Navegar em bruxarias e cores nos cotidianos escolares: o cinema infantil tecendo cartografias feministas

 

Marcelly Camacho Torteli Faria

Sandra Regina de Freitas Amaral

Wenceslao Machado de Oliveira Júnior

 

Resumo

O cotidiano da escola infantil é repleto de experiências em que destacamos a produção de imagens em uma Escola Municipal de Campinas (SP), integrada ao Programa Cinema e Educação, atuante desde 2016, bem como pesquisas que perfazem as ações do Cineclube Regente/Cha, através da parceria com o Laboratório de Estudos Audiovisuais-OLHO e do Grupo de Pesquisa Transversal, focalizados na Filosofia da Diferença, ambos pertencentes à Unicamp. Será possível dialogar ao redor das abordagens curriculares envolvendo temas que integram multiplicidades femininas e (trans)feministas na escola infantil? Nascem indagações aos currículos oficiais das grandes navegações, ancoradas em uma educação maior, em busca de se vislumbrar currículos pulsantes, oriundos de navegações diaspóricas e imersas nas águas da educação menor.

Palavras-chave: navegações, bruxarias, infâncias, cartografías, femininas, feministas.

 

Resumen

El cotidiano de la escuela de los niños está lleno de experiencias y destacamos la producción de imágenes en una escuela municipal de Campinas (SP), integrada en el Programa Cine y Educación, activo hace 2016, así como las investigaciones que componen las acciones del Cineclub Regente/Cha, a través de una alianza con el Laboratorio de Estudios Audiovisuales-OLHO y el Grupo de Investigación Transversal, con foco en la Filosofía de la Diferencia, ambos centralizados en la Unicamp. ¿Será posible dialogar en torno a abordajes curriculares que involucren temáticas que integren multiplicidades femeninas y (trans)feministas en las escuelas infantiles? Surgen interrogantes sobre los currículos oficiales de las grandes navegaciones, anclados en una educación mayor, en un intento de vislumbrar currículos pulsantes, provenientes de navegaciones diaspóricas e inmersos en las aguas de la educación menor.

Palabras-clave: navegaciones, brujería, infancias, cartografía, femenino, feminista.

 

Abstract

The daily life of the children’s school is full of experiences and we highlight the production of images in a Municipal School in Campinas (SP), integrated into the Cinema and Education Program, active since 2016, as well as research that makes up the actions of the Cineclube Regente/Cha, through a partnership with the Audiovisual Studies Laboratory-OLHO and the Transversal research group, focused on the Philosophy of Difference, both from Unicamp. Will it be possible to dialogue around curricular approaches involving themes that integrate feminine and (trans)feminist multiplicities in children’s schools? Questions arise regarding the official curricula of the great navigations, anchored in a greater education, in an attempt to glimpse pulsating curricula, originating from diasporic navigations and immersed in the waters of minor education.

Keywords: navigations, witchcraft, childhoods, cartography, feminine, feminist.

 

  1. Introdução

 

O funcionamento da sociedade tem se desdobrado cada vez mais em esferas maquínicas, digitais, tecnológicas direccionando-se até no sentido da controversa temática das inteligências artificiais, convivendo, ao mesmo tempo, com a urgência de cuidados e novas formas de relação com a natureza, as crianças e os saberes cosmológicos que os povos ancestrais, africanos, indígenas, originários, campesinos, ciganos e quilombolas se dedicam a preservar a despeito de todo processo violento de colonização, escravização e massacre, infelizmente reproduzido ao longo dos tempos. A produção de imagens e filmes nas escolas pode funcionar neste sentido, a contrapelo dos meios de comunicação majoritários, como forma de resistência e memória de diferentes culturas e grupos que historicamente vem sendo dizimados. Ao mesmo tempo, também pode se constituir no bojo de novas formas de constituição de corpos, subjetividades, inteligências, gêneros e sensibilidades.

Sintonizados com esta urgência, temos realizado oficinas de experimentações com cinema na escola em que estes outros saberes são mobilizados[1]. Oficinas de cinema-escola na educação infantil. Propostas para experimentar mundos outros com crianças, ambientes, paisagens, águas, objetos, terra, plantas, bichos e gêneros, mobilizando diferentes cartografías femininas e masculinas em criação.

As oficinas foram elaboradas (e propostas) considerando um diálogo com os filmes produzidos nas escolas e, disponíveis no canal do Cineclube Regente/Cha[2], também a partir de encontros (reuniões) e conversas com o orientador e a equipe do Cineclube, mais diretamente com uma professora, também integrante do Cineclube, ambos autores do presente artigo, que aceitou me receber para realização de um trabalho coletivo de pesquisa em sua sala, além de compartilhar aprendizagens, experiências, leituras, cartas, cursos e a escrita de textos, durante as atividades de pesquisa/oficinas.

Na última parte do artigo trazemos experimentações em que a bruxaria mobilizou a oficina, os corpos e as imaginações.

 

2. Situando as oficinas de cinema como educação menor 

 

Desde o deserto contexto político dos tempos atravessados pela COVID-19, as pesquisdoras realizaram uma série intensiva de oficinas pensadas a partir de propostas que transformam a literatura e o cinema como dispositivos na educação. Ponto de partida: considerando encontros cotidianos com as crianças nas escolas. Fazendo assim a composição de um conjunto de ações micro-políticas, estéticas e poéticas. Educação menor, como criação do presente, em suas minúsculas aberturas, que, ao invés de anunciar futuros idealizados, vai bordando o codiano com diferenças e um futuro como possibilidade de metamorfose e de novidade, mediante o instituído e o capturado controle institucional da máquina escolar. Em um diálogo com Deleuze e Guattari, na obra “Kafka por uma literatura menor”, apostamos na criação do conceito de uma educação menor como prática filosófica da educação com as infâncias (Gallo, 2003). Nesse sentido, as oficinas funcionaram, em primeiro lugar, compondo experiências que partiram de uma minoria – crianças e pesquisadoras – em conexão oral com uma língua maior e algumas histórias dessa tradição, desterritorializando a história como verdade e subvertendo a tradição colonial. Assim, em segundo lugar, uma educação menor implica o territorializado de uma língua e literatura maior – educação maior – a um novo funcionamento ao estabelecer rupturas com disciplinamento e controle dos corpos nas infâncias, fazendo a norma estremecer, gaguejar e vibrar, com as oralidades plurais, compondo diferentes agenciamentos coletivos, vozes múltiplas das infâncias,  gerando uma proliferação de sensibilidades políticas. Neste sentido, o terceiro ponto destacado em uma educação menor com os dispositivos de produção de imagens, o cinema-escola em que ela se espacializa, compondo inevitavelmente um valor coletivo, uma vez que afeta não somente as pesquisadoras-artistas, mas, principalmente, toda comunidade das infâncias e trabalhadoras escolares em criação com a comunidade do bairro e os femininos, tecidos durente e após as oficinas de cinema.

