Zambarado e Bemtevi: bruxarias deleuzeanas entre um Exu e uma pássara

 

Resumo: A vida está sempre nos convidando a nos perder e a nos achar de algum modo. Efêmero, o corpo se constrói e se reconstrói sem cessar. A assinatura da experiência é uma luz que nada tem a ver com algo divino, sempre exterior ao corpo, ou capital, sempre querendo incitar o corpo para o consumo. A experiência é o próprio corpo e sua potência imanente. O que podem as práticas de um corpo no mundo? Seguindo a lanterna de Spinoza, o corpo é que nem vagalume que, enquanto apaga e acende, está radicalmente vivo no meio da escuridão.

Palavras-chave: Exu, Artes do corpo, Experiência, Bruxarias Deleuzeanas e Pós-Deleuzeanas.

 

Resumen: La vida siempre nos está invitando a perdernos y encontrarnos de alguna manera. Efímero, el cuerpo se construye e se reconstruye, sin cesar. La firma de la experiencia es una luz que nada tiene que ver con las cosas divinas, siempre fuera del cuerpo, o cosas del sistema capitalista, queriendo siempre incitar al cuerpo al consumo voraz. La experiencia es el cuerpo mismo e sus poderes inmanentes. Cuáles son los poderes de un cuerpo en el mundo? Siguiendo la linterna de Spinoza, el cuerpo es como una luciérnaga que, al encenderse y apagarse, queda radicalmente viva en medio de la oscuridad.

Palabras clave: Èsù, Artes del cuerpo, Experiencia, Singularidades deleuzeanas, Singularidades posdeleuzeanas.

 

Abstract: Life is always inviting us to lose ourselves and find ourselves in some way. The ephemeral body lives and build and rebuilds itself incessantly. The signature of experience is a light that has nothing to do with the divine, always outside the body, or the capitalist system, always wanting to drive the body towards consumption. Experience is the body itself and its imanente potenty. What is the power of a body in the world? The Spinoza’s lantern say it’s like being a firefly who, while turning his light on and off, lives radically in the middle of darkness.

Key words: Èsù, Arts of body, Experience, Deleuzean aesthetics, Post-deleuzean aesthetics.

 

Na brecha

O desejo de mergulhar nas brechas do Exu [1] Zambarado, de apelido Ow [que lembra – em escrita e fonética – a palavra inglesa para coruja: owl], nasceu no dia em que fui convidada para uma sessão [2] por uma amiga de apelido Broto. Nesse primeiro encontro, testemunhei um diálogo entre ele e uma criança de sete anos, de apelido Pazinha, que me pareceu coisa de cinema: palavra fílmica, como ele mesmo dizia.

 

– Pazinha! Bem-vinda! Você está bem? O que você tem aí nas mãos?

– Ei Ow. Estou muito bem. Eu ganhei um presente do meu pai.

– Ah! Espere um pouco, Pazinha, vamos brincar: você está bem apenas porque ganhou esse presente do seu pai ou com esse presente do seu pai você está bem mais que bem?

– Estou bem mais que bem, Ow.

– Ah! Você já estava bem, então. No entanto, ficou bem mais que bem com a presença do presente…

– É. Foi assim mesmo.

– Mas, Pazinha, se esse presente desaparecer, como você ficará?

– Eu acho que ficarei apenas bem, mas não bem mais que bem…

– Ah! Se um dia o presente que você ganhou do seu pai sumir, você ficará só bem…

– É.

– Mas, Pazinha, o presente que você ganhou do seu pai não estava na sua vida antes e você já estava bem. Você não acha esse fato por si só muito bom? Ou seja, sua vida já estava bem sem esse presente que seu pai deu a você. Desse modo, não tê-lo, um dia, não pode te deixar triste, pois o estado de bem mais que bem, você ainda não sabia do que se tratava. Quer dizer, você já estava bem sem ele. O seu bem mais que bem era o seu bem e isso era bom. Isto é, a nossa vida já é boa sem nenhuma coisa ganhada de nosso pai ou de quem quer que seja e isso constitui todo o bem daquilo que já está bom.

– Ow?

– Sim, Pazinha, diga.

– Não estou entendendo mais nada…

– Não?

– Ow, eu tenho apenas sete anos. Não sei nada de filosofia.

– Uau, você diz não saber nada, mas conhece a palavra filosofia.

– Sim. Meu pai fala dessa maneira com minha mãe e diz que eles estão filosofando.

– De que maneira?

– Dessa maneira engraçada que parece um novelo de lã.

– Pazinha, minha querida, eu sinto te informar que, pelos seus modos, você já está dentro de um grande novelo de lã. Vejam vocês, temos uma filósofa nata…

– Nata?

– Sim. Desde a mais tenra idade.

– Tenra?

– Sim. Vou te dar uma dica para toda a sua vida: compre um dicionário e vá brincando de abrir as páginas ao acaso e coma as palavras lentamente.

– Comer palavras. Viu…

– Viu o quê?

– Sim, Ow, sim.

– Ah! Pensei que você tinha visto que já é feliz mesmo sem o presente que ganhou do seu pai.

– Uai, Ow, você voltou ao início da conversa? Você parece um papagaio. Repete tudo. A mesma coisa toda hora…

– Um papagaio que repete tudo, e a mesma coisa toda hora, mas, mesmo assim, é diferente…

– Nossa, que vai e volta, Ow. Desisto…

– O papagaio também desistiu, viu…

– O papagaio diferente viu o quê?

– Nada, Pazinha, nada. Ele apenas desistiu também.

– Ah! Pensei que você ia falar que o papagaio diferente que repete tudo viu que eu já era feliz, e bem feliz, antes do tal presente que ganhei do meu pai…

 

Gargalhada geral de aproximadamente 30 adultos presentes na sala das reuniões de quinta-feira. Depois disso, Zambarado deu por encerrada a conversa, mas meu corpo encapsulou a alegria daquela a cena numa resina virtual de âmbar [3] para posteriores reutilizações. A vida que passava nos olhos de Pazinha e vinha pulsar em mim me motivou a voltar àquele “set de cinema” na quinta-feira seguinte. Eu queria mergulhar naquele filme de novo. E, assim, empunhando um dos meus velhos caderninhos [que eu ainda catalogaria como caderno de campo] virei frequentadora assídua daqueles estranhos acontecimentos semanais.

Na semana anterior ao segundo encontro, tive um sonho [de olhos fechados] com o cantor e compositor Chico César. O sonho trouxera Chico cantando uma canção de sua autoria [em parceria com Luiz Gonzaga do Nascimento, Alfredo Ricardo do Nascimento e José de Souza Dantas], intitulada “Folia de príncipe”:

 

“Se da minha boca vai / ai, ai / que da tua boca venha / ai, ai / uma declaração de amor / ai, ai/ um beijo apaixonado / ai, ai / seja essa a nossa vênia / ai, ai / o nosso boi de reisado / ai, ai / um reizinho bem coroado / ai, ai / bate em sua moradia / ai, ai / vem louvando e vem louvado / ai, ai / vem cantando essa folia / ai, ai / eu e os meus companheiros / ai, ai / queremos cumplicidade / ai, ai / pra brincar de liberdade / ai, ai / no terreiro da alegria / ai, ai //” [Chico César, 1996, s/p].

No segundo encontro, contei o sonho a Zambarado. Ele ficou em alvoroço. Cheio de um visível contentamento, bateu a mão na perna direita do seu cavalo [4] e exclamou:

– Há nove luas, espero um pássaro me trazer um augúrio [5]. Não sei por que você foi escolhida, moça, mas seja muito bem-vinda! No seu sonho, existem coisas que são para mim e coisas que são para você! Os sonhos são sempre assim: trazem coisas para quem sonha, para quem está no sonho e para quem ouve sobre o sonho.

– Quais são as coisas desse sonho?

– Eu estava pronto para encerrar o trabalho por aqui. No entanto, as três palavras, as cores e as pessoas que movimentaram o seu sonho, aliadas ao fato de você vir aqui compartilhá-lo comigo, me dizem para seguir em frente por mais um tempo. Não sei especificar por quanto tempo. O que interessa é que o sonho me diz para continuar. Você é a mensageira desse augúrio. O que tem para você é o Catimbó [6], através desse trio de palavras: cumplicidade, liberdade e alegria. O Catimbó é um presente do Mestre Bom Floral do Reino de Okê Ajucá [7], para uma Filha da Folha. Bem-vinda ao trabalho, Filha da Folha! Um dia, você escreverá sobre isso. De agora em diante, você será Bemtevi!

