria de captar, um intervoo, anos-luz. Mas acho também que é preciso ligar algo mais a esse intervoo.

Deleuze: Que seria?

Orlandi: É possível que a extrema mobilidade do seu pensamento, que seu nomadismo por mil e um platôs, desde os marcados por uma revisão da ontologia até os voltados para este ou aquele acontecimento estético, é bem possível que todas as suas audácias, mesmo em suas exposições de pensamento alheio, é possível que tudo isso exiba uma tão forte coesão operatória graças a maneiras especiais, plásticas, flexíveis, de colocar em movimento, dosando-o em cada caso, o fogo cruzado de três dimensões moventes que esquentam seus conceitos, dimensões correspondentes aos três gêneros espinosanos do conhecimento: a dimensão das partes extensas, a das relações ou noções comuns e a das intensidades.

Deleuze: Mas como tudo isso só pode ser matéria para outros estudos, minha curiosidade é saber como você concluirá nossa conversa.

Orlandi: Primeiro, agradecendo a você pela paciência e por todas as passagens que pude roubar de suas obras. É claro que eu gostaria de sua concordância também quanto ao seguinte, que se mantenha este prefácio ou posfácio como o que ele deve ser, apenas um convite: que o leitor, aproximando-se cada vez mais de Espinosa e o problema da expressão como quem se dispõe a contemplar ou participar de um encontro, de um acontecimento, de uma singularidade, mergulhe nesse espaço móvel ideal, viaje nesse intervoo e sinta como a leitura, ao cuidar dos conceitos, vibra ao mesmo tempo em velocidades inimagináveis de um fogo-luz. E a cada cintilação algo pode vir a ocorrer, a passar pelos vãos da leitura, levando-o a uma imprevisível potência de pensar afirmativamente, o que não deixa de incluir alegrias, sorrisos e gargalhadas. Seria pouco isso? Mesmo que alguém ache isso muito pouco, é nisso que você mesmo, Deleuze, encontra seu interesse pela filosofia: se não se admira alguma coisa, diz você, se não se ama alguma coisa, não há razão alguma para se escrever sobre ela. Espinosa ou Nietzsche são filósofos cuja potência crítica e destruidora é inigualável, mas essa potência brota sempre de uma afirmação, de uma alegria, de um culto da afirmação e da alegria, de uma exigência da vida contra aqueles que a mutilam e a mortificam. Para mim, é a própria filosofia.

Deleuze [Sorrindo]: Gostei do nosso ziguezague.

Fim da gravação.

Leave a Reply