Pensar junto à arte

Home Dossier en Portugués Pensar junto à arte
Pensar junto à arte

­

para Orl van Landi

“(…) há sensações de conceitos e conceitos de
sensações”
Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?

Desde os anos 1980 a obra de Deleuze vem paulatinamente pautando os escritos no campo da arte. Inspira desde artistas consagrados até grupos de garotos em bandas de garagem, passando pelo campo da moda ou dos grafiteiros, nas artes de rua. Não é preciso contar o número de companhias de teatro e bandas de rock, obras artísticas quaisquer, que se valem da terminologia deleuzeana, lançando mão de termos como rizoma, nomadismo, imanência, território, desterritorialização, ritornelo, diferença ou, ainda, o consagrado “corpo sem órgãos” – criado por Antonin Artaud e recuperado nos escritos de Deleuze e Guattari. A filosofia e o modo de escrever de Deleuze, o estilo inconfundível de sua máquina de inventar conceitos, acabou gerando um número suficiente de termos para alimentar, por um bom tempo, o imaginário de artistas jovens ou experientes.

3.1

Mas o interessante é que muitas vezes tais termos vieram da própria arte, como no caso citado de Artaud, tresloucando conceitos que vinham lentamente fazendo sua história na filosofia. Assim, se por um lado os artistas, no contemporâneo, passaram a se alimentar dos conceitos de Deleuze, por outro, é preciso notar que esses mesmos conceitos vieram muitas vezes do campo da arte. Muitos deles foram “roubados” por Deleuze de artistas e escritores: devidamente roubados e transformados, torcidos, até o ponto de se tornarem conceitos filosóficos. Como ele mesmo dizia, é preciso que um conceito nasça de um encontro, forçado por uma necessidade que irrompe, por exemplo, no encontro da filosofia com a arte ou a filosofia com a literatura – intercessores privilegiados no caso de Deleuze:

“O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores”.[1]

E, muitas vezes, nessas idas e vindas – entre a filosofia e a arte – o que acaba ocorrendo é uma espécie de curto-circuito. E é assim que, quando Deleuze se refere ao conceito de “figura”, no ensaio dedicado ao pintor Francis Bacon,[2] o percurso feito pelo termo não é mais aquele linear que viria da história da filosofia, mas é outro; “figura” em Deleuze é simplesmente a figura que abre o campo para o que ele definirá como o “figural” (em oposição ao figurativo, das artes representativas), ou seja: não mais figura de linguagem ou figura retórica. Figura é imagem, não só aquilo que vejo, que percebo, que vivo (não apenas o que se representa ou se mimetiza), mas aquilo que invento, que imagino, que fabulo e que isolo. E ainda: “figura” vem do uso corriqueiro, não menos importante, que dava o pintor Francis Bacon a este termo – assim como para o próprio Bacon imagem é simplesmente imagem, “pintar imagens”. Em Bacon, “figura” é também uma estratégia pictórica de isolar uma mancha nuançada em meio a um fundo de cor chapada, ou ainda enquadrada em um cubo de linhas.

3.2

Por sua vez, o conceito de imagem, que estará presente sobretudo nos dois livros sobre o cinema,[3] virá ora de filosofia de Bergson, ora da pintura de Francis Bacon (“a ideia de pintar imagens me alegra…”[4]). Mas poderá vir também do pequeno texto L’image de Beckett (“…está feito fiz uma imagem”[5]), quando se trata justamente de definir a singularidade do conceito de imagem na literatura beckettiana, no ensaio a ele dedicado, L’Épuisé. Tal qual a “imagem” ou a “figura”, outros tantos termos passeiam pela obra de Deleuze embaralhando conceitos com simples palavras quase cotidianas, passando assim por um jogo de desfazimento e re-tecitura. É o que se passa, por exemplo, com os nômades: personagens que Deleuze encontrará no escritor J. Marie Le Clézio, em seu romance Désert. Nômades que, ainda, sonoramente confundem-se com as mônadas de Leibniz. Ou com as noções de visível e não-visível que, em Deleuze, são resultado da mistura entre Merleau-Ponty e Paul Klee, até que se chegue na fórmula: “tornar visível o não visível”, em especial no livro sobre Bacon, nas análises que buscarão ir além dos cercados da fenomenologia.