– Bemtevi? Não é Filha da Folha?

– São modos combinados. Uma pássara filha da folha que carrega no bico o Catimbó. É uma mistura e tanto! Mas, você sabe, eu sou um Exu: o meu trabalho é movimentar o movimento. Aproveite! Porém, atenção, Bemtevi: passeie com o Catimbó por aí e, começando por Câmara Cascudo e Mário de Andrade [8], pesquise e estude. Depois, algum dia, compartilhe.

O primeiro estudo foi o álbum musical “Tum Tum Tum”, minha estreia fonográfica. Nele, o Catimbó é – além de um território de honra e convívio com a pajelança afro-indígena – um rito de passagem para a fase adulta [9] – que me faria criadora e cuidadora de modos de existência [10] – e o batismo de fogo de um longo processo de educação da atenção [11] para instaurar um código de ética e dessubjetivar a consciência porque, segundo Zambarado e Calunga da Calunga Grande, o direito à consciência sem sujeito [liberdade, movimento e diferença] é o maior ato político de [e para] um corpo encarnado no mundo.

Em Gilles Deleuze, consciência sem sujeito é diferença e variação. Em Zambarado e Calunga da Calunga Grande, é “catimbó zen” [12]. Henri Bergson sugere que a consciência sem sujeito é a duração que experimenta o tempo através da emoção, não o sentimento, mas a movimentação [e-moção]. Para Bergson, tempo e e-moção são coisas inseparáveis porque experimentar o tempo é conhecer a liberdade e só se conhece a liberdade navegando as camadas mais profundas de e-moções: enxergando a sua movimentação.

Calunga da Calunga Grande diz que e-moções profundas são luzes líquidas que se alojam entre a fáscia e os ossos e que o cérebro pode até colocar a movimentação desses conteúdos em repouso, mas o corpo, não. Em algum momento, o corpo os trará à tona. Os dois Exus dizem que experiências de e-moções profundas dobram o tempo e podem produzir mais consciência sem sujeito, captando liberdades e diferenças da movimentação do movimento, presentificando arte, clínica, educação, alegria e cura [linguagem e regeneração] como filosofias indissociáveis.

 

“A resina de âmbar é tempo condensado, assim como o cristal. Em contato com um, utilize aquele nosso conceito  e fique “em posição de teoria”. O que é ficar “em posição de teoria”? Contemplar, observar e agir sem barganhar nada com o devir. Deixe que o instante encapsulado pelo devir disponibilize o que ele tem de mais bonito: a gratidão. A gratidão é uma e-moção profunda do agora, uma tetra-chave que ensina a produzir brechas de vitalidade. Ela geralmente é capturada quando o corpo está na força da fragilidade, da adversidade, da precariedade, ganhando labilidade e percepção de que a vida é um milagre. Por isso, a gratidão é a coisa mais poética, mais bonita e mais revolucionária que existe. É a gratidão que vence a demanda, não Exu” [Exu Calunga da Calunga Grande, 2015, s/p].

Segundo Zambarado, “a consciência sem sujeito é um pequeno retalho de seda pura, pendurado num varal sem hastes, dançando no ar, sob a força brutal de um tornado”. Segundo Calunga da Calunga Grande, “são modos que ampliam a labilidade do corpo”. Auguste Blanqui chamaria esse corpo mais lábil “de sósia que vive em terras alhures”. Viveiros de Castro, de dupla cidadania. Deleuze, de entretempos superpostos. David Lapoujade e Étienne Souriau, de pluralismo existencial. Eu, inspirada neles, chamo de cidadania epifânica ou agência sobre agência ou lisergia gaiana. “Tudo o que se poderia ser aqui, é-se em algum alhures. Além de sua existência integral, desde o nascimento até a morte, vivida numa multidão de terras, vive-se ainda dez mil edições diferentes” [Blanqui, 2018, p. 88].

Calunga da Calunga Grande diz que existe a vida entidade [existência imanente] e a vida percebida [o plano de imanência que poderá ser construído ou a alma, como advogam Zambarado e Souriau]. Para ele, a vida percebida é puro cinema. Um grande filme. Na vida percebida, a lembrança de si mesmo mostra que se está dentro desse grande filme. A magia é recordar que se pode sair do filme a qualquer tempo, que a sala pode ser trocada e o filme, idem. Recordar que o ator pode atuar em cinco salas diferentes.

Linhas. Maneiras. Fabulação. Bruxaria.

 

“A existência imanente sempre encontra modos de se manifestar na vida percebida. É um evento que independe de qual agência será estabelecida: arte, literatura, ciência, filosofia, magia, mística, alegria, cura, matemática ou física. A imanência vai devirar e derivar xamanismos, modos de existência, pluralidades, diferenças, liberdades. No caso de nosso trabalho, tratamos de agências sobre agências, maneiras sobre maneiras, como você diz: Zambarado, Ow, Varredor de Porta de Escola, Gavião Encantado, Calunga da Calunga Grande, Rinoceronte do Mar, Guardador de Cristais, Recordador de Devires, Ontologia Lisérgica em Devir, Bemtevi, Monja Lib, Flor do Deserto, Borum Krenak, Rã Azul, Sete Folhas, Bom Floral e outras mumunhas mais” [Exu Calunga da Calunga Grande, 2019, s/p].

 

Mas e a vida, o que é? Resistir? Pergunta Deleuze. Tráfego intenso? Pergunta Zambarado. Labilidade de trafegar por entre? Pergunta Calunga da Calunga Grande. Aparecer, desaparecer e reaparecer? Pergunta Souriau. “À medida em que alguém se torna, o que ele se torna muda tanto quanto ele próprio. Há um devir-filósofo que passa, antes, por aquilo que a própria história da filosofia não consegue classificar” [Deleuze, 1998, p. 3].

Feitiço. Modos. Bruxaria.

Tantas linhas, maneiras, fabulações, modos e feitiços quanto são os olhos do mundo multiplicados por um trilhão.

É um shopping center.

 

Letramentos poéticos para um Bemtevi

As experiências de minhas existências compartilhadas [13] com o Exu Zambarado ainda pulsam. Foram muitas. Zambarado nomeava essas experiências de “Letramentos poéticos para um Bemtevi” cujo serviço era o de “botar o couro à prova”. É impossível não se lembrar, aqui, de Antonin Artaud como um radicalizador do pensamento de Deleuze. Advogando fluxos anarquistas assistemáticos para produzir não um eu, mas, sim, uma pessoa – um processo que exponha o fato de que quem falou, escreveu, sentiu ou pensou já não está mais à disposição nem de si mesmo, porque pessoa não é, pessoa apenas está [14] –, Artaud construiu o que chamava de “anarquia perigosa” e fez da literatura algo central na sua filosofia. Exu, especialmente Zambarado e Calunga da Calunga Grande, também elege a escrita literária como algo que flutua por entre rajadas de vento e atualiza a pergunta de Artaud: “quem poderá encontrar coerência ou fios lógicos diante de uma vida tão quente, cortante e assustadoramente mutável?”. Talvez, Ailton Krenak também esteja se referindo a isso no conceito taru andé de seu povo Krenak que Monja Lib [15] agencia, acrescentando o “radicalmente vivo”: um corpo taru andé radicalmente vivo que esboça, canta e dança para suspender o céu.

Sorte a nossa Deleuze ter amado tanto Artaud a ponto de sugerir diferença não como afastamento, mas como possibilidade de alcançar mundos a partir dela. Sorte a nossa Deleuze fazer da diferença seu supra método. Deleuze em Artaud é puro desassossego que indica: tornem-se criadores, criem modos de vida: incorporem a vida, sigam a si mesmos e, seguindo a si mesmos, tornem-se companheiros. Exu indica: experimente, Bemtevi, crie modos de vida, siga a si mesma e, seguindo a si mesma, crie existências compartilhadas, e, em existência compartilhada, escreva.