Dessa forma, há uma abertura para experiências, vidas, livros, imagens e gêneros que afetam novos sentidos e possibilidades de experimentação e leitura. Espaço que vai sendo produzido em uma sala de aula de educação infantil, em uma escola em que há um Cineclube movimentado, bem como a professora da sala, artista e pesquisadora do cinema na educação, compondo territórios propícios a experimentar esses mundos em criação, atravessados pela plasticidade inconsciente (Malabou, 2014, 2021) dos tempos de pandemia, a tessitura da presente escrita como a de uma aranha em sua teia-rede. Nas oficinas de cinema-escola, a proposta centralizou-se na composição de cartografias do feminino, tecidas em relação com o masculino, ali implicadas ambas as constituições de gêneros e sexualidades em mutação, culminando em palavras e imagens que evidenciam o destaque para o feminino, ainda que nunca a um feminino como categoria pré-estabelecida, mas sempre como tensionamento do dado, devir-mulher, devir-feminino, como experiências que questionam o instituído em nome do acontecimento com as múltiplas artes do cinema-escola. Os objetos mobilizados foram escolhidos para evocar elementos dos femininos – em destaque – e masculinos que pudessem se diluir e serem integrados no espaço proposto. Os materiais passaram a ser dispostos em mesas experimentais, na sala de aula, e, em “tecidos transparentes” sobre o chão do parque, a grama e a terra considerando a partir da composição de um espaço delimitado pelos objetos e corpos que o ocupavam temporariamente, na relação com os objetos. Assim, poderiam suceder encontros com lenços, colantes brilhantes e coloridos, tiaras, glitter, por vezes, gorros e laços, outras vezes, chapéus, bijuterias e batons. Ao mesmo tempo, o contato com o solo, a terra vermelha, a grama a verdejar, as árvores, plantas, as madeiras dos brinquedos, as luzes e sombras, o vento e temperaturas ao ar livre. Crianças tornavam-se personagens, como também as paisagens: árvores que dançavam, brinquedos multicores do parque, fadas, bruxas e feiticeiras/os na produção da magia cinematográfica da diferença, elegendo instantes quaisquer dos cotidianos escolares, ao invés do mero espelhamento no cinema clássico em que a produção se realiza a partir de narrativas movidas por eleição de instantes privilegiados. Assim, foi possível mobilizar novas experiências com gêneros em criação nas travessuras com o cinema-escola, produzindo imagens em que observamos as intensidades das cores como as tonalidades que os raios de sol refletem-compõem o verde gramado, em uma tarde no parque, ou o próprio contraste nas imagens de suas sombras na paisagem terrestre; e também, imagem-afecção em que o azul escuro e brilhante desponta ao fundo do rosto colorido da menina e o azul claro-escuro salta em terceiro olho brilhante e estrela azul-escuro no rosto colorido do menino. Paisagens incidindo sobre corpos-infâncias e infâncias atravessando paisagens, constituindo-se mutuamente. As imagens-afetos de rostos que se desdobram no tempo em imagens-cristal, ao cartografarem espaços que não são exclusivamente tecidos por coordenadas de um espaço-tempo determinado, mas que se abrem para a composição de um espaço-tempo próprio, virtual e atual, o possível, o espaço qualquer de acordo com Deleuze (Machado, 2009; Wosniak, 2018).

Destacando as produções imagéticas em diferentes cores, planos, linhas, texturas e paisagens, em que o aberto funciona como recortes de objetos em um conjunto artificial, um todo que traça uma perturbação na duração, enquadre temporário e o movimento no espaço, translação, segundo a perspectiva de afetos e expressões cosmológicas, a lua, o sol, a montagem, que transforma o todo, a partir de um instante qualquer e não uma cronologia, uma linearidade e/ou um momento privilegiado. As invenções das crianças, seguindo o fluxo das ondas, em suas múltiplas formas de dispositivos de cinema, tecem imagens que nos levam a pensar nas relações existentes entre os corpos, gêneros e sexualidades em devir, bem como nas experiências com o cinema-escola. Anunciamos, portanto, que as diferentes óticas multicores nos consentem problematizar os currículos oficiais das grandes navegações colonizadoras, ancorados, por sua vez, no território de uma educação maior, em busca de se vislumbrar os currículos emergentes, pulsantes e vibrantes, das ‘pequenas’ navegações piratas e diaspóricas de uma educação menor.

Nas escolas, como nos projetos culturais e organizações sociais, a produção de imagens e cinema também tem permitido formas de expressões das incontáveis lutas políticas através das artes com movimentos sociais em diferentes áreas, destacamos espaços feministas contemporâneos, que vêem ganhando ampla movimentação na recomposição dos traçados cartográficos decoloniais da América Latina, Aby Ayala[3], ampliando e transformando o próprio conceito de arte cinematográfica, de escola e dos próprios territórios. Nesse contexto, o município de Campinas se encontra integrado às variadas iniciativas materializadas, por exemplo, na criação do Programa Cinema e Educação: experiência do cinema na escola de Educação Básica, desde 2016, fortalecendo as relações da educação – infantil, fundamental e EJA e a universidade – tecidas entre instituições de ensino público da cidade.

O presente texto é fruto de pesquisa de doutorado em andamento, intitulada “Cinema-escola e as cartografias do feminino”, investigação singular que vem sendo traçada como uma aventura poética no universo da ciência, como forma de experimentação e ensaio, magias e bruxarias, na relação com os dispositivos de cinema e criação de imagens na escola infantil. O que nos leva à ampla produção de escritas com imagens e escritas imagéticas, cinematográficas e de textos produzidos na Rede das Escolas Públicas de Campinas – SP, integradas ao Programa Municipal de Cinema na Educação, em parceria com a Universidade Estadual de Campinas, através do Laboratório de estudos Audiovisuais-OLHO e do Grupo de Pesquisa Transversal que abordam o cinema de acordo com a perspectiva filosófica da diferença.

O método cartográfico deslocado para o plano de trabalho artístico com gêneros, feminismos e sexualidades no cinema-escola das crianças pequenas, implica uma nova forma de se relacionar com os saberes científicos: as infâncias, o mundo, o universo, os corpos, o espaço-tempo, a natureza, as coisas e as subjetividades. Implicam “experimentações estéticas com cotidianos escolares” (Leite, 2023). Aliado aos dispositivos de criação de imagens, que rompem com a ideia de narrativa tradicional, à moda de histórias e roteiros lineares em filmes,  apostamos, por sua vez, em uma atenção concentrada e aberta aos corpos e espaços,, disponíveis no campo, ou seja, na escola, como também seus integrantes (crianças, professoras, educadoras e a pesquisadora), seus múltiplos territórios e as imagens produzidas coletivamente (desenhos, fotografias, histórias e filmes), que evidenciam pistas e misturas, de gêneros em invenção, feminilidades e masculinidades em decomposição e fabulação nas oficinas de produção de imagens que atravessam os cotidianos escolares. O trabalho implica experiências de campo, leituras, participação em grupos de pesquisa e diálogos realizados com crianças, professoras, pesquisadoras e artistas, em processo de composição com os femininos e feminismos[4] (eco feminismo, resistência das mulheres indígenas, feminismo comunitário, cigano, transfeminismo etc.).