3.3

Poderíamos enumerar ainda outros casos desses trânsitos, provocando curtos-circuitos entre arte e filosofia. Os “personagens-conceituais”:[6] a ideia desses personagens que se autonomizam da cena em que aparecem, nascem da análise que o compositor Olivier Messiaen faz da Sagração da Primavera de Igor Stravinsky; do mesmo modo que espaço e tempo liso ou estriado cruzam-se com as leituras de Pierre Boulez; a ideia de caos vincula de modo inesperado os escritos de Paul Klee à teoria do caos e Ilia Prigogine. Nesses casos, poderíamos notar que não são simplesmente termos que se tornam conceitos, mas sim, que há antes de tudo uma dinâmica que alia Deleuze à arte experimental, um movimento comum, dando-se entre seus conceitos e as propostas artísticas. E Deleuze faz muitas vozes conversarem em seus conceitos, passeando por Marcel Duchamp, Alban Berg, Kafka, Bacon, Berio, Boulez, Paul Klee, Beckett, Olivier Messiaen, Giacometti (que já estivera passeando pela principal obra de Sartre), Le Clézio.[7]

3.4

Pode-se dizer que a obra de Deleuze respira um movimento de ruptura, de afastamentos e reaproximações, não muito distante daquele que exerce a obra de um pintor, um cineasta, um músico, um dramaturgo ou poeta. Como ele mesmo acreditava, a filosofia é uma tarefa tão criadora quanto a arte, possuindo seu próprio conteúdo, os conceitos:

“É simples: a filosofia é uma disciplina tão criadora, tão inventiva quanto qualquer outra disciplina, e ela consiste em criar ou ainda inventar conceitos. E os conceitos não existem prontos em uma espécie de céu no qual eles aguardariam que um filósofo os regatasse. Os conceitos, é preciso fabricá-los.”[8]

E tal fabricação conceitual, como ele afirmou em diversos momentos, passa necessariamente pelo estilo, pelos modos de escrita. Há um movimento dos conceitos que não se separa do movimento da linguagem; o filósofo também procede, assim como o escritor, pela criação de uma língua própria: “Nunca escrevo pensando ‘o estilo verei depois’. Sei que eu não obteria o movimento dos conceitos que eu desejo sem passar pelo estilo”, dizia.[9] Isto porque os conceitos são inseparáveis daquilo que seriam as sensações. Embora a sensação seja o produto privilegiado da arte, dizem Deleuze e Guattari, os conceitos também passam pela sensação, são por ela irrigados: “são inseparáveis dos efeitos potentes que exercem sobre nossa vida”, nossos corpos, além de inspirarem novas maneiras de se apreender o mundo.[10]

Giacometti

Giacometti

Poderíamos dizer que de certo modo um conceito privilegiado no pensamento de Deleuze é aquele do ritornelo. A noção de ritornelo, que adviria da música – da ideia de uma melodia ou figura rítmica que recai sobre si mesma –, ganhará aí uma dimensão de experimentação, em seu pensamento e escrita: o movimento de lançar uma ideia, circundá-la, para em seguida traçar uma escapada em direção a um novo centro. Jogo que aos poucos autonomiza pedaços que não eram concebíveis nos círculos descritos pela primeira figura, fazendo o texto e seu material, sua trama de conceitos, crescerem a partir da dinâmica de ciclos descentrados. Este rodear, portanto, não é apenas o de voltar sempre ao mesmo ponto e recomeçar, como em um tempo circular (sugerido na noção comum de ritornelo na partitura musical). Voltear, nos contornos que o ritornelo ganha em Deleuze, não é voltar. Tal dinâmica do ritornelo se associa facilmente ao do pensamento serial, nas novas propostas da música do século XX.