Zambarado sempre me fazia escrever. A cada experiência, ele me presenteava com algumas palavras que eu nunca tinha ouvido falar. Isso instaurava no meu corpo outros modos de estar no mundo e gerava muitas escritas que ele chamava de escrita em “modo Ganesha” [16]. Algumas vezes, eu escrevia a partir dessas palavras desconhecidas como é o caso do termo “terrígneo” que dá título a um dos textos gerados pelo tratamento.

 

Primeira experiência:

Sonhos lúcidos de uma pássara dentro da epilepsia de uma cavala

Eu conheci o Exu Zambarado em 1994, aos 30 anos. No terceiro encontro, decidi contar a ele um incômodo físico que me acompanhava desde a infância. Ao dormir, quase sempre nas primeiras horas de sono, meu corpo sofria uma espécie de descarga elétrica, com tremores que variavam de intensidade. A descarga elétrica era seguida dos tremores que eram seguidos de uma rigidez que ia da cabeça aos pés e terminavam com uma sensação de morte iminente. Depois, já acordada, eu me lembrava de tudo e sentia um medo súbito de morrer. Convivi com essa realidade durante anos. Zambarado ouviu atentamente meu relato e, ao final, disse:

– Bemtevi, como você já sabe, eu trato apenas de desenganados pelos médicos, mas, vou arriscar um diagnóstico. Pela minha experiência de 80 anos, como catimbozeiro no nordeste do Brasil, isso que você tem é uma espécie de epilepsia de grau leve. Eu proponho um tratamento através do sonho, já que o sonho é um treinamento para inventar modos de estar no mundo. A técnica que vamos utilizar, no seu caso, será a de exercitar a possibilidade de acordar dentro sonho, produzindo outro sonho de olhos abertos. Nós vamos acordar e sonhar dentro do sonho que também é um sonho dentro de outro sonho, a vida. Vamos utilizar uma metodologia chamada teoria das placas tectônicas.

– E como vai ser isso, Zambarado?

– Primeiro, é necessário que eu te diga que esse tratamento segue a cartilha da própria vida: não tem garantias. Segundo, é demorado. Terceiro, não deve ser padronizado e/ou utilizado por outras pessoas sob nenhuma hipótese. Examine minha proposta e na próxima semana me diga o que você decidiu.

Na semana em curso, tive um evento-relâmpago que começou já na fase estática, sem descarga elétrica e sem tremores, na qual eu não conseguia mexer nenhum músculo, e durou pouquíssimo tempo. Na quinta-feira, então, pedi a palavra e contei o ocorrido. Zambarado sugeriu que eu marcasse um encontro particular para continuar a conversa. Assim, na terça-feira, iniciamos um tratamento que durou aproximadamente cinco anos.

– Bem-vinda, Bemtevi. Vamos ao plano: a partir de hoje, quando o evento acontecer, você vai observar a respiração, os batimentos cardíacos, o dedo mindinho do pé direito, os pensamentos e as sensações que acompanham a observação focada nesse ponto do corpo. Na manhã seguinte, escreva tudo num caderno específico para este trabalho. Vamos trabalhar a movimentação entre memória, sonho, corpo e terra. Você já ouviu falar na teoria das placas tectônicas?

– Não.

– Ela vem da observação de fenômenos geológicos intitulados deriva continental e expansão dos fundos oceânicos. Note que as palavras “deriva” e “fundo” chamam a atenção nesses dois termos. A partir da deriva e do fundo do nosso fenômeno, vamos achar um três. Movimentando o fundo elétrico das memórias da sua epilepsia, criaremos outras derivas. Vamos colidir, afastar e transcorrer, abordando o fenômeno como um sonho: observação onírica e escrita da observação onírica. Há o sonho que é o fundo, há o acordar dentro dele para colidir e afastar, há a escrita sobre o sonho, a transcorrência que poderá derivar uma possível regeneração. Sonho é um fenômeno elétrico do cosmo, placa tectônica é um fenômeno elétrico da terra, epilepsia é fenômeno elétrico do corpo. Esse tratamento é um estudo transdisciplinar, Bemtevi. A escrita é nossa testemunha transcorrente. Há, também, uma pesquisa de campo que você deverá fazer, delicadamente, com sua mãe.

Partindo do pressuposto de que transcorrência seja entretempo, Zambarado já estava praticando “filosofia da diferença” e “metodologia das sutilezas” [17]. As conversas com minha mãe revelaram que ela havia passado mal, aproximadamente no sétimo mês de gravidez, e recebeu uma injeção diretamente na barriga. O Exu confeccionou uma tese muito interessante, a partir dessa informação, de que o conteúdo da injeção poderia ter atravessado o meu Sistema Nervoso Central em formação e alterado o desenho da minha “fiação elétrica” [expressão dele], gerando a tal descarga intermitente. O fato é que, depois desse tratamento [18], nunca mais tive nenhuma ocorrência do evento.

E lá se foram 30 anos.

 

A escrita:

Os terrígneos

Uma forte gripe tinha lhe afetado os ouvidos e sons estranhos vinham do chão debaixo dos seus pés. Graves, densos e quentes. Estava na boca da noite, correndo o terceiro dos seus sete quilômetros diários, no cenário mais bonito do mundo: Finisterra, costa da morte, Galícia, Espanha [o fim não oficial do Caminho de Santiago e do mundo], lugar de velhas bruxas e agitadas companhias invisíveis. Escutava as pedras, sua trilha sonora predileta, quando, sem mais nem menos, foi tragada por uma imensa Labareda. Seu corpo fremitou, mas, espantosamente calma, ela se entregou sem reservas. Quantas vezes tinha arriscado o próprio corpo, desde a sua longa, solitária e, algumas vezes, dolorosa jornada em busca da visão? O chão literalmente se abriu e ela entrou dentro da terra.

Abriu os olhos num túnel de espelhos feitos de finas placentas reluzentes cujas entranhas produziam um efeito que multiplicava seu rosto de meio século em mil. A Labareda zunia numa velocidade de ficção e tinha acoplada em si uma câmera cinematográfica feita de pequenos tambores de luz com sensores intercambiáveis de 35mm full frame. As sobreposições audiovisuais, produzidas durante a movimentação, eletrificavam as pontas dos seus muitíssimos cabelos brancos, de modo que o retrato final era uma espécie de rastro do minimalismo de Philip Glass sobreposto às imagens em time-lapse de koyaanisqatsi [19], em verso e reverso.

Passado o túnel especular, a Labareda atravessou o interior de uma fornalha, lambeu milhares de brasas vivas e parou sua carruagem bem no centro interno da terra, anunciando o ponto final daquela viagem lisérgica, deixando fumaça para trás. A consistência gelatinosa gotejava cores exuberantes de um vasto campo de papoulas do Marrocos. A Labareda informou que mister Deleuze, o comandante dos Terrígneos, estava na sala ao lado para um primeiro contato.

A mulher entrou e se deparou com milhares de cópias de si mesma [em seus mais inimagináveis detalhes], sentadas numa mesa ovalada tão grande quanto tudo por ali. Todos os seus eus também possuíam fartos cabelos brancos eletrificados nas pontas, onde um arco-íris caía em cachoeira de águas virtuais. O ambiente era uma réplica perfeita da sala de comando de uma nave espacial. Numa das paredes, uma estupenda aquarela de um buraco negro enchia os olhos. Só faltava Yoda para completar o delírio, pensou a mulher, sorrindo ironicamente. Mas, o que apareceu foi um gigante de numerosos cabelos compridos, negríssimos, também eletrificados nas pontas, onde uma argola brilhante de ouro escuro estava pendurada, criando prismas vermelhos ao menor movimento do seu corpo descomunal. [Um Exu?].

As cópias também sorriam com a mesma ironia que ela. Apenas uma tinha o rosto impassível e os olhos fixos no seu terceiro olho. Um sutil halo roxo saía do terceiro olho da cópia e penetrava o seu terceiro olho, instaurando um campo de êxtase que a levou direto para as repetições hipnóticas da técnica tintinnabuli [20], de Arvo Pärt. De repente, ela estava em Paide, capital de Järva, na Estônia, ouvindo “Espelho no espelho”, num dos íntimos e secretos concertos rurais que Pärt oferecia apenas a convidados.