Parece que estar com a escrita de imagens, de palavras, de femininos e infâncias, se evidencia como uma forma singular e, o ao mesmo tempo coletiva, de habitar cotidianos escolares e pesquisas acadêmicas, provocando rupturas em cronologias enrijecidas de horários demarcados para “atividades pedagógicas” e “atividades de cuidado”. Como se as determinações curriculares pudessem abarcar tudo.  E as racionalidades a priori esgotassem os sentidos em uma pesquisa acadêmica. De qualquer modo, há diferentes relações com o aprender-experimentar que não abarcam o todo curricular, mas mobilizam o pensamento porque se lançam nos mínimos acontecimentos cotidianos, onde vida, cuidado e aprendizagem-experimentação se entrelaçam. Ou, quando em contextos tradicionais de pesquisa, ao se anunciar um plano dissertativo, estipulando início, desenvolvimento, pergunta-problema e resultados, se antecipam respostas, sem antes experimentá-las em campos-cotidianos e corpos-escolares, concluindo o que outrora fora previsto, dispensando o movimento problematizador que gera criações no próprio acontecer do pensamento. Mas há outras formas de escritas e pesquisas que podem ganhar corpo ao habitar–pensar com os corpos – a escola, as imagens, as infâncias e seus cotidianos com criações femininas, nos diferentes corpos. Femininos que assim não se limitam a gêneros e anatomias, mas que são tecidos nas relações de produções de imagens com as educadoras, as crianças e o espaço mutuamente criados por e entre elas. O que também mobiliza aprendizagens e afetos com femininos em estado de invenção com corpos que se abrem ao meio, experimentando uma relação feminino-feminista de contato-cuidado com o território e os outres. Experiências diárias com saberes sempre abertos a realidades inacabadas. Afetos que proliferam com a alteridade de outrem no espaço de pensar através das criações com as imagens e as vidas. Assim, o entrelaçamento com o texto de pesquisa, que desponta por atravessamentos, no bojo de escritas vivas que pulsam com a magia e a perdição dos cotidianos escolares, experiências femininas em criação através de aprendizagens-inventivas que cuidam das crianças e das imagens produzidas com elas, das palavras trocadas e dos corpos que se alimentam dos sabores da comida e das descobertas com as imagens, improvisando contatos-conteúdos afetivos. Cotidianos e escritas de pesquisa estão sempre começando pelo meio e terminando ao iniciar. Porque estão justamente problematizando currículos, no meio de acontecimentos quaisquer do viver-escola com infâncias de crianças e educadoras. “Talvez assim, os cotidianos e as vidas dentro da escola, permeadas pelas imagens produzidas por e com crianças, altere os próprios cotidianos pela alteridade do olhar do outro” (Leite, 2023, p.7).

 

3. Uma escrita que emerge entre pesquisa e legislação

 

A pesquisa-experiência[5] (Barbosa, Oliveira, Silva, Leite, 2019), pesquisa-intervenção é realizada a partir da leitura do histórico do Projeto de pesquisa Lugar-escola e Cinema: afetos e metamorfoses mútuas[6], bem como na imersão em histórias-geografias do cotidiano escolar realizando também oficinas de cinema em parceria com o Cineclube Regente/Cha, já existente na escola. Assim, foram produzidas experiências de aprendizagens, leituras, produção de imagens, escrituras, textos e pequenos filmes.

A prática de escrita mostra-se desafiadora por uma série de questões. A exigência de uma suposta objetividade verdadeira que garantiria um conjunto de sentidos para os textos e documentos que, por sua vez, revelassem “a verdade”, de leis, por exemplo, e/ou sustentasse “a verdade” ou um certo número delas. As modalidades de escritas poéticas e criativas tem sido, cada vez mais, apartada da concepção de ciência e comunicação/informação majoritárias e, quiçá direccionadas apenas para o âmbito da arte literária como disciplina. Como se a arte da escrita como aprendizagem, em seus múltiplos sentidos e formas na educação, não fossem relevantes às experiências de vida, pesquisa, leitura e produção criativa de documentos e escrita. Isto em um cenário educacional que apresenta oscilação e retrocessos com relação à abordagem da temática de corpos, gêneros e subjetividades no currículo e no cotidiano das instituições. O grave problema das fake news gerando não somente pânico face à abordagem da temática de gênero nas escolas, culminando em um Projeto de Lei que anuncia intervir no ensino de modo a coibir a disseminação da ideologia de gênero na educação[7]. Essa questão, aliás, se contrapõe ao que supostamente já estaria garantido na própria Constituição de 1988, ou seja, o direito à educação para a igualdade e identidade de gênero, raça e orientação sexual, nos diferentes contextos educativos. Marco que possibilitou, inclusive, a criação de uma série de Leis visando a garantir na prática diária o que foi previsto na Constituição.

Dentre a extensa legislação existente envolvendo as temáticas de gêneros, sexualidades, prevenção às violências etc., destacaremos na área da educação as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil[8], que prevêm a necessidade de promover novas formas de relações sociais e produção de subjetividades, em busca de assegurar o impedimento de formas dominantes nos níveis socioeconômicos, étnico-racial, de gênero, regional, linguagem e religiosa. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental[9] também encontramos a meta de promoção e cuidado com as diferentes comunidades de vida, ecossistemas, justiça socioeconômica, equidade social, étnica, racial e de gênero. Especificamente, o Artigo 14 destaca que a abordagem curricular deve conectar as dimensões ambientais à pluralidade étnica, racial, social e de gêneros, diversidade sexual, bem como aos direitos à saúde e ao trabalho. Com relação às pessoas transexuais e travestis, a Portaria nº 1.612, de 18 de novembro de 2011, assegura o direito à escolha de tratamento nominal (nome social) nas ações e metodologias educativas. O Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD LGBT) publicou uma Resolução que orienta redes e instituições de ensino a reconhecerem a identidade de gênero de pessoas trans. Nesse sentido, o Ministério da Educação exigiu circulação de Nota Técnica destacando, a importância da Resolução n°12 CNDC/LGBT de 16 de janeiro de 2015, que apresenta parâmetros para viabilizar a garantia de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais – e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais – nos sistemas e instituições de ensino.

Atualmente, contando com cenário político mais democrático, encontra-se em tramitação o Projeto de Lei 2415/2022, que determina a obrigatoriedade, em todas as escolas públicas e privadas de todos os níveis, incluírem na grade curricular matéria relativa a gênero, focando na diversidade sexual, no respeito e na integração das pessoas transgêneros, transexuais e travestis. Certamente, destacamos uma retomada de conquistas no âmbito legal, o que sinaliza uma série de novas possibilidades para uma retomada dos trabalhos na Educação, ainda que a problemática siga lançando-nos uma porção de desafios, considerando o acentuado conservadorismo que ainda vigora nas ações e posicionamentos de grande parte da população brasileira. Perambular pelas experiências de cinema na Educação Infantil mobiliza o pensamento em torno do currículo na Educação Básica. Mesmo com legislações em pleno vigor envolvendo a abordagem de gêneros nas escolas, qual seria a forma e o espaço para abordagem e escuta dos corpos, sexualidades e diferenças na escola? Nesse sentido, o currículo pode se fazer canção? Canção feminina e (trans) feminista? Ao se nomear o currículo, que outras tantas situações podemos convocar? Invocar? Rituais mágicos? Bruxarias, feitiçarias? Músicas? “O Clube da Esquina”, com “seus sonhos que não envelhecem”[10] e Chico Buarque em “Joana Francesa”[11], enfeitiçada pelo “mar, maré e o barco” (Amorim, Andrade, 2007)? Currículo nômade. Ao mesmo tempo, currículo que se abre e navega por novos trajetos com os pés sujos de chão de escola-mundo, com o rosto manchado de “pó da estrada”, repleto de micro-histórias enaltecidas e silenciadas, minúsculas forças que grudam no rosto, como na música de Sá, Rodrix & Guarabyra (1973). Currículo que ganha corpo e nomadiza, se transveste para fugir das normatizações. Currículo repleto das marcas que vão se constituindo com suas múltiplas formas e novas configurações ao longo do caminhar de histórias emergentes, afro-ameríndias e afro-diaspóricas. Navegações redescobertas? Currículo atravessado por legislações, tais como, o Estatuto da Criança e do Adolescente desde 1990, fruto das conquistas da Constituição de 1988, a Lei e Diretrizes e Bases da Educação no 9.394/1996, que passou a incluir as Lei 10.639 de 2003 e a   Lei nº 11.645 de 2008, em busca de garantir acesso e direito de crianças, jovens, adultos e idosos ao ensino-aprendizagem da História e Cultura Indígena e Afro-Brasileira, além do Referencial Nacional para Educação Infantil e a Base Nacional Curricular.

