Enquadramentos queer: por uma leitura reparativa de “The way we live now”, de Susan Sontag

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Enquadramentos queer: por uma leitura reparativa de “The way we live now”, de Susan Sontag

Resumo

A teoria dos enquadramentos de Judith Butler já foi muito discutida, mas poucas são as referências que estabelecem um vínculo entre seus estudos anteriores sobre a teoria queer e a teoria acima mencionada. Considerando o quão indissociavelmente interligados são os dois conceitos —teoria e estruturas queer—, este artigo tem como objetivo oferecer uma leitura do livro “The Way We Live Now”, de Susan Sontag, com un olhar que busca destacar como a vida dos indivíduos LGBTQ+ – os soropositivos, mais especificamente – foi compreendida através de quadros que as descrevem como vidas perigosas, imundas e passíveis de luto. Ao expor como os quadros funcionam e operam, também é nosso objetivo apontar que o conto de Sontag pratica o que Eve Sedgwick (2003) chama de leitura reparativa, abrindo caminho para investigações queer adicionais e contínuas.

Palavras-chave: Quadros Queer, Leitura Reparativa, Judith Butler, Susan Sontag, HIV/SIDA, LGBTQ+.

 

Abstract  

Much has been discussed regarding Judith Butler’s theory of frames, yet few are the references which establish a link between her previous studies on queer theory and the aforementioned theory. Considering how inextricably intertwined the two concepts are —queer theory and frames— this article aims to offer a reading of Susan Sontag’s “The Way We Live Now” with an eye to highlighting how lives of LGBTQ+ subjects – HIV-positive ones, more specifically – are understood through frames which depict them as dangerous, filthy and ungrievable lives. By exposing how frames work and operate, it is also our objective to pinpoint that Sontag’s story practises what Eve Sedgwick (2003) calls a reparative reading, thus paving the way for further and continuous queer enquiries.

Keywords: Queer frames, reparative reading, Judith Butler, Susan Sontag HIV/SIDA, LGBTQ+.

 

Há algo desconfortável nos parágrafos longos e fragmentados em “The Way We Live Now”, conto publicado por Susan Sontag em 1986 na revista The New Yorker. Há décadas sendo uma popular referência nas discussões literárias e teóricas sobre arte e fotografia, Sontag narra no referido conto as reações de diversos sujeitos após a descoberta de que um amigo em comum, que não é nomeado, foi diagnosticado como soropositivo. Será que é possível (re)pensar o HIV e a AIDS[1] fora dos enquadramentos, no sentido proposto por Butler (2015), que nos informam constantemente que as vidas das pessoas que vivem com AIDS são menos importantes ou até mesmo vidas que não deveriam ser válidas? Tido como um dos marcos da literatura sobre a epidemia da AIDS, “The Way We Live Now” ilustra a discussão que se propõe aqui ao enfatizar que os enquadramentos sontagianos dialogam com a proposta de leituras reparativas de Eve Kosofsky Segdwick (2009) enquanto tematizam a preocupação política de Judith Butler (2015).

No início de Quadros de Guerra Judith Butler afirma que seus escritos ali focam nos “[…] modos culturais de regular as disposições afetivas e éticas por meio de um enquadramento seletivo e diferenciado a violência”.[2] Para a teórica estadunidense, famosa por suas contribuições sobre gênero, performance e performatividade, é vital que se repense as condições nas quais algumas vidas são compreendidas e qualificadas como vidas enquanto outras não poderiam ser concebidas como tal “[…] de acordo com certos enquadramentos epistemológicos”[3] Para a sua argumentação, Butler utiliza a palavra enquadramento, termo que “[…] busca conter, transmitir e determinar o que é visto (e algumas vezes, durante um período, consegue fazer exatamente isso)” e que “[…] depende das condições de reprodutibilidade para ter êxito”.[4]

Butler afirma que, apesar da noção de que reconhecemos vidas como vidas ou não a partir dos enquadramentos aos quais temos acesso, eles não são capazes de conter completamente o que transmitem e que eles acabam por se romper sempre que buscam totalizar seu conteúdo.[5] Em outras palavras, compreender que existem vidas mediadas por enquadramentos significa ir além das molduras que limitam tal vida em um significado interpretativo. Assim, os sujeitos, constituídos através de inteligibilidades normativas, são reconhecidos a partir dessas mesmas normas que podem afirmar se a vida daquele mesmo indivíduo é cognoscível a partir das molduras que a contém.