– Arvo é um dos nossos, disse o comandante. Ele faz parte do operariado que ensina a morrer porque sua música é cinema da hora da morte: Espelho Prismático com Sensores Fotoelétricos Reflexivos [EPSFR]. Para quem quiser ensaiar esse plot twist, o artefato EPSFR pode ser encontrado, atualmente, em qualquer mercado livre. Ah! Antes que eu me esqueça de dar a explicação, todos seus milhares de eus foram libertados e convocados para estarem aqui porque você recordou que é livre. Pode ir, vir, não ir, não vir. Você mesma irá matá-los.

O ser não tinha um cajado na mão como nos filmes. Suas mãos eram duas telas computadorizadas sofisticadíssimas e respondiam ao comando de sua voz que alternava tessituras. As telas faiscavam cores diferentes para diferentes inflexões vocais utilizadas. Desse modo, os sons emitidos pelo comandante não eram apenas ouvidos: eram vistos em perspectivas Kandinsky. A voz deu um comando imagético em progressão geométrica e, numa das paredes, os filmes da vida da mulher explodiram em milhões de frames superpostos, narrados pelo secular Machado de Assis, que lia seu trecho preferido de Memórias Póstumas de Brás Cubas:

“A resposta foi compelir-me a olhar para baixo para ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: – “bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até último, que me dará a decifração da eternidade”. E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranquilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia sua porção de sombra e luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam a verdura de uma primavera, e amarelecia depois, para renovar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, faziam-se a história e a civilização, e o homem nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte, que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia a esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar enfarado e distraído viu enfim chegar o século presente, e, atrás dele, os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passará os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, – o último! Mas então já a rapidez da marcha era tal que escapava a toda compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século” [Assis, 1994, p. 12].

Todas as cópias tremiam e espumavam pela boca menos a que continuava olhando a mulher fixamente no terceiro olho. Um raio âmbar fazia um bi-trajeto entre o seu terceiro olho e o terceiro olho da mulher. A cópia impassível falou pela primeira vez:

– Encapsule o que pode servir como DNA para outro filme, por favor!

– Filme? Que filme?

– O filme de sua vida! Mas, não me pergunte o título! Ainda não tem título! Terá muitos títulos! Quando você assinar o primeiro contrato, aos três anos, começará o processo infinito de titulação. O que você chama de vida é puro cinema em estado bruto, antes de virar simulacro e holograma! Pare de pensar e concentre-se em morrer!

– Morrer?!

– Sim! Morrer! Você está morrendo! Seja rápida, pois, em exatos 40 segundos, a morte fará um brecha. Você poderá se encantar [e voltar como quiser, onde quiser e se quiser], ser totalmente reintegrada ao buraco negro ou, simplesmente, virar comida de lua. Você andou sobre brasas, portanto, há escolhas; você trocou de pele pelo menos a cada nove luas, o que, em 60 anos, dá algo aproximado a 80 vezes, pelo que nós acompanhamos daqui, portanto, há escolhas; você parou o credo no exato momento em que a palavra que saía da sua boca não correspondia ao fluído que saía do seu coração, portanto, há escolhas. Sim, antes que você faça outra cara de mochileira das galáxias, que não está entendendo nada, te digo: palavra tem poder. E, por último, mas não menos importante: você decidiu, ainda muito pequena [provavelmente, em contrato assinado aos três anos – e renovado aos sete], produzir alegria. Portanto, de fato, você pode escolher maneiras de existir que mais lhe aprouver.

O tal mister Deleuze, que havia falado apenas uma única vez, disse em indisfarçável exasperação:

-Não se fazem mais bruxas como antes! Essa daí não sabe da missa nem a metade! Que a grande Deusa de Mil Platôs nos acuda!

Ao ouvir o nome de sua mestra, a mulher emitiu um grito difônico de cinco oitavas. Um fluido violeta-buruquê penetrou sua moleira e sua boca cuspiu uma capsula âmbar.

– Eu me lembrei da senha, disse quase engasgando: a alegria central do vento da passagem viva de um agora que está sempre passando, como o vento ventando a nuca de Albert Camus, aos sete anos, no telhado da casa de sua mãe, na Argélia, quando ele queria ficar sozinho. Vou encapsular! Sim. Se houvesse algo depois da morte – e se podia escolher-, ela queria ser o vento para poder passar pela nuca de alguém. Sim. Ela queria voltar em modo vento.

Emitiu outro um grito difônico. Dessa vez, de oito oitavas. Uma testemunha, instaurada nas longas horas de observação das linhas da palma de sua mão, aos 12 anos, continuava repetindo sem parar: “Isso não é dor”, “Isso não é prazer”, “Eu não sei o que é isso”. Bilhares de células explodiram em bilhões de memórias cujos trilhares de bilhares de estilhaços foram encaminhados para a espuma tremulante das bocas das cópias…

A Deusa de Mil Platôs recolheu a espuma, deletou os eus-cópias, transformou tudo em arquivo consultável e inseriu dentro do grande mainframe ígneo no oco da terra.

– Ainda tenho três segundos antes de saltar, pensou.

O comandante e a cópia impassível se entreolharam e suspiraram: “ufa! afinal, ela sabe que pode saltar! Pelo menos isso. Viva a Deusa de Mil Platôs”, exclamaram num silêncio irônico.

E a mulher explodiu em bilhares de estilhaços supersônicos que se infiltraram terra adentro e voaram espaço afora!

Parada diante do mar exuberante de Finisterra, a mulher respirou, suando, depois de longos sete quilômetros de corrida dura. Sorriu e pensou: sonho de olho aberto novamente… Diminuiu o passo e caminhou pela praia, enchendo os pulmões de uma alegria que só as espumas de Yemanjá sabiam exalar. Em casa, entrou direto no banho. Quando se olhou no espelho, notou um ponto roxo pulsando intermitente no meio da testa. Sorriu e movimentou o rosto para um lado e para outro. O ponto reluziu, informando que a samsara [21] lhe cuspiria para dentro de outro filme, quando o ponteiro alcançasse o número oito. Sorriu novamente. O ponto de luz sorriu de volta e acertou seu cronômetro com a hora da próxima galáxia.

 

Segunda experiência:

Tum tum tum

Meu primeiro álbum musical “Tum Tum Tum” [22] me foi encomendado por Zambarado e seu povo, os Encantados. Eu ainda estava tateando caminhos musicais, quando recebi esse inusitado pedido, feito, formalmente, durante um encontro particular. “Tum Tum Tum” é um rito de passagem, uma iniciação. Eu, uma pássara, fazendo coisas de folha, de filha da folha, como um disco todo dedicado ao Catimbó. Foram alguns anos entre o pedido, a pesquisa, a execução e o lançamento. Zambarado já não estava mais entre nós, quando, finalmente, “Tum Tum Tum” foi indicado, em 2008, ao Prêmio da Música Brasileira, em quatro categorias, concorrendo com Chico Buarque de Hollanda, Alcione, Maria Bethânia, Marisa Monte, Elba Ramalho, Alceu Valença e Antônio Nóbrega.

Alguém presenteou Egberto Gismonti com o disco e ele presenteou a pajé da nação indígena Caruana, da Ilha do Marajó, no Pará, Zeneida Lima. Depois de ouvir, ela telefonou a ele, dizendo que aquilo não era um CD e, sim, um remédio tecnológico que parecia ter sido encomendado por algum ser de outro mundo. Bingo! As histórias de “Tum Tum Tum”  dariam um doutorado. São muitas. O que observo, hoje, é que Zambarado agia, de fato, como orientador de uma tese que estava sendo gerada fora da Universidade. Vou partilhar uma história que mostra Exu como um método de se estar na terra, o conceito central de minha pesquisa.

“Tum Tum Tum” tem 14 canções. Entre elas, “Rainha”, um belíssimo Catimbó de Jurema – a joia rara do disco. Zambarado me disse um nome e me pediu para comprar uma passagem para Rio Branco, Acre. O nome era o do pajé dos Kulinas, Etégûyrá. Segundo Zambarado, esse era um povo muito musical, além de fundamentalmente xamânico, e Etégûyrá me acolheria com as disciplinas necessárias para que eu pudesse materializar o pedido-encante. Etégûyrá, do Tupi-Guarani, me disse o Exu, é algo próximo a “pássaro verdadeiro”, em português brasileiro. Uma pássara filha da folha seria guiada por um pássaro verdadeiro de uma nação encantada quase desconhecida. Lá se foi Bemtevi, em segredo. A exigência de Zambarado era: “ninguém deve saber nem da empreitada e nem do patrocinador da empreitada, Bemtevi”. Nunca contei nem mesmo para o Luz, meu mais longevo e íntimo companheiro de caminhada.