O desafio da abordagem com feminismos, gêneros e sexualidades na escola infantil é tecido, nesse sentido, em conexão com as interseccionalidades, artes e o cinema, a partir da Lei nº 13006, 2014, que destacou a obrigatoriedade da exibição de filmes brasileiros nas escolas, garantindo, assim, a possibilidade de intensificar uma proposta de trabalho com cinema na Educação, não apenas por meio de exibição, mas, também de produção coletiva de filmes e cinema na escola.

Que espaço de criação pode ser composto de modo que as experiências entre educadoras e crianças, através da produção de imagens, entre imagens – intervalos – do cinema na escola, faça ver, ouvir, expressar e multiplicar formas curriculares que sonham, partilham devires-femininos, corpos, gêneros e sexualidades em criação?

Por isso, a urgência em evidenciar as tensões relativas aos lugares instituídos de arte, infância, ciência, cinema, gênero, etnia, raça e religiões, abrindo novas composições referentes às feminilidades e masculinidades em devir. Gêneros em dissolução e novas composições. Apostando em múltiplas tessituras feministas, contemporâneas, marginais e queer, com as artes de produção de imagens e bruxarias, podem ser experienciados corpos constituídos por territórios abertos às experimentações com outros corpos, a natureza: o cuidado de si e do coletivo, das plantas, dos animais, das cores, dos objetos, das máquinas, dos brinquedos e das músicas… cartografando linhas cosmológicas como novas formas poéticas e trans feministas de vidas na educação.

No presente artigo, nos centramos na temática das bruxarias que atravessou todo o processo como método-forma de trabalhar com as questões de gêneros e feminismos na pesquisa de campo com crianças pequenas, durante produção de imagens na escola de Educação Infantil. Do total de 30 atividades realizadas no período, 11 aconteceram no ano de 2021 e 13 no ano de 2022. As outras atividades, 2 em 2021 e 4 em 2022, variaram entre passeios fora da escola e/ou atividadesextra dentro da própria escola como por exemplo, reunião de pais e professoras. Contudo, destacaremos somente algumas oficinas que avaliamos mais pertinentes para o referido propósito, a saber, as atividades que foram realizadas nos cinco primeiros meses da pesquisa. As oficinas aconteciam uma vez por semana, em uma sala de aula com crianças entre dois a cinco anos de idade, durante quatro horas, no período da tarde. Como esse primeiro ano (2021) ainda estávamos em situação de pandemia e pós-pandemia, havia revezamento de crianças e a sala que contava com 20 crianças, passou a receber de sete a no máximo dez crianças, no máximo, por dia.

Assim, durante o período de um ano (2021-2022), foram realizadas 30 oficinas de produção de imagens com crianças, uma professora, a autora do artigo e demais educadoras, que participaram do Projeto de Pesquisa de Cinema na Escola e prosseguiram, atuantes no Cineclube Regente/Cha. Algumas oficinas foram realizadas a partir de temáticas que se estendiam por um, dois ou três encontros e outras durante pequenas intervenções no próprio cotidiano escolar. No total, registramos 15 oficinas temáticas (femininas-feministas) e 09 atividades, realizadas conforme imersão no cotidiano escolar. Ambas se atravessavam mutuamente, afetadas pelos efeitos que produziam entre si e nos corpos-espaços-território das imagens. Neste artigo, abordamos algumas oficinas que aconteceram entre os meses de agosto, setembro e outubro de 2021 – contação de histórias, cotidiano escolar, performance e plantio de mudas de agapanto: 1ª) histórias – “Eu sou a monstra: Hilda Hilst para crionças”; adaptação da “Ilíada” para crianças; 2ª) conversações emergentes a partir das histórias e também do tema das navegações – invasão em Pindorama/Brasil e imigração Haiti-Brasil, (considerando que há crianças haitianas na escola), desenhos, performances e plantio de mudas de agapanto.

 

4. Bruxarias com plantas bichos e experimentos

    As infâncias nas artes, ciencias e gêneros 

 

A literatura em torno do conceito de bruxaria é extensa, compreendendo-a presente em tradições que relacionam culturas diferentes, religiosidades politeístas – e gêneros – com seus saberes da natureza, medicinais, populares, sociais, por exemplo, o eco-feminismo, e demais práticas relacionadas ao trabalho coletivo e feminino realizado no campo, nas casas e comunidades (Federici, 2004; Guizburg, 1989, Gardaner, 2005) e também a literatura feminista afrolatinoamericana) – as, muitas vezes, precárias condições de vida de trabalhadoras/es rurais, dos povos escravizadas/os e/ou em situação de exploração de trabalho em diferentes tempos históricos e países do Sul Global. Houve, também, o problema da demonização da figura dos hereges e das bruxas/es pelos tribunais inquisitoriais. Estas últimas, associadas ao mito de Lilith (e/ou da primeira Eva), banida da história e da religião (novo testamento), condenada por sua relação com o demônio e o cultivo do sabá, pelo simples fato de não aceitar viver sua sexualidade com Adão a não ser para reprodução. Lilith foge de Adão e do paraíso para poder viver o prazer e uma vida nômade, peregrinando mundo afora. Seu “castigo” teria sido o esquecimento da história e religião oficiais (Telles, 2008, 2021). Mas, caberá, agora, a cada um/a de nós, corpos habitados por femininos em criação, e/ou, a essa nova geração de bruxes, compor novas histórias e corpos, rompendo com binarismos e heterossexismos das imagens, e religiões, reinventando também diferentes finais para o “destino” dessa instigante figura, nossa Eva ancestral. Assim o confronto com os textos apócrifos, que também “emergiram no processo de surgimento dos cristianismos originários, mas que, por razões teológicas, não receberam o beneplácito de texto canônico” (Reimer, 2022, p. 15-16), ainda que constituem desejos e posições religiosas comunitárias – Cristianismo primitivo – nos tempos originários; a própria seleção para propagação de posições teológicas de longa duração, no referido período, evidencia jogos e forças nas relações de poder no coração desse movimento múltiplo.