E, se, de um lado, um conceito como o de ritornelo está atravessado pela dinâmica do pensamento serial da música, aquele das permutações de termos livres, por outro, é inevitável notarmos que esta arte dos rodeios, dos rondelles, também esteja estampada em sua forma de escrever: “o presente é o repetidor, o passado a repetição, mas o futuro é o repetido”. Impossível não sentir em seu estilo a ressonância com a escrita que lança mão das permutações e repetições, na prosa de Charles Péguy, nos romances de Joyce ou Raymond Roussel. Ou ainda, contaminações da prosa poética de Beckett, em seu jogo excessivo de retomadas e rondós: “Encore. Dire encore. Soit dit encore. Tant mal que pis encore. Jusqu’à plus mèche encore. Soit dit plus mèche encore. Dire pour soit dit. Mal dit. Dire désormais pour soit mal dit“.[11]

Raymond Roussel 

Estamos próximos a outro conceito criado na vizinhança com a arte: a gagueira criadora, de que Deleuze se utiliza para se referir à criação de língua efetuada por Beckett, Péguy e Ghérasim Luca.[12] Os grandes escritores e poetas seriam aqueles que são “gagos” da língua, e não da fala; teriam a capacidade de fazer a língua toda gaguejar, sair dos eixos, se deslocar. E o fariam a partir de uma repetição de base, um ato repetitivo inserido na fonte mesma de sua linguagem. A repetição como potência da linguagem não se confunde com a repetição por insuficiência – a deficiência do falante, a incompreensão do ouvinte, o ruído no canal, a falta de comunicação. Trata-se antes de mostrar, como em Ghérasim Luca, a germinação de uma língua a partir de um movimento reiterativo, insistente, que faz das palavras música, ritmo: “je t’aime/ passionnément aimante je/ t’aime je t’aime passionnément/ je t’ai je t’aime passionné né/ je t’aime passionné/ je t’aime passionnément je t’aime/ je t’aime passio passionnément“.[13] Trata-se de fazer do poema, do texto, a vivência deste percurso de autoengendramento corporal (entre o corpo do escrito e o corpo de quem lê), linguístico. A repetição como excesso e jogo livre, no lugar da repetição como falta.

A gagueira em Deleuze parece ser, portanto, uma das estratégias para provocar na língua um abalo que a leve para além da sua função representativa – projeto de uma filosofia da diferença ou da imanência. Aproveitando as palavras de François Zourabichvili, afinal, “a imanência não é algo que se possa afirmar sem se fazer (seria contraditório dar a ela simplesmente uma representação, ela que subverte a ordem da representação por aquela da produção)”.[14] Seria contraditório defender uma prática imanente do pensamento e seguir operando com as palavras como se elas fossem espelhos translúcidos de um pensamento que as antecede e existe na independência delas.

Ghérasim Luca

Ghérasim Luca

Desse modo, é necessário notar que esses rondós na escrita de Deleuze desenham uma poética de escrita antes de tudo não ornamental, e que contorna qualquer modo de funcionalismo autoexplicativo. Uma escrita experimental. Suas frases são à primeira vista inebriantes, melodias para encantar serpentes, quase como que escondendo o assunto do qual tratam, para então deixar que ele salte pontos soltos, fragmentos, como que desfazendo o tempo ansioso de quem procura por uma definição para preparar uma aula acadêmica sobre sua obra: “o que é repetição em Deleuze?”. Desfaz-se sobretudo aqui a linguagem como código, conforme o projeto descrito por ele a partir de suas obras mais autorais, Diferença e repetição e Lógica do sentido, o desejo de: “tratar a escrita como um fluxo, não como um código”.[15]