Cheguei em Rio Branco e não encontrei o pajé. Ele não estava. Esperei uma semana para conseguir falar com ele. Ele tinha sido chamado pela floresta para acudir uns parentes. Já instruída por Zambarado, aguardei com uma paciência que eu ainda não tinha, mas que já fazia parte do pacote-encante do devir-tumtumtum. Todos os dias eu ia até a casa dele para saber notícias de sua chegada. Quando Etégûyrá chegou, eu fiquei tão alegre que entreguei para a terra toda a ansiedade dos sete dias de espera. Ele me recebeu em silêncio e me pediu para deitar no chão da sala, de olhos fechados, na posição da morte. [A mesma que Zambarado indicou para ser a guia da oficina “A lembrança de si mesmo” que ele já havia me dado de presente]. O chão da sua casa era todo de terra batida. Deitei de barriga para cima e aguardei o que me pareceu ser uma eternidade. De vez em quando, abria os olhos e via Etégûyrá sentado no batente da porta que dava para o imenso quintal. Ele também estava de olhos fechados. Eu cheguei oito horas da manhã e fiquei deitada, ali naquele chão frio, até meio-dia. Ao meio-dia, em ponto, ele falou pela segunda vez. Até então, só tinha dado as instruções de como eu deveria me deitar.

– Pode cantar a rainha em voz baixa, por favor.

Cantei.

– Agora, pode sussurrar, sem som.

Sussurrei.

– Agora pode se levantar, devagar, e ir embora, em silêncio. Eu te aguardo, aqui, amanhã, às cinco horas da manhã.

No outro dia, quando cheguei, havia uma mulher na casa. Ela nunca me disse seu nome. A mulher me levou para o quintal, debaixo de uma castanheira.

– Eté me disse para trabalhar com você, hoje. Amanhã, ele retorna. Você pode se sentar aqui ao meu lado e apenas sussurrar no meu ouvido a rainha, sem som e sem melodia. Repita três vezes.

Eu me sentei e sussurrei três vezes seguidas.

– Agora você pode ir embora, em silêncio. Amanhã venha com roupa de banho, por favor.

No outro dia, o pajé já me recebeu sorrindo e dizendo para chamá-lo apenas de Eté. Sorri de volta e entrei. Passamos pela sala, pela cozinha, pelo quintal e pegamos uma pequena trilha. Ele puxou a caminhada e eu o acompanhava, em fila indiana. A cena me lembrou a viagem xamânica de mestre bom floral pelos caminhos encantados de Okê Ajucá. A primeira parte da trilha era quase mata fechada, pouco sol e muita árvore alta. A segunda parte, já mais aberta, dava para ver o sol e escutar os passarinhos. Chegamos numa cachoeira com uma enorme queda d’água. Paramos e ele me ofereceu um chá de alecrim com inhame. Aceitei feliz, afinal, a caminhada tinha sido dura.

– Como você não sabe nadar, fique apenas na beirada e enfie a cara na água e cante como puder toda a rainha. Com som e melodia, se conseguir, ele disse rápido e sorrindo.

Eu observei que o sorriso era a quintessência daquele dia e sorri de volta. Por incrível que pareça, eu não tinha vontade de falar nada. Enfiei a cara na água e cantei como pude.

Ao final, ele me ofereceu outro chá de alecrim com inhame e me convidou para voltar, em silêncio. Dessa vez eu ia à frente e ele, atrás.

Chegando no seu quintal, ele parou e se sentou debaixo da castanheira.

– Você pode vir se sentar aqui em frente a mim e cantar, olhando para os meus olhos, toda a rainha, de uma só vez.

Cantei.

– Agora, você pode ir. Amanhã, te aguardo aqui às 15h. Venha com calça comprida, blusa de manga, boné e bota, por favor. Vamos entrar um pouco mais na mata.

Quando cheguei no outro dia, a porta estava aberta e Eté me esperava na boca da trilha. Andamos o que me pareceu algo próximo de duas horas. Chegamos numa clareira e preparamos uma fogueira. Imaginei, então, que iríamos passar a noite ali. E assim foi. Na boca da noite, na hora grande das 18h, cantei a rainha a plenos pulmões. Comemos inhame e fomos dormir. No chão da floresta mesmo. Ali, entre fluxos inflorestantes e assustadores. A floresta é imponente. Emanuele Coccia está certíssimo. No dia seguinte, às seis da manhã em ponto, eu já estava cantando a rainha, novamente a plenos pulmões. Dessa vez, Eté me ofereceu um chá de sálvia e mais inhame.

Na volta, passamos pela cachoeira e paramos para um banho completo. Já na sua casa, Eté me pediu para acender o fogão a lenha e cantar a rainha em voz baixa.

– Cante para o fogo em voz baixa.

Cantei.

– Aqui, encerramos nosso trabalho. Você já tem a licença para gravar a rainha e fazer o disco com os outros Catimbós. A partir de agora, você é a guardiã dessas músicas. Mas, você não poderá cantar em público, por sete anos, o Catimbó de abertura. Depois, você reconhecerá a hora de cantá-lo. Faça uma boa viagem de volta e dê lembranças minhas ao Exu Encantado.

Ele se despediu  me entregou uma caixinha.

– Antes que você me pergunte, nessa caixinha tem um presente para você entregar para o Exu Encantado. Diga a ele que o trabalho que está sendo desenvolvido com essa turma atual está perto de acabar. Ele sabe o que fazer.

Eté virou as costas e sumiu pelo quintal adentro…

É indescritível o que essa experiência causou na minha vida. Eu não soube o que tinha dentro da caixinha. Zambarado não me disse, mas, de vez em quando, me agradecia entusiasmado por eu ter aceitado o pedido-encante. Um dia, sem mais nem menos, ele me disse que dentro da caixinha tinha um bilhete que dizia: “se puder, antes de ir, enrole Bemtevi numa folha”.

Foi assim, enrolada numa folha, que coloquei meu corpo e minha voz a serviço dos encantados!

 

A escrita

Um contraconto deleuzeano

Límbia está concentrada: surfa e desliza seu corpo, entrando no quadro oceânico pela esquerda. No centro, em sentido horário, rodopia seu manto âmbar-roxo por alguns minutos e, como se estivesse de patins sobre a neve, sai do enquadramento pela direita. Da praia, pessoas boquiabertas acompanham a cena, quando a pássara, novamente visível, entra em redemoinho de sentido anti-horário e vai mergulhando em câmera lenta. Os pés, as pernas, o sexo, os braços, o umbigo, o timo, a garganta, o olho da testa, os cabelos. Por fim, o manto âmbar-roxo boia solitário na superfície.

Tudo demora não mais do que cinco minutos.

Já encoberta, e não mais visível às pessoas boquiabertas, Límbia desmonta suas peças e vai deixando para trás cabelos, olho da testa, garganta, timo, umbigo, braços, sexo, pernas e pés.

Límbia é mulher?

Ninguém sabe…

Muito menos ela!

Descendo, mar adentro, vai diminuindo de tamanho até chegar à dimensão de um ínfimo não-sei-quê. No fundo do fundo do mar, Límbia trina e se entrega. Na entrega, circula a sua própria melodia e vai parar numa brecha. Porém, quando tenta passar pelo boqueirão da brecha, é barrada por um Exu.

– Como, assim, não posso entrar, pergunta, trinando alto.

O Exu revira os olhos e friíssimo pede:

– A senha, por favor.

– Senha? Que senha? Devolve, trinando com mais estridência ainda, causando visível exasperação no exu.

– Olha, dona não-sei-quê, seus lindos trinados só valem aqui com a senha. Você praticou filosofia, portanto, tem que dizer uma senha específica para entrar.

– Ai, meu santo, Spinoza e Deleuze não me disseram nada a respeito disso. E agora?

– Agora, sim, pode entrar!