De forma indireta, problematizando, ao mesmo tempo, a supremacia colonial das religiosidades judaico-cristãs e protestantes e vislumbrando no Paganismo, no Cristianismo Primitivo, nas expressões africanas de Orixás, nas bruxarias filosóficas, artístico-literárias e nas cosmogonias dos povos originários, outras possibilidades de cuidado, saúde, vida, amor e produção de conhecimentos e saberes. Em uma clara conexão entre monocultura-monogamia-monoteísmo em tensionamento com policultura-poligamia-politeísmo, as pensadoras feministas Vandana Shiva (2003) e Geni Nuñez (2022) realizam uma série de críticas ao sistema neoliberal, ao esgotamento dos territórios naturais e ao contexto das dicotomias universal/local, relativos à supremacia da colonização intelectual que continua a se propagar e a perpetuar entre tantos outros problemas: massacres e violências, a crise ambiental.

O Paganismo é uma expressão latina que procede de paganus, “camponês”, “rústico”, pessoa que vive no campo e/ou próxima à natureza, derivado de pagus, aldeia; remete às antigas tradições de cultos politeístas – crença em vários deuses/deusas com personalidades diferentes entre si e associadas aos elementos da natureza; e animistas (alma, vida, animus e anima) – cosmovisão em que seres não humanos, como animais, plantas, objetos inanimados ou fenômenos, têm uma essência espiritual (energia vital que se expressa no corpo físico), composição de saberes de diferentes povos indígenas em suas mitologias e rituais. Ambas as tradições se caracterizam pela variabilidade viva dos mitos e não pelo proselitismo, ou seja, tentativa de convencimento e instrução (imposição de dogmas e crenças). Implica a mitologia greco-romana, assim como as tradições na Europa e região norte da África antes da cristianização, assim como as posteriores correntes locais ou rurais que não são estruturadas como religiões (politeísmo histórico – celta e nórdico) – Neopaganismo. Etnólogos evitam o termo “paganismo” pela variabilidade de significados, optando por sentidos mais específicos, tais como o animismo e o politeísmo (já mencionados), o xamanismo (medicina natural e/ou práticas de cuidado e cura, magias e filosofias (metafísicas), implicando, invocação, transe, transmutação entre corpos e espíritos de outros xamãs, de criaturas sagradas, animais e mortos. Criação de ritual de canto e dança para invocação e conexão com o sagrado e o êxtase) e o panteísmo (do grego, παν, pan – tudo e θεός, theos – deus; ou seja, tudo é sagrado porque é constitutivo de Deus (filosofia de Spinoza, poesia de Alberto Caeiro – Fernando Pessoa) todas as coisas e forças do cosmos são a imanência de Deus como totalidade; muito diferente da ideia de Deus monoteísta, pessoal e criador universal.

O Neopaganismo e/ou paganismo contemporâneo, marca a proliferação de uma série de leituras singulares do paganismo que busca integrar as religiões indígenas da antiga Bretanha e da Europa, marcada pela devoção à natureza, ciclos agrícolas, estações, sabbats, politeísmo e o uso da magia ritual (Pearson, 2005),  por exemplo a Wicca (gardneriana, alexandrina, feminista) na Inglaterra, desde 1940 (Gerald Gardner, Margaret Murray, Patrícia Crowther, Doreen Valiente, Alex e Maxine Sanders), helenismo, heathesimo, reconstrucionismo celta, o culto do Deus de Chifres, tradições germânicas (no Brasil, pomeranas) espiritualidade da Deusa, bruxarias, druidismo e feminismos (Zsuzsanna Budapest, Miriam Simos). Neste sentido, as linhagens vão se especificando, algumas mais ligadas à celebração da natureza (espiritualidade, esoterismo), outras às questões ambientais e ecológicas (eco-feminismo), algumas mais literárias, românticas, musicais e/ou folclóricas. Segundo a hipótese da pesquisadora brasileira Karina Oliveira Bezerra (2019), as religiões pagãs criam realidades idealizadas – desde a Idade Média, povos antigos e pré-históricos, por meio de um corpus magia ritual (recurso), simbólica (processo) e participativa (produção de realidade – mitos); esta última vai distinguir as diferentes linhagens pagãs, através das diferentes culturas, localidades, contextos e praticantes. Há o polêmico processo inquisitorial envolvendo os múltiplos casos considerados de bruxarias, heresias, “Malleus Maleficarum” etc. e, nesse sentido, também uma extensa pesquisa bibliográfica na área, com suas variações e especificidades no Brasil e no mundo. De qualquer forma, os femininos, nos diferentes corpos e a relação com os saberes conhecimentos e crenças animistas, politeístas, panteístas etc. levados pela dominação e violência cultural, colonização, imposição religiosa que resultou nos julgamentos e sentenças de inúmeros e as mais variadas formas dos processos inquisitoriais (Cunha, Junqueira, 2019; Herzig, 2023).

Foucault (1969, 1976) vai abordar a temática das bruxarias relacionadas a uma perspectiva da medicina, a partir de uma mirada histórica e social, reconhecendo que envolve um amplo conjunto de saberes e ciências presentificadas nas esferas populares, por várias pessoas, especialmente por mulheres consideradas bruxas e/ou feiticeiras que se tornarão alvo de ataques por parte dos sujeitos que dominam os conhecimentos científicos do Século XIX, médicos, padres e juízes. Os saberes da medicina natural, “popular”, de campesinas/os, dos povos originários, de xamãs, pajés etc. se tornaram, nesse sentido, campos a serem perseguidos e considerados desclassificados por aqueles que operam os poderes instituídos sobre os corpos que classificam como doentes, “loucos” e medicalizados. “A medicina do Século XIX acreditava ter estabelecido o que poderia ser chamado de normas da patologia” (Foucault, 1969, p.122) e não tardará, desse modo, a produzir discursos em que a loucura se transforma na herdeira, no nível da natureza, de todo mundo mágico que caracterizava as antigas – e uma variedade das experiências atuais – religiosas.

 

Imagens tecidas coletivamente durante as oficinas[12].

 

 

Fonte: arquivo das pesquisadoras e do Cineclube Regente/Cha.

 

As plantas, os animais, as paisagens nomeando gêneros e sexualidades a partir das experiências com a natureza – ecofeminismos[13] – E as imagens sonoras, táteis e visuais e não unicamente segundo princípios normativos. A legislação na Educação pode funcionar de modo a reproduzir e/ou ampliar o dado? Mas, também, como silenciadora de corpos e histórias colonizadas? De que modo ela pode orientar a criação das atividades pedagógicas cotidianas em diálogo com a proposta do Cineclube na escola? As bruxarias em suas séries de ações realizadas nas oficinas, foram sendo tecidas a partir de figuras literárias como a Monstra de Hilda Hilst, Lilith, a outra versão de Eva, Safo, Helena, Tituba, a bruxa negra de Salém (Condé, 2024), das fadas e feiticeiras na obra de Zimmer Bradley (1987, 1989), além das experiências compartilhadas através dos saberes e livros das mulheres indígenas acerca da relação dos femininos com as plantas, a terra, o território, os animais, a comunidade. Ao mesmo tempo, as bruxarias também estavam vinculadas a algumas experiências, saberes e efeitos das histórias de vida relacionadas à cultura rural, da professora da sala e também da história da pesquisadora. Os múltiplos sentidos que as bruxarias foram ganhando em diferentes campos, culturas, filosofias também foram considerados na busca de trabalhar com as diferenças nos âmbitos de gêneros, etnia, raça, LGBTQIAPN+ etc.