Desfaz-se todo um aparato da escrita teórica, da escrita linear e assertiva, aquela que se confunde com uma poética ornamentada, que se confunde com um jogo de alegorias. Em Deleuze, muito ao contrário, não há metáforas ou alegorias: “falo literalmente”, como afirma em diversos lugares.[16] A recusa do estilo enquanto ornamentação retórica. Em seus textos encontramos uma louca produção de velocidades e lentidões, como ele e Guattari propunham acerca da literatura. Em alguns momentos, trechos acelerados, em que nossos olhos correm pelas palavras, saltando de uma a outra, perdendo significados e contentando-se apenas com uma atmosfera. Em outros, pode-se embarcar em uma leitura lenta, daquelas que fazem o leitor ir e vir sobre uma mesma frase, que o fazem desfazer e afastar a névoa que o seduziu, acabando por marcar pontos muito precisos ou, como ele dizia, “exatos”: “Não há palavras próprias, tampouco metáforas (todas as metáforas são palavras sujas, ou as criam). Há apenas palavras inexatas para designar alguma coisa exatamente”.[17] Uma aula sobre esta estratégia, estratégia de guerra mesmo, foi realizada por Agamben em sua leitura de “Imanência: uma vida…” (imanência, dois pontos, uma vida, três pontos).[18]

2.15

É o próprio Deleuze quem diz textualmente localizar nas artes a inspiração para uma filosofia da imanência. Ele dirá em Diferença e repetição que é a obra de arte moderna, com suas permutações e estruturas circulares, que indicará “à Filosofia um caminho que conduz ao abandono da representação”.[19] Tais ecos e intercruzamentos entre a arte e a filosofia de Deleuze não são poucos, nem são plenamente mapeáveis, apenas podemos localizar um ou outro ponto sob pena de estarmos tomando o caminho errado. Como a dinâmica do mito que nos descreve Claude Lévi-Strauss, Deleuze trabalha por bricolagens, seus conceitos são de fato pacotes de conceitos não inteiramente localizáveis – e talvez nem seja o caso de uma escavação de fontes e procedências, afinal.

Uma filosofia experimental para uma arte experimental

3.9

Ao longo de todo o século XIX a arte livrou-se das exigências da retórica, do bem falar, do bem cantar. A cor, os objetos, o som, as palavras, tornaram-se como que autônomos daquilo que representavam. No século seguinte, a máquina fotográfica e os alto-falantes constituiriam uma força a mais a este movimento de autonomização. Num movimento de ir e vir, oscilando entre a arte de invenção e os artifícios de entretenimento, deixou os traços que a mantinha atrelada ora à igreja, ora à nobreza, ora à burguesia. Mesmo após estes movimentos serpenteantes, estaria armada a mais recente das armadilhas, a da arte universitária acadêmica, que a cada dia pede mais e mais explicações analíticas e comprometimentos sociológicos, indo da leitura sempre referenciada dos hermeneutas aos catálogos semióticos – e hoje é difícil escapar do guia de museus com seus textos cheios de frases feitas sobre “o último quadro de Van Gogh”.

3.10

Mas, abreviando um pouco este sobrevoo por épocas, o que se tem é que a arte recente retirou de questão o erro e a falta, lançando-se talvez mais a fundo naquilo que Peter Pelbart chamou de “feridas mais sutis”, ou no jogo de “inventar alegrias”.[20] Retirar a falta seria o inverso de pensar com vistas a um original que deva ser representado: concepção que advém sempre que olhando um trabalho de um pintor digo ”mas ainda não está como é de verdade”; ouvindo uma música digo: “mas sua harmonia não está perfeita”; escrevendo um texto me dou conta: “ainda falta alguma coisa para realmente refazer a cena x ou y”; nesses casos, é o domínio da falta, da representação, que está no comando. “A expressão negativa “falta de simetria” não nos deve enganar: ela designa a origem e a positividade do processo causal”.[21]

A partir da falta, a repetição é concebida por insuficiência: insuficiência de determinação, conceitual ou material. Neste lugar, ora é a palavra que não dá conta de representar, ora é a técnica material de reprodução de um original que é insuficiente. Livrando-se da falta, a arte livra-se assim do jugo, seja da natureza e do mundo das imagens visíveis, seja daquele dos antepassados tomados como referências superiores a serem imitadas; a arte livra-se assim de toda uma tradição artística da imitação do mesmo.[22] E é justamente este domínio que artistas como Pollock, John Cage, Duchamp, Matisse, Tarkovski, Joyce, Ligia Clark, Helio Oiticica, escancararam. Este lugar em que não opera mais a falta, aquela que trazia sempre a reboque um ou outro sistema de juízo absoluto.