A noção de que algumas vidas são passíveis de luto (grievable, no original) não é necessariamente uma intervenção inédita, pois diversas áreas das ciências humanas já discutem há décadas as formas como as vidas são compreendidas em seus contextos. Entretanto, a indagação de Butler —e podemos afirmar também o desconforto que ela busca evidenciar— reside na noção de que algumas vidas podem ser perdidas em prol do avanço que privilegiará o bem maior. Traços deste discurso são encontrados no dia a dia de diversos países e se tornam parte de processos de naturalização da violência.

Enquanto Butler (2015) discute a violência contra prisioneiros de Guantánamo em parte de sua obra, a violência que surge neste trabalho não é necessariamente a física, mas uma intimamente ligada às opressões morais e psicológicas enfrentadas por grupos minoritários que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer —aqueles abarcados na sigla LGBTQ+. A violência contra estas minorias é um exemplo da necessidade urgente de discutir alteridades em ambientes educacionais e buscar oferecer oportunidades de visibilização para aqueles enquadrados por discursos hegemônicos nos quais são descritos como “fontes de poluição”, como Sontag expressa em seu clássico estudo AIDS e suas Metáforas: as raízes dos discursos que constroem dicotomias como nós/eles se baseiam no conceito do errado, “[…] sempre identificado com o não-nós, o estranho. A pessoa poluente é sempre errada […]. O inverso também pé verdadeiro: a pessoa considerada errada é vista, ao menos potencialmente, como uma fonte de poluição”.[6]

Bourdieu (1998) discute não apenas a violência que compreendemos como física e aberta, mas também aquela de ordem simbólica que é encontrada “no ajustamento entre as estruturas que compõem o habitus do dominado e a estrutura de dominação à qual este se associa”.[7] Para o sociólogo francês, é neste “ajustamento” que aqueles que são dominados interpretam os dominantes através das categorias oferecidas pelo segundo grupo, reproduzindo, assim, os interesses dos dominantes na produção de sentidos. Desse modo, compreender a violência simbólica em sua íntima relação com a negociação de sentidos é essencial para que se possa pensar os enquadramentos propostos por Butler (2015) como elementos urgentes nas discussões contemporâneas da teoria queer: o que compreendemos sobre a vida de sujeitos LGBTQ+? Será que o que sabemos sobre estas minorias – e sujeitos vivendo com AIDS – não seria efeito de enquadramentos discursivos que nos ofertam apenas o lado “poluente”, como Sontag (2007) afirma?[8]

É interessante que se pense aqui a relação entre violência simbólica e enquadramentos para promover uma reflexão que busque renegociar o que se sabe (e o que não se sabe) na construção das representações dos sujeitos que vivem com AIDS. Conforme Sontag aponta, outros discursos fabricam e perpetuam o que sabemos (ou não) sobre estes sujeitos, especialmente quando notamos falas motivadas por preconceito e ódio como “castigo de Deus”, “decadência moral” ou “vingança da natureza” que são ratificadas por representantes de segmentos médicos e religiosos, por exemplo.[9] A violência surge, portanto, como uma autorizada forma de enquadrar os sujeitos que não estão em consonância com as expectativas hegemônicas, sendo um expresso jogo político sobre quais identidades —e, por conseguinte, quais vidas— devem ou não ser reconhecidas como válidas. “As ideologias políticas autoritárias,” nos informa Sontag, “[…] têm interesse em promover o medo, a ideia de que alienígenas estão prestes a assumir o controle – e para elas as doenças são um prato cheio”.[10]

A violência perpetrada contra sujeitos LGTBQ+ parece estar em escalada no Brasil como dados do Grupo Gay da Bahia demonstram —a cada 20 horas um sujeito LGBTQ+ morre de forma violenta— mas ainda não há dados sobre de que maneiras a violência simbólica segue instalada na sociedade. Assim, se a violência física surge como um chocante dado sobre a realidade, é urgente deveras sublinhar a necessidade de discutir como a violência simbólica se materializa em práticas de submissão associadas às crenças socialmente construídas e tratadas como “expectativas coletivas”[11] —elementos da crítica sobre a heternormatividade na teoria queer. Propõe-se neste trabalho a possibilidade de discutir como enquadramentos queer —sobre sujeitos LGBTQ+— servem para afirmar, reiterar e construir representações destas minorias, demonstrando a necessidade política de questionar de que formas estas representações são regidas por discursos totalizantes.