A preparação da oficina de cinema, aliada à contação de história e produção audiovisual, se organizou a partir de cartas trocadas com a professora da sala, seguindo algumas pistas envolvendo o mito da Ilíada: autoria incerta atribuída a Homero, produção popular e coletiva como traço marcante de culturas e sociedades orais do período, leitura de um estudioso e pesquisador moderno – Joaquim Brasil Fontes – que a partir da tradução da poeta arcaica Safo de Lesbos, nos brinda com uma singular leitura erótica da épica e polêmica guerra de Tróia. Consideramos, também, a referência do filme Tróia (2004)[14], uma das sete produções cinematográficas inspiradas no mito e também, segundo a leitura de uma versão latina, em língua espanhola, La Ilíada, de Homero, escrita pelo cubano José Martí (2006).

Nesse sentido, também selecionamos imagens de livros de mitologia escritos em prosa[15], mas repleto de imagens, de modo que elas, mais do que as palavras, pudessem oferecer alguns elementos marcantes que também contassem a história à sua maneira.

A partir do referido cenário e material a história foi contada para as crianças pequenas que participaram ativamente do processo. Elas foram convidadas a performar a saga de gregos e troianos no parque da escola, ressignificando os próprios brinquedos dispostos: um grande balanço que remete a um barco, a terra-areia abaixo dele que se transformava em água e mar, lunetas e binóculos daquelas outras crianças que, em terra, acompanhavam a fuga-perseguição dos troianos pelos gregos. Assim, o enfoque nas personagens e em suas performances de gêneros em diluição e transmutação, as marcas ‘femininas’ e ‘masculinas’ plurais se enunciavam pelas encenações e imagens das câmeras que foram alocadas dentro do balanço e nas laterais; imagens de fotografias e vídeos produzidos por crianças, professora e a pesquisadora.

As mesas experimentais transitavam de espaços, locais, objetos, gêneros e sexualidades. As mesas se constituíam muito mais pela proposta em conexão com os objetos, configurando-se como espaço suscetível de territorialização e desterritorialização. De experimentação e invenção. Nos referidos espaços foram tecidas as experiências de cinema na escola, buscando com as oficinas traçar cartografias femininas e trans feministas a partir de objetos, máquinas, livros de arte, literatura e histórias que dialogassem com o feminino e o masculino em suas pluralidades criadoras, nos diferentes tempos e idades. Em seguida, foi trazida para a oficina a monstra poética do poema “Eu sou a monstra: Hilda Hilst para crionças”, que tem muito de risível, e de assustadora, mesmo? Somente a possibilidade de se transportar para diferentes corpos, independentemente de sua suposta “origem” biológica. A monstra-protagonista da pequena história em forma de versos, escrita pela poeta campineira é uma “bruxa que fugiu para o mato”, é uma personagem em transição, que rouba o lugar da princesa, com sua magia e subversão poética. A Monstra-bruxa é também, ao mesmo tempo, louca, animalesca (“gorda como uma porca, fina como uma lombriga”), mas também pode ser planta (roseira) e/ou objeto, sucata. É uma personagem muito divertida e engraçada. Monstra, bruxa e os femininos em criação?  Ao mesmo tempo, é também cientista porque é astronauta… E o final é ótimo: a tal criatura monstra-bruxa tem um segredo…. É que ela gosta tanto de seu amigo… Como gosta dos próprios dedos, responsáveis por sua arte criadora, a escrita de palavras e desenhos presentes no livro. E um maldito sapo, que não parava de berrar lá do lago. Mas, o que seria da tal mostrenga “de mãos amputadas”? E… é assim que somos levades a pensar…  Que seu tudo não era o príncipe-sapo, mas os dedos… Sem os dedos, como poderia sobreviver? Sem bater nas teclas e segurar canetas? Numa encantadora sugestão a brincadeira das crianças com as máquinas de filmar e fotografar sem as quais…. O que seria delas? Já que com as máquinas desenham corpos, escrevem imagens e poemas, performam criaturas e criam mundos outres…!?

Outra história escolhida para compartilhar com as crianças foi a Ilíada, que havia sido a inspiração para a troca de cartas (já citada). A famosa personagem de Helena no mito e/ou no filme Tróia, conhecida como a criatura mais bela do mundo, poderia habitar também diferentes corpos de meninos e meninas durante as performances das oficinas de cinema na escola? O destaque era marcado pela variedade de femininos em criação com as personagens e as crianças… Quem deseja ser a Helena? – Nino[16] responde: – eeeuuu! Outra menina retruca: – mas não pode ser menino, tem que ser menina… Lila, você será a Helena. E a Lila responde: – eu não!!! A personagem Helena, a irreverente que supostamente teria mobilizado uma guerra, muito mais por amor do que por territórios e honrarias? Agora, na escola, estaria livre, experimentando a fuga, solta para habitar, navegar e rodopiar com os corpos e as vozes das infâncias. E as infâncias viajando por tempos e personagens arcaicos, ancestrais e mitológicos… O personagem Páris apresentado com seus traços ‘femininos’ e transgressores… um príncipe que não tinha nada de guerreiro, herói ou mocinho; personagem masculino que rompe com o padrão de masculinidade estabelecido; seu encanto se encontra justamente na coragem para transgressão, se é que podemos dizer assim, com relação a uma época remota, da lógica binária dos poderes vigentes naquela cultura[17].

 

5. Considerações Finais

 

O cinema na escola vem se tornando uma prática cada vez mais presente no cotidiano das instituições de ensino e projetos socioculturais, amparado pela Lei nº 13006, 2014, conforme já referimos acima. No contexto latinoamericano, da mesma forma, vem se ampliando o trabalho com a produção de imagens e filmes na Educação e também no próprio campo da arte cinematográfica. Nesse cenário, o município de Campinas é pioneiro dada as inúmeras iniciativas materializadas, por exemplo, na Criação do Programa Cinema e Educação: experiência do cinema na escola de Educação Básica (2015), a partir da conexão que envolve instituições de Ensino Público da cidade, desde o Infantil, Fundamental e EJA, a Prefeitura Municipal de Campinas, por meio da Secretaria de Educação, até a Universidade Estadual de Campinas, através da atuação da Faculdade de Educação, por seus grupos de pesquisa, destacando-se o Laboratório de Estudos Audiovisuais, OLHO e o grupo de pesquisa Transversal, ambos vinculados às teorias da Filosofia da Diferença.

A pesquisa mostra-se desafiadora em um cenário educacional que apresenta oscilação e retrocessos com relação à abordagem da temática de corpos, gêneros e sexualidades no currículo e no cotidiano das instituições. Também é uma aposta na abordagem acerca de gêneros, femininos e feministas, desde a Educação Infantil através do trabalho com o cinema na escola, no sentido da escuta e visualização nos diferentes âmbitos da vida e formação, bem como para metodologia inaugural nos contextos de pesquisa e atuação profissional, nas áreas de Educação, Filosofia e Psicologia, sempre em diálogo com as artes.