3.11

Por um lado, podemos dizer que Deleuze diagnostica estes caminhos tomados pela arte do século XX; diagnóstico do “abandono da representação” que, segundo ele, só teria sido possível a partir da sugestão trazida à filosofia pelos artistas modernos, como vimos acima no trecho de Diferença e repetição. E, por outro lado, veríamos que ele de certo modo também se alia a este jogo de expulsar a falta da dinâmica do pensamento. Trata-se sobretudo de conceber o desejo como um excesso (e não como a falta do objeto desejado), o sentido como proliferação indefinida (e não a falta de um sentido verdadeiro, a ser reencontrado), a criação como jogo livre, que explora sobretudo a potência do falso: livrar-se da arte da imitação e adotar a arte do roubo, a arte da falsificação. Livros como Diferença e Repetição e Lógica do sentido dão todo um suporte à esta arte do roubo e da falsificação sutil, que será retomada, mais explicitamente, nos livros que tratam do cinema e em Mil platôs, mas que permeará todo o pensamento de Deleuze, e com Guattari, sobre a arte.

Com Gabriel Tarde, podemos dizer que quando Deleuze fala de repetir o diferente ele retoma a ideia de imitar a invenção, mas imitar a invenção “falsificando-a”. Trata-se da potência do falso ou do simulacro: imitar as forças não formadas da invenção, fazê-la ser a origem de uma (a cada vez) nova invenção, e não mera repetição de formas já fixadas, reconhecíveis. Aqui, a proposta de um ciclo constante de pequenos pontos realimentados, a cada instante refeitos, que deixam de ser a mera imitação do mesmo. O “mesmo” que, pautado da falta, seleciona mortais e imortais, comuns e gênios, e favorece o nascimento de toda forma de juízes da arte (as mais diversas teorias da arte acabam sempre por trazer à baila um sistema de julgamento, julgando inclusive o índice de invenção das mesmas e o mais recente paradoxo: a arte tem de ser de invenção sempre).

Neste ponto, vale uma importante distinção quanto ao arriscado emprego do termo “novo”. O novo, no caso da arte do século XX e, ainda, naquilo que a avizinhamos do pensamento deleuzeano, é todo aquele ato de fazer fugir a arte tradicional, de fazer fugir os mecanismos de regulação, aquela arte que abre a porta ou mesmo a escancara, deixando entrar um pouco de ar puro – a imagem de D. H. Lawrence lembrada por Deleuze e Guattari, na qual o artista é aquele que faz um rasgo no guarda-chuva do senso comum para deixar entrar um pouco de caos: “Então ele [o homem] se torna um poeta, um inimigo da convenção, e faz um furo no guarda-chuva; e oba!, o vislumbre do caos é uma visão, uma janela para o sol”.[23] Algo muito distinto de uma arte da “novidade”, própria à avidez de um mercado mais e mais totalitário e disseminado que pede formas novas e prontas todos os dias. No polo oposto do que chamaríamos de um “novo mercadológico”, sensacionalista, publicitário, surge esta arte de novidades mais sutis, irrupções, nem sempre identificáveis enquanto “novas”. Trata-se, nessa arte experimental de que Deleuze se aproxima, de uma arte de abrir portas, deixando vazar incessantemente aquilo que Deleuze, via Bergson, chamou de virtual ou de futuro. Dar forma a uma força sem que com isto ela perca o infinito das conexões que atravessam toda matéria formada ou não formada.