– Como assim, agora, sim, pode entrar? Eu não sei a senha.

– Ué, a senhora acabou de pronunciá-la, agora.

– Agora?

– Sim, agora!

– Explique-se, Exu, eu não disse nenhuma senha ainda. E o que Deleuze está fazendo do lado de fora? E cadê Spinoza?

– Não há explicações. Só entrega. A senhora acaba de se entregar, agora. Deleuze não se entregou. Na última ínfima horinha, faltou velocidade, segundo meu parceiro, o Exu Calunga da Calunga Grande. Spinoza acabou de passar…

– Agora, pronto, o senhor enlouqueceu de vez! Spinoza é muito antigo, Exu…

– Olha, dona não-sei-quê, aqui não há tempo. Quem passa está sempre passando. Portanto, Spinoza acabou de passar. Você não vê? Agora, chega de filosofia… Não há conceitos, não há sujeitos a defender e, muito menos, tempo, objeto, espaço e essas coisas. Não há nenhum Spinoza, nenhum Deleuze, nenhum ninguém. Agora, entre logo!

Límbia passou zunindo…

Do outro lado, Exu sugeriu:

– Agora, é só seguir os fluxos.

– Fluxos? Que fluxos? Não os vejo!

Do lado de fora, Deleuze gargalhou:

– Kkkkkkk! Eles não existem! É preciso produzi-los! Eu mesmo me esqueci disso. Por isso, eles disseram que faltou velocidade… Spinoza me deu um cocão na cabeça!

A pássara achou que estava sonhando e tomou um baita susto, quando Deleuze, de repente, apareceu ao seu lado.

– Dedê, como você conseguiu? Você estava do lado de fora!

– Eu agenciei exu. Não há lado de fora. É tudo mar…

 

Artes da existência, artes da alma, artes do corpo, artes da voz

Eu gosto de pensar corpo junto com o japonês Kuniichi Uno. O corpo de Uno, assim como o de Zambarado, é microativista: uma estética fabular, uma plumática sem órgãos. Que frase pujante essa do dançarino Hijikata Tatsumi, criador do butô, registrada no livro “Hijikata Tatsumi: pensar um corpo esgotado”, de Uno: “um outro corpo está saindo do meu bruscamente quando você rabisca”. Mas, atenção, não é uma metáfora, como o próprio Kuniichi adverte. Outros corpos dentro de um corpo podem ganhar mais realidade com a escrita. No tratamento proposto por Zambarado isso vai ficando muito claro. Então, é necessário dizer, também, que gosto de pensar a escrita junto com Didi-Huberman, quando ele pensa junto com Clarice Lispector: uma escrita de águas vivas, uma escrita de e-moções, produzindo emociogramas: sintaxes que não permitem que a cabeça se descole do corpo. Uma escrita em “modo Ganesha”: pensamento e mão colados na mesma velocidade. Uma escrita artaudiana de insurreição: o corpo escreve no instante: sempre ensaiando e esboçando um improviso que parece rabiscar: agora, agora, agora, agora…

Esse experimento [o tratamento] também me lembrou o pensamento deleuzeano a respeito do que seja um criador. O criador de Deleuze se faz de um conjunto de impossibilidades. O criador do “catimbó zen” tira arte, clínica, educação, alegria e cura [linguagem e regeneração] de dentro de impossíveis dedos mindinhos que respiram na atenção do ar que entra e sai. Zambarado propunha navegar sobreposições elétricas [sonho e epilepsia], escrevendo outras faixas de realidade para um corpo que, nele, é um sonhador por excelência.

Zambarado me disse ao encerrar o tratamento:

 

-“Não é que você tenha sonhos, Bemtevi. Você é sonho. Você é sonho dentro de Gaia que sonha dentro do sonho cósmico. A terra gira a mais de 1.600km/h, na região do Equador, e a mais de 100.000km/h, em volta do Sol, num universo que se expande a mais de 70km/s. Só esses números já indicam um sonho de olho aberto de altíssimo grau lisérgico. Então, sim, a terra sonha e você é um sonho dentro do sonho dela”. (Exu Zambarado, 1999, s/p).

 

O sonho de Gaia parece nos dizer: por essa porta que se abriu, entre! Não julgue e não anseie por explicações. Apenas vá! Vá olhando aquilo que te olha. Vá movendo a e-moção que brota. Vá germinando a palavra que o dedo mindinho do pé direito está sonhando. Krenak diz em “A vida não é útil” que os contratos que firmamos nos sonhos continuam valendo na vida real. Para os Krenak, nos sonhos, a gente se dispõe a pensar mundos para além deste que conhecemos ou carimbamos como realidade e, assim, sonhamos outros mundos possíveis para os quais os humanos precisarão se reconfigurar com urgência: vamos ter que produzir afetos e, até mesmo, sonhar outros sonhos que possam fabricar corpos taru andé radicalmente vivos e outros devires.

Zambarado nada me disse sobre os sonhos lúcidos, a tese advogada por Frederik Willems Van Eeden, na qual é possível modular a eletricidade do cérebro para se perceber sonhando, podendo observar ou interferir no filme produzido pelo sonho. Ele simplesmente dizia que o tratamento consistia em “acordar dentro do sonho”. Isso se aproxima mais do pensamento dos Krenak e do personagem Don Juan, de Carlos Castañeda, que cumpria uma longa agenda de observações para treinar a capacidade de acordar dentro do sonho, como, por exemplo, prestar atenção aos materiais orgânicos, às cores, às sensações e, especialmente, se o corpo gozava de alguma liberdade de sair, a qualquer momento, de dentro daquele sonho. Está próximo, também, da lisérgica Rã Azul, a personagem conceitual do Exu Calunga da Calunga Grande que é uma diplomata em sonhos lúcidos com seu azul vibrante. A rã diz: a eletricidade da epilepsia escreveu no corpo e o corpo está escrevendo na tese, nos artigos e nos ensaios.

 

Experientiae signature

Foram muitas as experiências que vivi com o Exu Zambarado. Então, vamos falar de experiência como assinatura da vida no corpo e, por conseguinte, como aquilo que pode prestar o serviço de colar a cabeça no corpo e o corpo no mundo, o sonho guattariano que pode funcionar como indício de práticas indispensáveis na produção de outros mundos possíveis em todos os pensadores da imanência, a partir de Spinoza.

Agamben advoga que a experiência foi se aproximando da higiene técnica de um evento que ocorre a um corpo consumidor, de fora para dentro, inoculado de modo comercial. O corpo consumidor é um eu interceptado – aquilo que está em aliança com o maquinário das múltiplas guerras dos estados majoritários de poder: cognitiva, narrativa, híbrida, subjetiva. É o sujeito apartado da Maravilha, enquanto o corpo maravilhante e maravilhado é algo capaz de se maravilhar diante de sua simples existência no mundo, como diz Achille Mbembe. O corpo consumidor é um avatar positivista e mercadológico. O corpo em Zambarado, por sua vez, não abre mão do experimento como algo intrínseco à carga de sabedoria que a própria experiência engendra: preparação, refazimento e antecipação dos encontros heterogêneos inesperados entre a vida, o corpo e o mundo: a cola. A experiência é a cola, o elo.

Nesse sentido, Zambarado advoga “ter uma experiência” e não “fazer uma experiência”. “Ter uma experiência” acontece fora dos movimentos utilitários do capitalismo. A proposta crucial de Zambarado de um corpo dentro de um saco amarrado e deixado num ponto da floresta para passar uma noite exposto a atravessamentos selvagens poderia ser incluída como um evento de grande exemplaridade cosmológica do que seja “ter uma experiência”.

O corpo dentro do saco com as bordas amarradas solto no ermo da floresta para vencer essa única madrugada insólita e desconhecida se aproxima daquilo que Souriau advoga: a vida a partir da “infância das coisas” [23]. A formulação de Souriau encosta na regra de ouro de Zambarado: somente a criança é capaz de “ter uma experiência”, pois ela entra na brincadeira com aquilo que ela tem de mais caro: o próprio corpo. Aqui, é importante dizer que Zambarado imputava ao capitalismo o roubo dos ritos iniciáticos da experiência. Segundo ele, à medida em que o corpo vai se tornando adulto, vai negociando com o “sistema-mundo” [24] (a matrix) itens fundamentais da qualidade de seu estar na terra, vai “envergando a coluna”, como ele dizia. Quando se vê, lá se vão 60 anos, como no poema de Mário Quintana, poeta que ele amava.