De acordo com Nelson Job (2020), as bruxarias deleuzianas podem ser compreendidas como uma “Filosofia do Fogo” que funciona como uma espécie de chama que atravessa os transaberes de uma linhagem maldita da filosofia em um campo conceitual e experimental, culminando em uma ética que se move por uma liberdade precisa que o escritor Hakim Bey vai nomear de “Zonas autônomas temporárias” que incidem como um acordo cósmico possível nas relações mundo-saberes. Pensar como mergulhar no caos e seguir as linhas calorosas do fogo, saltar com as linhas de fuga no vôo da bruxa. Experimentar os acontecimentos de cotidianos no cinema-escola como o Nagual de Don Juan em Carlos Castaneda, com atenção às visualidades e sonoridades das imagens-mundo em tonal (perceptível) e em nagual (mundo sutil) que ressoa no campo sensório-motor Bergsoniano em seu atual presente como temo misto e o virtual como passado que se conserva e se desdobra em imagens-tempo, brilhante-cristal. A bruxaria Deleuziana é rizomática, não dualista; se constitui como ciclos de forças energéticas, temporárias e vibrantes que permitem as criações desde as águas do caos, relacionando os saberes dos povos originários, orientais (chineses e indianos) de meditação-experimentação como ampliação da vida; indícios de uma ciência nômade, de uma ciência e de uma educação menor, sempre em gestação e em intensa ressonância com a magia da Filosofia, da Ciência e da Arte.

 

Bibliografía

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  12. FOUCAULT, Michel.Dits Ecrits, vol. III, texto nº 175. Bruxaria e loucura (entrevista com R. Jaccard), Le Monde, no 9720, 23 de abril de 1976, p. 18. (Sobre T. Szasz, Fabricating Madness, Paris, Payot, 1976.)
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  20. KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
  21. LEITE, César Donizetti Pereira. Por entre linhas e experimentações estéticas com cotidianos escolares. (p.1-12). Revista Espaço Estudo do Círculo. João Pessoa, v. 16, n.3, set./dez. 2023.
  22. LONGHINI NÚÑEZ, Geni Daniela. Nhande ayvu é da cor da terra: perspectivas indígenas guarani sobre etnogenocídio, raça, etnia e branquitude. Tese de doutorado. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2022.
  23. MALABOU, Catherine. Ontologia do acidente : ensaio sobre a plasticidade destrutiva. Trad. Fernando Scheibe. Desterro [Florianópolis] : Cultura e Barbárie, 2014.
  24. MARTÍ, José. “La Ilíada, de Homero”. La Edad de Oro. La Habana, Cuba: Fondo Cultural del ALBA, 2006, pp. 39-54.
  25. OLIVEIRA JR. Wenceslao Machado (Orgs.) et al. Cadernos de dispositivos de cinema na educação infantil / Projeto “Lugar-escola e cinema: afetos e metamorfoses mútuas”. Campinas, SP: Secretaria Municipal de Educação; Programa Cinema e Educação, 2022. Disponível em: https://educa.campinas.sp.gov.br/sites/educa.campinas.sp.gov.br/files/2022-05/EBOOK_Cadernos%20de%20dispositivos%20de%20cinema%20na%20EI_Folhas%20Individuais.pdf (Acesso: 13/05/24).
  26. OLIVEIRA Wenceslao Machado. Imagens desabam sobre paisagens – Acidente e espaço acidental no cinema de Cao Guimarães. In: Intervalos entre geografias e cinemas. Portugal: Universidade do Minho, 2015.
  27. PERSON, Joanne. Wicca. In: JONES, Lindsay. (org). Encyclopedia of religion, 2ª ed. v. 14. Thomson Galle (2005), p. 9728-9732. Trad. Fábio L. Stern.
  28. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Entre América e Abya Yala – tensões de territorialidades. Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 20, p. 25-30, jul./dez. 2009. Paraná. Editora UFPR.
  29. PRECIADO, Paul B. Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
  30. SILVA, Roberta Alexandrina; FUNARI, Pedro Paulo Abreu; CARLAN, Claudio Umpierre (org.). Mulheres no Cristianismo Primitivo: poderosas e inspiradoras. São Paulo: Fonte Editorial, 2022. (p.9-35).
  31. TELLES, N. De bruxas e feiticeiras (p.77-89). In: RAGO, M.; A FUNARI, P.P. Subjetividades antigas e modernas. São Paulo: Anna Blume, 2008.
  32. WOSNIAK, Cristiane. O espaço-performance e o espaço-qualquer: reflexões sobre a imagem-afecção em biografia audiovisual dançante. In: Tríade, Sorocaba, SP, v. 6, n.13, p.4-22, dez. 2018.

 

 

 