Ao se propor um enquadramento queer na leitura de “The Way We Live Now”, a intenção não é instalar uma negociação de sentidos que devem ser localizados compulsoriamente em textos tratados como queer. Pelo contrário, a busca se dá de maneira a pensar como a leitura oferece uma instigante modalidade de repensar o texto enquanto também indaga como os enquadramentos —do paciente soropositivo, dos amigos, das situações— permitem que os significantes transbordem em suas inversões e deslocamentos derridianos. Em outras palavras, o conto surge como uma forma de questionar os enquadramentos propostos por discursos hegemônicos enquanto parece também reivindicar uma nova modalidade de leitura que Eve Kosofsky Sedgwick (2003) chama de “leitura reparativa”.[12] Orientemo-nos agora para o referido conto a ser investigado.

Ao oferecer distintos pontos de vista dentro do conto, Sontag coloca em xeque a premissa de que exista apenas uma verdade a ser encontrada dentro do texto. Através dos fragmentos polifônicos, o conto informa menos sobre o passado do amigo em comum e muito mais sobre os personagens que repensam suas relações não apenas com o paciente anônimo, mas com todos ao redor. Max, Ellen, Greg, Tanya, Orson, Stephen, Jan, Quentin, Paolo, Aileen, Donny, Ursula, Ira, Kate, Nora, Wesley, Xavier, Betsy, Victor, Lewis, Yvonne —todos colocam em destaque como a condição do amigo em comum se torna uma chave para criar tensões em relação ao que cada um pensa sobre a AIDS.

É importante notar que o círculo de amigos próximos não pode ser interpretado apenas como uma rede infalível de afetos, justamente porque alguns desses amigos não conseguem encontrar maneiras de lidar com “a doença” —como alguns personagens definem a AIDS. Entretanto, pensar que estes amigos não apenas enchem o hospital de flores e presentes, mas se mobilizam para cuidar continuamente do amigo em comum, é encontrar uma leitura que não se quer definitiva da AIDS: a busca pelo apoio de uma vida que é compreendida pela sociedade como pecaminosa, inútil e desnecessária. A epidemia da AIDS constrói como seu alvo os sujeitos homossexuais, em particular homens gays. Assim, a AIDS se torna uma ameaça aos inocentes que não devem ser punidos pela devassidão moral de sujeitos que burlam as regras.[13]

Em Doença como metáfora / AIDS e suas metáforas (2007), Sontag discute como a AIDS assumiu a posição discursiva previamente atribuída à sífilis e ao câncer. Embora as duas doenças tenham ainda enorme força imaginária, a AIDS se tornou elemento-chave nos discursos conservadores que buscam enquadrar sujeitos que vivem com a AIDS como os problemas que precisam ser resolvidos na sociedade: “Tal é o poder, a eficácia extraordinária da metáfora da peste: ela permite que uma doença seja encarada ao mesmo tempo como um castigo merecido por um grupo de ‘outros’ vulneráveis e como uma doença que potencialmente ameaça a todos”.[14]

O discurso que promove a divisão entre um “nós” e “eles” é sustentado por enquadramentos nos quais os sujeitos que vivem com AIDS são perigosos e devem ser eliminados. É através dos apontamentos de Butler (2015) que podemos questionar como discursos médicos, que deveriam promover conhecimento acerca dos mitos associados à AIDS, acabam por perpetuar ainda mais os estigmas ao visibilizarem suas próprias agendas orientadas: “Não podemos reconhecer facilmente a vida fora dos enquadramentos nos quais ela é apresentada, e esses enquadramentos não apenas estruturam a maneira pela qual passamos a conhecer e a identificar a vida, mas constituem condições que dão suporte para essa mesma vida”.[15]

As palavras de Butler (2015) ressaltam como as nossas formas de conhecer o mundo e suas relações com os sistemas de verdade e ignorânci[16] são construídos através de enquadramentos que nem sempre são reconhecidos como tais. É também desta forma que Butler (2015) propõe que o ato de conhecer uma vida seja colocado em discussão: “Nem todos os atos de conhecer são atos de reconhecimento, embora não se possa afirmar o contrário: uma vida tem que ser inteligível como uma vida, tem de se conformar a certas concepções do que é a vida, a fim de se tornar reconhecível”.[17]