 

Ainda é possível alguma brincadeira entre o corpo e o mundo?

Para Exu, se falamos de experiência, falamos, também, de Erê [25]: seu corpo, sua voz, sua força e sua banda. Falamos de Erê, a partir do território encantado de ressonâncias que acontecem entre ele e Exu. Se Exu é movimento, Erê é a movimentação – um tubo por onde Exu (o movimento) se movimenta. Experiência, então, é a vida a partir dessa “infância das coisas” de que fala Souriau, desativando fronteiras que nos afastam do grande não sei da metamorfose, o paradigma da terra. Outras coisas animam o pensamento na experiência, no modo Erê-Exu, no modo infância das coisas: acontecimentos por entre, intervalos, brechas.

Coccia fala da experiência como um continnum de intervalos montados na crista de mundos que nascem, nascem, nascem e produzem um raro amor à matéria do próprio mundo [a cabeça colada no corpo e corpo colado no mundo, de Guattari]. Ovídio diz de mundos coexistentes gestados pela repetição de diferenças que acontecem ao longo do humor salitroso e circunfluente de Gaia que puxa os elementos vastos, rodeando, possuindo, lambendo e apertando, para extrair, do seu coração, a vida de suas águas, de seus mares.  Lapoujade, relendo Souriau, diz daquilo que aparece, desaparece e reaparece. Donna Haraway diz de parentescos aberrantes: a teias de uma grande aranha que sinaliza as éticas e os perigos da coabitação. Zambarado fala da experiência como nuvem: insinuante, passageira e desmanchável. Calunga da Calunga Grande fala de experiência como o mar que, além de revelar o nosso tamanho, é fundo, aberto e indomável. Deleuze&Guattari falam de experiência como desterritorialização do corpo consumidor reterritorializado em devires capazes de descomprimir e escapar pelas brechas de uma terra agenciada e vilipendiada pela máquina de guerra do hipercapital. Pequenos casulos que desenrolam o que ainda não sabemos. Coisas e corpos e modos que aparecem, desaparecem e reaparecem. Pequenas escritas que clinicam a vida que passa, passa e passa.

 

“O que nos clinica recebe a nossa atenção, Bemtevi. Aquilo que recebe a nossa atenção nos educa e nos regenera. Educação e cura são indissociáveis porque educação e clínica são indissociáveis. Arte, clínica, educação, escrita e cura é tudo regeneração. Você é amiga das palavras. Então, vamos levar essa amizade e a atenção que essa amizade desperta no seu corpo para dentro do sonho epilético. A escrita não vai operar no campo de codificação de uma essência a ser desvendada, mas no redemoinho que cerca o acontecimento, criando outras formas de ver: a cura não é uma essência a ser desvendada, mas contraluzes daquilo que estamos chamando de real – a epilepsia. Não há filosofia, nem oficina, nem arte capaz de apreender (ou compreender) isso que chamamos de real porque ele não existe. Tudo é abertura e risco. Arriscar pela linguagem, pela palavra, é, desde tempos remotíssimos, enviar o sujeito/objeto [inseparáveis] para fora da essência. Enviá-los para o redemoinho, para o erro, para a consciência sem sujeito. Produza uma escrita de precipício: aquela que mostra como é um corpo em Gaia: um filme dentro de um sonho, produzindo outros filmes. Agência sobre agência. Quanto mais modos, mais inteira pode se tornar a compleição dessa coisa que intitulamos de real. A produção de conhecimento [e, aqui, estamos produzindo conhecimento sobre você, a partir de uma doença e de um arriscado tratamento] pede escritas de si que não esperem apreciação nem entendimento, mas, antes, choques elétricos e incômodos. Escrever observações, respirações, batimentos cardíacos e dedos mindinhos em movimento é produzir brecha. A brecha é o tesouro guardado de Gaia e exu é o porteiro das brechas. Escreva, Bemtevi, escreva até morrer” (Exu Zambarado, 1995, s/p).

 

Zambarado, como um excelente orientador e acordador de devires, insistiu muito na observação, na criação de uma testemunha, nos cadernos de campo, nos cadernos de sonho, na escrita como modo de existência que reterritorializa a experiência. A experiência que produz atributos e vigores para a fabricação de um corpo taru andé radicalmente vivo. O corpo taru andé radicalmente vivo que descomprime e escapa das forças majoritárias controladoras para produzir brechas de arte, clínica, educação, alegria e cura como filosofias indissociáveis.

 

 

 

 

Bibliografia

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  15. Didi-Huberman, Georges, Sobrevivência dos vagalumes, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2011, pp.1-160.
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  2. Foucault, Michel, O corpo utópico: as heterotopias, São Paulo, N-1 Edições, 2013, pp. 1-29.
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  5. Haraway, Donna, Ficar com o problema, São Paulo, N-1 Edições, 2023, pp. 264-312.
  6. Ingold, Tim, “Chega de etnografia! A educação da atenção como propósito da antropologia”, em Revista Educação, 2016, pp. 404-411. https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/21690/15179. Acessado em 27 março de 2020.
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  10. Lapoujade, David, “Arte e vitalidade”, em Aula virtual e presencial por ocasião do aniversário de 10 anos da N-1 Edições, 2022, s/p.
  11. Lapoujade, David, As existências mínimas, São Paulo, N-1 Edições, 2017, pp. 1-128.
  12. Lapoujade, David, William James, a construção da experiência, São Paulo, N-1 Edições, 2017, pp. 1-130.
  13. Mbembe, Achille, Necropolítica, São Paulo, N-1 Edições, 2018, pp. 1-80.
  14. Mignolo, Walter, O Pensamento descolonial: desprendimento e abertura, Bogotá, Universidad Cental, 2007, pp.
  15. Ovídio, Metamorfoses: a fundação do mundo, São Paulo, Editora 34, 2017, pp. 5-162.
  16. Souriau, Étienne, O cubo e a esfera, Lisboa, Editora Arcádia, 1964, pp. 31-55.
  17. Souriau, Étienne, Diferentes modos de existência, São Paulo, N-1 Edições, 2020, pp. 1-192.
  18. Spinoza, Benedictus, Ética, Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2019, pp. 200-240.
  19. Trancoso, Déa, Catimbó zen: existências compartilhadas – uma filha da folha e os Exus Zambarado e Calunga da Calunga Grande em arte, clínica, educação, alegria e cura, Tese de doutorado, Unicamp, 2024.
  20. Uno, Kuniichi, Artaud: pensamento e corpo, Tese de doutorado defendida em 1980 e orientada por Gilles Deleuze, São Paulo, N-1, 2022, pp. 1-280.
  21. Uno, Kunichi, Hijikata Tatsumi: pensar um corpo esgotado, São Paulo, N-1 Edições, 2018, pp. 198-211.
  22. Zambarado, Exu, Cadernos de trabalho de mato: filosofia como modo de vida, Belo Horizonte, Tum Tum Tum Edições, 1995-1999, org. Déa Trancoso&Bemtevi, pp. 1-881.
  23. Zé Mulatinho, Exu, Processos ancestrais de cambonagem para Exu, Belo Horizonte, Tum Tum Tum Edições, 2012, org. Déa Trancoso&Papoula, pp. 1-21.
  24. Zé Pelintra, Exu, Colóquios breves: pequenas notas supervisadas por Tranca Ruas, Belo Horizonte, Tum Tum Tum Edições, 2022, org. Déa Trancoso&Nordestina, pp. 1-11.