Notas

[1] Estas oficinas e experimentações fazem parte da pesquisa de doutorado Cinema-escola e as cartografias do feminino, com apoio da FAPESP, processo nº 2020/14341-8.
[2]Cf. Filmes: canal do Cineclube Regente/Cha: https://www.youtube.com/@ceiregentefeijoeceichailsu621
[3] Abya Yala constitui não só a designação da ampla extensão territorial como sociológica (Cusicanqui, 2010, Barbosa, 2021) e (inter)cultural (Walsh, 2019), tecida pelos próprios povos originários que nela viveram (Krenak, 2022; Nuñez, 2022) por resistirem ainda vivem, a partir de seus conhecimentos ancestrais e lutas descolonizadoras e não como fruto do processo de colonização e/ou neocolonização europeia e americana. Foram os colonizadores que nomearam o território de América Latina – que significa “terra em amadurecimento”; “terra de sangue vital” (Barbosa, 2021) e/ou terra em florescimento (Walter 2009 apud Nuñez 2022, p.20) – aos países de Guatemala, Bolívia, Peru, México, Equador e Paraguai, assim como em certas regiões do Chile (no Sul, onde vivem araucanos/mapuches), da Argentina (Chaco norteño) e da Amazônia (brasileira, peruana, colombiana e venezuelana). Há também a designação de América Criolla, destacando aspectos políticos das misturas entre povos. E, outros nomes também foram reportados as estas diferentes regiões como Pindorama, Tawantinsuyu, Anauhuac (Porto-Gonçalves, 2009, p. 26), buscando tecer um comum entre eles, a união e o pertencimento dos povos subalternizados. Esse conceito mais amplo de Abya Yala vem contribuindo também para a emergência das teorias do feminismo contemporâneo (hooks, 2019; Hollanda, 2019). Nesta perspectiva, o feminismo na América Latina (Barrancos, 2022) é tecido de forma plural, a partir das realidades vividas em cada comunidade corpo-território (GUZMÁN; PAREDES, 2014), e não como a reprodução de conceitos dos feminismos europeus e suas lutas particulares. Ainda que possam dialogar entre si, destacando suas especificidades e problematizações. Ao mesmo tempo, funcionando como modo de integração das lutas em seus territórios a resistência das mulheres indígenas, do feminismo negro (Ribeiro, 2018; Kilomba, 2019) trans (Moira, 2022; Preciado 2022) do eco-feminismo (REA, 2019) etc., fazendo frente crítica as teorias coloniais dentro do feminismo ao tecer perspectivas criadoras afro-ameríndias, de acordo com as relações em seus territórios e a constituição mútua humano-natureza.
[4] Cf. SEGATO, Rita Laura [et al.] coord. “La norma y el sexo. Frente estatal, patriarcado, desposesión, colonialidad” (p.31-64). In: Genealogías críticas de la colonialidad en América Latina, África, Oriente. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; IDAES, 2016.  REA, Aurora Isabel Macias. Ecofeminismos: prácticas, discursos y experiencias en torno a las alternativas menstruales, desde el Área Metropolitana de Guadalajara, pp.106-134. Tesis. Centro Universitario de Ciencias Económico Administrativas. Zapapon, Jalisco, México, 2019. REA, Caterina Alessandra. Redefinindo as fronteiras do póscolonial. O feminismo cigano no século XXI. Estudos Feministas, Florianópolis, 25(1), janeiro-abril/2017, pp. 31-50. PAREDES, J.C.: GUZMÁN, A., A. El tejido de la rebeldía. ¿Qué es el feminismo comunitario? La Paz: Moreno Artes Gráficas, 2014. MOIRA, Amara [et al]. Vidas trans. Bauru-SP: Altral Cultural, 2022.
[5] De acordo com autores/as, a pesquisa experiência implica não apenas uma leitura, um sobrevoo, decolagem e caminhada por um território, mas também, e, principalmente, nos contatos e afetos com as forças e ações que emergem dela e dos envolvidos com (o grupo) e a constituição plural da pesquisa. Sobrevoar pode se restringir a uma visão parcial das coisas, enquanto que a pesquisa experiência se dedica a se constituir, atravessar e aprender com as forças e as intensidades que elas têm (Barbosa, Oliveira, Silva, Leite, 2019, p. 106).
[6] Pesquisa vinculada ao processo Fapesp 2018/09258-4 O conjunto de materiais do Cineclube Regente/Cha, vinculado ao referido Projeto de Pesquisa e ao Programa de Cinema e Educação, implicou uma extensa produção de artigos, relatórios diários, textos e filmes. Todos os filmes do Cineclube Regente/Cha estão disponíveis em: https://www.youtube.com/@ceiregentefeijoeceichailsu621..
[7] O Projeto de Lei Nº 10577, de 2018, visa preservar a família natural e coibir em âmbitos legais e pragmáticos uma suposta disseminação de ideologia de gênero da educação. Mas, existiria alguma família que não se constituísse a partir do natural desejo de afeto e cuidado? Ademais, o problema, entre outros, político que garantiu a permissividade de uma intervenção jurídica, propagando-se para os âmbitos de ensino, bem como refletindo na constituição de corpos e subjetividades, violências… de um equívoco conceitual a respeito de gêneros e sexualidade. Conceitos elaborados a partir de uma série de lutas e conquistas dos movimentos sociais e de pesquisas nas áreas da biologia, saúde, educação, sociologia, filosofia, psicologia etc. que, inclusive orienta ações nas referidas áreas há muitos anos, buscando garantir os direitos humanos e da natureza, nos diferentes âmbitos da vida, foram desconsideradas.
[8] Cf. Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009. Disponível em: https://normativasconselhos.mec.gov.br/normativa/view/CNE_RES_CNECEBN52009.pdf?query=FAM%C3%8DLIA. Cf. também: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192 (Acesso: 09/05/24).
9 Cf. Resolução nº 2, de 15 de junho de 2012 – Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Ambiental: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rcp002_12.pdf (Acesso: 09/05/24).
10 “Os sonhos não envelhecem”, Flávio Venturini – Clube da Esquina II, Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges -, fragmento de canção que integra a proposta do “Clube da esquina” (1º e 2º álbum, 1972) – famoso encontro de um grupo de jovens amigos músicos que foram se integrando a partir da década de 1960 em Belo Horizonte, Minas Gerais. O grupo acreditava que com a magia da música e seu poder arrebatador poderiam mobilizar a criação de um mundo em transformações, em um período de franco retrocesso com a ditadura militar. Os músicos, compositores e letristas tem figuras como, Milton Nascimento, Toninho Horta, Wagner Tiso, Lô Borges, Beto Guedes e Márcio Borges. Nomear o currículo a partir dessa perspectiva musical é concebe-lo como algo sempre em ato de desconstrução e criação – multiplicidade. Currículo como a força dos “sonhos que não envelhecem”, em meio a tantas disparidades ambientais e populacionais. Conjuração de feitiçarias com o caos. “Passagem de um campo para um plano de composição” (Amorim, 2007, p.16).
11 Joanna Francesa, (filme, 1973, coprodução brasileira-francesa, direção Cacá Diegues e direção musical de Chico Buarque e Roberto Menescal), celebradas nas vozes de Elis Regina, Fagner, Jeanne Moreau e Nara Leão. O filme-canção vai esboçando o feitiço perigoso e sedutor das diferenças. Problematiza a beleza dos trópicos? Faz sonhar e questionar. Até que ponto o currículo poderá navegar nas águas das diferenças históricas coloniais, das imigrações, questionando escravizações, massacres, genocídios humanos e culturais? O amor pelas águas do mar e o desejo livre de navegar… acompanham Joana com as indagações – “Quais possibilidades para habitar, transitar, contemplar, conhecer o mundo abandonando” quem sabe, uma leitura equivocada (ou não) de Platão, que delimita um projeto platônico da comparação, “e conclamar a repetição que produz a diferença, assim como convidar o simulacro e sua potência terrivelmente criativa?” (Andrade, 2007, p. 118).
12 Todas as pessoas responsáveis pelas crianças que aparecem nestas imagens assinaram os termos de permissão de uso de imagem relativos à pesquisa
13 Os ecofeminismos na América Latina se configuram de formas singulares, segundo a realidade de cada corpo-território na relação com as múltiplas comunidades e culturas que vem sofrendo com a massiva deterioração ecológica e opressão dos corpos e subjetividades femininas e de todes os corpos dissidentes. As lutas encontram-se conectadas pela busca do cuidado com a natureza e as diferentes culturas e povos, historicamente escravizados e/ou violentados pelo processo colonial e de expansão do capitalismo (Rea, 2019). Neste sentido, os corpos femininos e dissidentes foram, e, continuam a ser, em grande medida, desintegrados e assassinados. Da fogueira, enforcamento, internação, assassinato até as demolições das casas das bruxas, mulheres que detinham conhecimentos das plantas medicinais, até a criminalização, patologização e violência contra os corpos dissidentes que, apesar das conquistas graduais no âmbito jurídico, continuam a ser perseguidos, discriminados, excluídos e violentados/as.
14 Tróia é um filme é uma coprodução do Reino Unido, Malta e EUA (2004), dirigido por Wolfgang Petersen, roteiro de David Benioff, uma verdadeira adaptação do clássico poema épico de Homero, Ilíada, os habitantes de Ílion, Tróia. A autoria da história é atribuída ao poeta grego, entretanto, há controvérsias segundo os estudiosos, considerando que a guerra que durou cerca de 10 anos para alguns, 30 anos para outros…  haveria se passado em um tempo ancestral, de cultura oral e produção coletiva. Pesquisas arqueológicas recentes apontam que o mito certamente tem suas raízes em solos e múltiplas camadas geológicas de acontecimentos reais ao longo do tempo; foram eligidas e demolidas aproximadamente cinco Troias. Aquela que podemos encontrar na Ilíada parece referir-se à quinta cidade monumental do mediterrâneo.
15  Os nomes das crianças que aparecem no texto são fictícios.
16 Cf. Filmes produzidos, a partir dessa oficina, para participar de dois eventos, um acadêmico e outro de Cinema: 1) Conexões /Unicamp (2024; https://www.youtube.com/watch?v=jNcIfGXeGqA; 2) Festival 3ª Mostra CineMarias: https://www.youtube.com/watch?v=k9wSX0U3KwA&feature=youtu.be