O ato de reconhecimento implica perceber a relação entre a inteligibilidade e a produção de normas, pois é através desta que algumas vidas podem ser reconhecidas como vidas. A produção normativa opera “para tornar certos sujeitos pessoas ‘reconhecíveis’ e tornar outros decididamente mais difíceis de reconhecer”.[18] Nesse sentido, segundo Felipe Demetri, denunciar os enquadramentos “é denunciar a própria operação do esquema normativo, da produção de inteligibilidades”.[19] Deve-se, portanto, indagar de que formas a questão de reconhecer vidas se torna essencial para pensar como o enquadramento em sua essência é um jogo discursivo político —no caso aqui proposto para pensar a AIDS e sua representação.

Em “The Way We Live Now” a construção discursiva sobre a condição da AIDS é constantemente questionada, fomentando a possibilidade de se repensar o papel não apenas dos discursos, mas principalmente da interação insidiosa entre estes e os enquadramentos. A troca de palavras entre Kate, Aileen e Hilda demonstra como o paciente estava sendo tratado de maneira distinta daqueles que foram hospitalizados anteriormente: “[…] people weren’t afraid to visit, it wasn’t like the old days, as Kate pointed out to Aileen, they’re not even segregated in the hospital anymore, as Hilda observed, there’s nothing on the door of his room warning visitors of the possibility of contagion, as there was a few years ago […]”.[20]

É desta forma que a leitura do conto de Sontag deixa de seguir uma interpretação paranóica na qual a busca por sentidos fixos queer sobre identidades, sexualidades e gêneros se torna menor que a compreensão de como se dá a descrição da situação do hospital. Sinalizando que havia uma mudança no tratamento da AIDS no ambiente hospitalar, as personagens oferecem sinais de que a moldura que tornava a AIDS um ameaçador monstro à segurança alheia não conseguiu se manter contida, especialmente ao realçar o preconceito como forma de julgar a situação.

Ao se depararem com a possibilidade de finitude, o círculo de amigos busca instituir formas de ter a certeza que eles continuam existindo: “Well, everybody is worried about everybody now, said Betsy, that seems to be the way we live, the way we live now”.[21] É curioso que o léxico utilizado sobre a AIDS é justamente o oposto do esperado. Não se fala sobre morte, desesperanças ou sofrimento. Pelo contrário, a própria ideia de “that seems to be the way we live now” —“o jeito como vivemos agora”— indica uma resistência, uma maneira de ter certeza que a situação retratada não é o fim.

É na lacuna de escrever um conto sobre a epidemia da AIDS e burlar as expectativas de traumas e sofrimento que Sontag já possibilitava em 1986 uma leitura reparativa que não se quer final ou definitiva, mas sim uma centrada na multiplicidade de posições críticas. Também é quando Eve Sedgwick afirma que a esperança, mesmo sendo uma “coisa traumática” e “fraturada a se experienciar”, é uma das energias pelas quais leitores reparativos tentam organizar os fragmentos que encontram.[22] Em outras palavras, em uma leitura reparativa é necessário abrir mão da paranóia, não como um diagnóstico, mas como uma forma de conhecer o mundo: saber o que pode acontecer e se preparar para tal; localizar onde estão os temas dentro de obras e buscar como esses sentidos são localizáveis; estar sempre alerta para os elementos textuais que buscam apagar algo. A leitura paranóica não é menos importante que a reparativa, porém a segunda busca revelar traços afetivos que a primeira parece ter deixado de tematizar em seu afã político contemporâneo nos estudos queer.

A paródia pós-moderna surge como uma forma de element reparative. Sontag parodia a própria concepção da doença como corrupção de si[23] quando ela evita a desumanização como lugar comum da AIDS: “I know for me his getting it has quite demystified the disease, said Jan, I don’t feel afraid, spooked, as I did before he became ill, when it was only news about remote acquaintances, whom I never saw again after they became ill”.[24] O que se sublinha neste trecho é como dentro do próprio círculo de amigos, eles escolhiam enxergar outras vidas como distantes e cuja precariedade não lhes eram interesses. Surge, portanto, uma indagação entre os amigos sobre como eles interpretavam a AIDS antes e depois daquele momento. É a partir da possibilidade do amigo anônimo falecer que eles podem repensar suas posições e colocarem em pauta suas convicções sobre o que significa viver e morrer, sobre quem poderia ou não estar ali naquele mesmo lugar ocupado pelo paciente anônimo.