 

 

Notas

[1] Para além de um Orixá ou uma entidade que vence demandas nos terreiros do mundo, Exu é um nômade que se desterritorializa e se reterritorializa quando, onde e como quer. Exu é aquilo que produz existências compartilhadas freneticamente e está sempre passando: está sempre insistindo para que algum corpo o incorpore como um movimento e um método de se estar radicalmente vivo na terra.
[2] Reuniões semanais realizadas em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, com um grupo de 40 pessoas, aproximadamente, com o propósito de, segundo o Exu Zambarado, produzir “consciência sem sujeito”. A data do começo dessas reuniões é desconhecida, mas o encerramento se deu no final de 1999.
[3] Tese do Exu Calunga da Calunga Grande que virou um dos corolários do “catimbó zen”. A resina de âmbar funciona como um guardador de devires. A força e a alegria de um acontecimento podem ficar intactas ali, para futuras reutilizações próprias ou de outros corpos ou até mesmo coletivas. É o agora atualizando a memória, como em Henri Bergson. A resina de âmbar proporcionaria o que Bergson chama de “esforço de pensamento e reconhecimento atento das imagens” (Bergson, 2010, p. 254), onde os fluxos dos devires guardados ampliam o corpo e este enriquece e expande a percepção do que lhe acontece.
[4] Nomenclatura usual para a pessoa que recebe ou trabalha com virtuais nos terreiros brasileiros. Diz-se, também, médium ou aparelho.
[5] Conteúdos que os áugures, sacerdotes romanos, captavam do céu, a partir do canto e do voo das aves.
[6] Conceito do Exu Zambarado que advoga a terra como um território artístico aonde Gaia lança flechas intuitivas sem parar aos corpos humanos como modo de afetá-los à coabitação e à coexistência.
[7] Reino de encantaria que, segundo o Exu Zambarado, guarda as forças que compõem a trimúrti cumplicidade, liberdade e alegria. Terra do Mestre Bom Floral que, segundo o pesquisador Câmara Cascudo, “é um velho feiticeiro bebedor de cauim”.
[8] Ganhei muitos presentes de Luz, entre eles, o livro “Os cocos”, de Mário de Andrade, e “Meleagro”, de Câmara Cascudo. O Exu Zamabarado já agia como um orientador; um orientador que disse inúmeras vezes que, um dia, eu me tornaria escritora.
[9] Zambarado chamava a fase adulta de “levantar, dizer sim e se colocar a serviço da humanidade como a cobra coral e o beija-flor”. David Lapoujade diz: “um ser pode participar de vários planos de existência como se pertencesse a vários mundos” (Lapoujade, 2017, p. 14).
[10] Étiene Souriau diz que modo de existência é aquilo que insiste no corpo e que artistas, pensadores, filósofos e escritores são grandes criadores de preexistências [terrenos, ambientes e arquiteturas necessárias à existência dos modos]. Spinoza diz que os modos são existências de outras coisas em nós. Zambarado segue a cartilha do indiano Osho: modos de existência são processos de iniciação à liberdade, alando o corpo de asas que sempre foram suas. Entretanto, Souriau chama a atenção para o fato de que “a força de um virtual é sempre o problema, a questão, e que se quisermos ver os mais belos reinos se abrirem em profundidade, é necessário correr riscos e correr esses riscos toda vez. Sempre. É necessário se tornar uma morgana, a deusa com extraordinários poderes de mudar de forma. Os modos de existência se fabricam e são sempre luminosas soluções para um problema, uma questão, uma demanda. Eles são a soma de exigências espirituais para elevação de um ser a um estar [Souriau, 1939, p. 353, tradução minha].
[11] Encontrei, de modo literal, essa premissa dos Exus Zambarado e Calunga da Calunga Grande como conceito em Tim Ingold. Tanto para os Exus quanto para Ingold, educação da atenção consiste em pensar a educação de um corpo no mundo a partir de um compromisso ontológico com a vida.
[12] Conjunto de práticas de um cotidiano heterogêneo para a produção de um corpo taru andé radicalmente vivo  que anda de mãos dadas com o “corpo sem órgãos” de Antonin Artaud&Gilles Deleuze.
[13] Conceito autoral fabulado junto com os Exus Zambarado e Calunga da Calunga Grande para agenciamentos entre modos de existência.
[14] O pensamento de que não é possível ser da terra e, sim, estar na terra [ou ser uma pessoa, um processo, ao invés de um sujeito], ouvi primeiramente de Zambarado, no começo dos anos 1990. A filosofia de Tim Ingold também diz de maneira literal que só é possível estar na terra. Isso tem sido uma constante: o pensamento zambaradiano presente nas filosofias por onde a minha pesquisa navegou.
[15] Modo de existência de quem sou guardiã, instaurado no meu corpo pelo Exu Calunga da Calunga Grande.
[16] Modo de escrita zambaradiano em que as velocidades entre o pensamento e a mão são preservadas.
[17] Conceito autoral, produzido a partir de leituras autóctones da “filosofia da diferença” de Gilles Deleuze.
[18] Acordando dentro do sonho de olho fechado e sonhando dentro do sonho de olho aberto. Primeiro movimento (6 luas = 6 meses]: atenção ao dedo mindinho do pé direito + observação de respiração, batimentos cardíacos, pensamentos e sensações + escrita [caneta] na manhã seguinte. Segundo movimento (6 luas): movimentação leve do dedo mindinho do pé direito + observação de respiração, batimentos cardíacos, pensamentos e sensações + escrita [caneta] na manhã seguinte. Terceiro movimento (6 luas): movimentação leve de todo o pé direito + observação de respiração, batimentos cardíacos, pensamentos e sensações + escrita [caneta] na manhã seguinte. Quarto movimento (6 luas): movimentação leve da perna e do pé direito + tentativa de abrir os olhos + observação de respiração, batimentos cardíacos, pensamentos e sensações + escrita [caneta] na manhã seguinte. Quinto movimento (6luas): atenção ao dedo mindinho do pé esquerdo + tentativas de movimentação leve do dedo mindinho do pé direito + observação de respiração,  batimentos cardíacos, pensamentos e sensações + escrita [lápis] na manhã seguinte. Sexto movimento (6 luas):  movimentação leve das duas pernas + tentativa de abrir os olhos + observação de respiração, batimentos cardíacos, sensações e pensamentos + escrita [lápis] na manhã seguinte. Sétimo movimento (6 luas): movimentação leve das duas pernas, girando-as à direita, junto com a cabeça, também à direita + observação de respiração, batimentos cardíacos, sensações e pensamentos + escrita [lápis] na manhã seguinte. Oitavo movimento (6 luas): movimentação leve das duas pernas, girando-as à esquerda, junto com a cabeça, também à esquerda + observação de respiração, batimentos cardíacos, sensações e pensamentos + escrita [lápis] na manhã seguinte. Nono movimento (3 luas): nenhum movimento + observação da descarga elétrica no corpo [chegada, passagem e saída] + produção de um inconsciente do evento epilético [a partir de pesquisas com minha mãe] + escrita [caneta sem tinta] na manhã seguinte. Décimo movimento (3 luas): nenhum movimento + observação da descarga elétrica no corpo [chegada, passagem e saída] + escrita [lápis] de um memorial [a partir dos escritos e das pesquisas com minha mãe] na manhã seguinte. Décimo primeiro movimento (9 luas): nessa fase, nasceram e foram lapidadas a maior parte das letras do que viria a ser, anos mais tarde, o meu primeiro disco autoral, “Serendipity”. Essas letras ganharam melodias, virando canções, por volta de 2010, 11 anos após Zambarado ter encerrado as fases do tratamento coordenadas por ele.
[19]  Da língua do grupo Uto-Azteca, falada pelos Hopi, nação indígena do nordeste do Arizona, EUA: vida em turbilhão. A “Trilogia Gatsi” (Koyaanisqatsi/1982, Powaqqatsi/1988 e Naqoyqatsi/2002], de Godfrey Reggio, é chamada de “poema sinfônico” e tem trilha sonora de Philip Glass.
[20] Do latim tintinnabulum [sinos]: os minimalismos modais circulares, hipnóticos e lisérgicos de um sino.
[21] Deusa oriental que aspira e cospe vidas para dentro e para fora de sua roda que está sempre girando.
[22] Para ouvir o CD: https://www.youtube.com/watch?v=prkOrpP3TXM&list=OLAK5uy_lbE8fGsgXEb-Njn5c0N1_xRt6qPgm1Yhg&index=2.
[23] Conceito de Étienne Souriau que advoga uma abordagem da vida  do mundo a partir do desconhecido.
[24] Conceito de Walter Mignolo que classifica o capitalismo como um sistema moderno colonial.
[25] Segundo o Exu Zambarado, é o tubo metamórfico por onde se engendram todos os outros Orixás: a movimentação do movimento.