3.13

Quando afirmamos que falar do novo não é falar da novidade, daquilo que se distingue do que veio antes por antinomia ou por desenvolvimento, por desdobramento, numa sequência evolutiva ou transformadora, o novo precisaria ser novamente localizado. E é via Tarde e Deleuze que podemos pensar a arte de invenção enquanto esta repetição do ato inventivo. Não se trata de ir de uma matéria formada à outra, de contrapor ideias formadas, de oferecer novas formas acabadas e prontas (já digeridas) ao consumo, ou de criar linhas hereditárias. A arte sempre se deu mal com as linhas hereditárias. Os livros de arte insistem em correntes, em percursos, em linhas genealógicas da arte. Matisse duramente saindo de Cézanne, Klee tendo de advir de Klimt, Boulez nascendo das aulas de Messiaen. Tudo como se nenhum outro cruzamento estivesse se dando no mesmo momento, pervertendo a linha reta, a linearidade causal das relações de “influências”. Por isto talvez uma imagem como a de rizoma, trabalhada em Mil platôs por Deleuze e Guattari, encontremos uma dinâmica mais condizente com o tipo de misturas e cruzamentos que constituem uma obra de invenção. Aqui, mais uma inspiração vinda da arte na criação de um conceito filosófico, na imagem sugerida por Boulez e acatada por Deleuze e Guattari para pensar o rizoma e fazê-lo: “Você a joga em um certo terreno e, bruscamente, ela se põe a proliferar como erva daninha”.[24]

Pierre Boulez

Pierre Boulez

Não se trata apenas de simples proliferação, mas de cruzamentos, uma erva também se cruza com outros pontos e outros fragmentos de ervas. E a arte moderna faz, assim como Deleuze com seus conceitos, explodir toda linha evolutiva. Se uma ou outra teoria da arte teima em refazer uma linha evolutiva, sempre haverá um artista para contradizê-la, uma imagem para desfazê-la – como por exemplo aquela do “Jardim dos caminhos que se bifurcam” de Borges, em que a leitura do livro, bem como a leitura da tradição literária, segue antes o ziguezaguear dentro de um labirinto, do que um caminho hierárquico e em linha reta: “Pensei num labirinto de labirintos, num sinuoso labirinto crescente que abarcasse o passado e o futuro e que envolvesse, de algum modo, os astros”.[25] Para Borges, o tempo (e portanto a história literária) seria um grande presente, um espaço de convivência das épocas cronologicamente as mais distantes. De modo que cada escritor refaz para si a história e cria seus “precursores”, como dirá acerca de Kafka, em um caminho de rearranjos da tradição em vista do presente, numa desmontagem das relações causais e evolutivas.

Pois não se trata de um novo na forma, mas na série de base, no código generativo. Não se trata de toda uma forma que muda, mas de um pingo, um ponto perdido, um risco que ninguém viu muito bem, de uma sonoridade, um acorde, um gesto pequeno (ou grande) mas quase invisível. E sua ressonância não se dará na forma do pastiche, nem quando se acredita fazer pastiche, mas na forma transiente de um ponto irreconhecível. Neste sentido diversos dos manifestos artísticos do séc. XX cantam o transitório, sobretudo depois da década de 1950. O modernismo ainda acreditava em um futuro modernista, em uma arte para os próximos cem anos como reafirmava o compositor Arnold Schoenberg. Quando falamos de Deleuze e a arte estamos falando sem dúvida de seus movimentos mais radicais do pós-guerra: Fluxus.