Embora pareça que a leitura reparativa assuma posições inocentes em relação ao tema, ela surge como uma forma de lidar com aquilo que pode ser tratado como o lado feio da humanidade e tentar tornar tais espaços não só políticos, mas também locais de potências afetivas —sejam estas boas ou ruins. A aproximação de leituras reparativas e enquadramentos em “The Way We Live Now” é uma forma de negociar sentidos para experiências traumáticas em diversos níveis —social, pessoal, identitário, nacional— e tentar colocar em discussão o papel da literatura como formas de textos de fruição tal qual Barthes (2006) discute em O Prazer do Texto:

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem.[25]

Ao enquadrar os enquadramentos,[26] Sontag discute que uma vida está literalmente pulsando ainda. Ao se negar a tratar da epidemia da AIDS nos termos preferidos pela mídia e pela metáfora da peste,[27] a escritora arma uma emboscada para os enquadramentos que invisibilizariam uma vida cuja existência seria (é?) negada se não houvesse a presença de seus amigos para lhe inscreverem em suas histórias. Pode-se argumentar que a escrita de Sontag em “The Way We Live Now” expõe as molduras que buscam conter a vida. “A moldura nunca determinou realmente de forma precisa o que vemos, pensamos reconhecemos e apreendemos” justamente porque “[…] algo ultrapassa a moldura que atrapalha nosso senso de realiade; em outras palavras, algo acontece que não se ajusta à nossa compreensão estabelecida das coisas”.[28]

Com a revelação destas molduras que nos dizem que a vida do paciente anônimo não deveria ser reconhecida é que entramos no espaço que Barthes (2006) chama de “estado de perda”, pois tudo o que sabemos sobre a AIDS é controlado por tais molduras discursivas que operam com nossas ignorâncias no sentido que Sedgwick (1990) trata em Epistemology of the Closet.

Talvez o elemento-chave para a leitura reparativa de “The Way We Live Now” é o seu final que não busca encerrar a história do paciente anônimo em seu melhor diálogo com a fragmentação pós-moderna. “I was thinking, Ursula said to Quentin, that the difference between a story and a painting or photograph is that in a story you can write, He’s still alive. But in a painting or a photo you can’t show ‘still.’ You can just show him being alive. He’s still alive, Stephen said”.[29]

A conversa entre Ursula e Stephen assume tons filosóficos ao ponderar de que maneiras a arte possui um papel na interpretação dos sujeitos. Uma pintura, na opinião de Ursula, não poderia informar seus apreciadores sobre o objeto pintado como “ainda vivo”, afinal, tanto quanto a fotografia, ela marca um momento indelével para a posteridade, independente de vida e morte. Já uma história ou um conto podem suspender a continuação, a suspensão da descrença forneceria elementos articuláveis na linguagem para dizer que ele ainda está vivo. –“He’s still alive”. A ideia de ainda estar vivo surgiria como uma lembrança da feiúra que se associa ao corpo do sujeito que ali sofre, porém, em uma leitura reparativa a morte não se torna elemento assustador. O ainda estar vivo é uma potência do enquadramento que nos informa, como leitores e críticos, que o discurso criado para manter a AIDS como castigo ou condenação[30] deve ser contestado.

Ao propor aqui uma breve leitura do conto de Sontag a partir dos apontamentos de Butler (2015) sobre os enquadramentos, a intenção é apresentar novas possibilidades de diálogo da teoria queer com outros campos que seguem estimulados (não sendo um problema) pelas leituras paranóicas que desejam se preparar sempre para o que há de pior no cenário. Sedgwick (2003) não busca dizer que tais leituras possam ser irrelevantes ou que devem ser descartadas – há muito espaço ainda para o desenvolvimento da teoria queer e suas buscas por temas previamente ignorados – porém o temor de Sedgwick sugere que a estabilização de um significado para a própria teoria, que se acreditava subversiva, possa exaurir as suas intenções ao criar modos estanques de análise. Desta forma, ao sugerir leituras reparativas, que aqui se assemelham ao estado barthesiano de perda no texto de fruição, espera-se que a teoria queer possa se nutrir dos enquadramentos como forma de repensar a própria prática interpretativa. Ler a representação da AIDS em “The Way We Live Now” não é simplesmente uma busca pela experiência essencialista dos sujeitos que vivem com ela, mas sim uma forma de localizar os poderes que manipulam os enquadramentos e seus termos de reconhecimento de vidas.

“Uma figura viva fora das normas de vida não somente se torna o problema com o qual a normatividade tem de lidar,” nos diz Butler,[31] “[…] mas parece ser aquilo que a normatividade está fadada a reproduzir: está vivo, mas não é uma vida.” O que “The Way We Live Now” revela é que há vida ainda pulsando e que é este enquadramento queer e reparativo que a teoria queer precisará buscar cada vez mais em suas novas negociações em tempos de “pós-queer”.

 

Bibliografia

  1. Barthes, Roland, O prazer do texto, Perspectiva, São Paulo, 2006.
  2. Bourdieu, Pierre, Practical teason: On the theory of action, Stanford University Press, Stanford, 1998.
  3. Butler, Judith, Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto?, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2015.
  4. Demetri, Felipe, Judith Butler: Filósofa da vulnerabilidade, Editora Devires, Salvador, 2018.
  5. Grupo Gay da Bahia (Org.), “População LGBT morte no Brasil: Relatório GGB 2018”, Disponível em <https://homofobiamata.files.wordpress.com/2019/01/relatorio-2018-1.pdf>. Acesso em: 28 Set 2019.
  6. Sedgwick, Eve Kosofsky, Epistemology of the closet, Berkeley & Los Angeles, University of California Press, 1990.
  7. Sedgwick, Eve Kosofsky, Touching feeling: Affect, pedagogy, performativity, Duke University Press, Durham and London, 2003.
  8. Sontag, Susan, Doença como metáfora / AIDS e suas metáforas, Companhia das Letras, São Paulo, 2007.
  9. Sontag, Susan, “The way we live now”. Disponível em <https://www.newyorker.com/magazine/1986/11/24/the-way-we-live-now>. Acesso em: 28 Set 19.

 

Notas 

[1] Utilizo AIDS em letras maiúsculas em consonância com as discussões propostas pelo Guia de Terminologia do UNAIDS, organizado pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) e publicado em 2017. Disponível em https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2015/06/WEB_2018_01_18_GuiaTerminologia_UNAIDS.pdf. Acesso em 25 Set 2019.
[2] Butler, Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto?, ed. cit., p. 13.
[3] Idem.
[4] Ibidem, p. 25-26.
[5] Ibidem, p. 26.
[6] Sontag, Doença como metáfora / AIDS e suas metáforas, ed. cit., p. 115.
[7] Bourdieu, Practical reason: On the theory of action, ed. cit., p. 9.
[8] Sontag, Doença como metáfora…, ed. cit., p. 115.
[9] Ibidem, p. 125.
[10] Idem.
[11] Cfr. Bourdieu, Practical reason , ed. cit.
[12] Cfr. Sedgwick, Touching feeling: Affect, pedagogy, performativity, ed. cit.
[13] Sontag, Doença como metáfora…, ed. cit., p. 127.
[14] Idem.
[15] Butler, Óp. Cit., p. 44.
[16] Cfr. Sedgwick, Epistemology of the closet, ed. cit.
[17] Butler, Óp. Cit., p. 21.
[18] Ibidem, p. 20.
[19] Demetri, Judith Butler: Filósofa da vulnerabilidade, ed. cit., p. 143.
[20] Sontag, The way we live now, ed. cit.
[21] Idem.
[22] Sedgwick, Touching feeling, ed. cit., p. 146.
[23] Cfr. Sontag, Doença como metáfora…, ed. cit.
[24] Sontag, The way we live now, ed. cit.
[25] Barthes, O prazer do texto, ed. cit., pp. 20-21.
[26] Butler, Óp. Cit., p. 23
[27] Em AIDS e suas Metáforas, Sontag descreve a metáfora da peste como uma forma encontrada pela sociedade para tratar de doenças e epidemias e, que de maneira peculiar, foi essencial para os anos 1980 definirem a AIDS: “A peste […] é há muito tempo utilizada como metáfora do que pode haver de pior em termos de calamidades e males coletivos […]” (Sontag, Doença como metáfora…, ed. cit., p. 112).
[28] Butler, Óp. Cit., p. 24.
[29] Sontag, The way we live now, ed. cit.
[30] Cfr. Sontag Doença como Metáfora…, ed. cit.
[31] Butler, Óp. Cit., p. 22.

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