Daí que diríamos que Deleuze relaciona-se com a arte como uma espécie de aliado da invenção, aliado desta arte que chamamos de experimental, ou mesmo de uma arte outra que ainda não imaginamos, e menos por um projeto estético. Talvez valha então voltarmo-nos para Deleuze e alguns de seus conceitos, tentando viajar por dentro dos conceitos, lembrando aqui do “viaggio al centro del suono” proposto pelo compositor Giacinto Scelsi quando realizava composições com uma só nota. Scelsi imaginava que o som teria um centro e bordas borradas, e que ele realizaria uma música que fosse como que alguém narrando uma viagem ao centro do som. E é neste sentido concreto que podemos falar dos conceitos da filosofia de Deleuze: eles são concretos, não estão no lugar de outra coisa, não estão representando um pensamento ou uma ideia, são a própria ideia sendo experimentada enquanto conectora: o que um conceito conecta? E é aqui que os vemos tramando conexões ora com a arte, ora com a própria filosofia, ora com a ciência. Deleuze retira imagens, conceitos, sonoridades, da arte e as lança no seu campo de experimentações. Se há um risco neste laboratório é aquele de, ao se ler Deleuze, não se atentar para as novas malhas de relações que o conceito dispara e, encantados muitas vezes por essa rede de imagens, acabarmos tomando o filósofo como legitimador de uma ideia nascida nas oficinas experimentais da arte.

Giacinto Scelsi

Giacinto Scelsi

 

Afinal, como viemos pincelando, são muitos os conceitos e imagens de Deleuze tomados da arte do século XX, de Paul Klee, Messiaen, Boulez, Ghérasim Luca, Beckett, Artaud. E, muitas vezes, tais ideias confundem-se com objetos, coisas, com formas finalizadas, com matérias formadas que compõe a própria arte de cada um deles. E é aí que uma leitura rápida das proposições de Deleuze acaba lançando tais conceitos em um curto-circuito e, ao invés de o rizoma funcionar como uma rede de relações, ele passa a ser uma imagem fixa, estática (muitas vezes dogmática); ao invés do personagem rítmico ser aquele que nasce na intermodulação entre ritmos, passa a ser apenas uma figuração rítmica; e mesmo um conceito como o de ritornelo (esta máquina de fazer nascer o tempo) corre o risco de se bastar na ideia de uma simples reiteração de objetos, movimentos circulares, reduzindo tudo à ladainha reiterativa do mesmo – desfazendo a singularidade do conceito que Deleuze e Guattari criam ao deslocarem uma ideia do campo da música para a filosofia.

3.16

É que a arte do século XX foi e ainda é lida sob as lentes da fenomenologia kantiana e do ideário de Goethe. O perigo do “pedantismo científico”, como observou o pintor Caspar David Friedrich em sua resposta às exigências de Goethe de que, ao pintar suas nuvens, ele levasse em consideração a sua “classificação científica”.[26] E foi tal discurso proto-científico que norteou grande parte dos estudos e críticas da arte no século XX. Talvez por tal razão, quando Deleuze se vale de imagens e conceitos de sensação provenientes da arte, dos textos dos artistas, de suas entrevistas sobre seus processos de criação, um curto-circuito é inevitável. O leitor desavisado, e ainda preso ao romantismo, rapidamente alude às imagens ainda hilemórficas e substancialistas não notando o caminho apontado por Deleuze: a força de conexão e consolidação ao invés da forma de coerência e estruturação, o material modulável ao invés da matéria formada.

Cabe assim fecharmos este texto procurando sugerir a distância que existe entre o pensamento de arte de Deleuze e o pensar sobre a arte que encontramos nas principais correntes da crítica e da teoria da arte no século XX. E que, talvez, lembrando da ideia de Nietzsche de que cada pensamento responde à necessidade de uma forma de vida – ou é a resposta que uma determinada forma de vida encontra para se perpetuar –, poderíamos deixar ecoando a pergunta: a quem tais teorias seriam, precisamente, necessárias? E também nos perguntarmos a que necessidades um pensamento como de Deleuze responderia? Imaginamos que não sejam as mesmas necessidades que atravessam em um e outro caso. Parece-nos que há aqui um grande salto. E que, por fim, algo ligaria a proposta de Deleuze àquelas de uma certa arte do século XX que procurou fugir das nomeações, dos cerceamentos da significação, da compreensão (hermenêutica), das figuras (retóricas), das formas e codificações. Que seu pensamento veio devolver junto à arte e aos escritos de artistas, o livre trânsito ao “inominável”, como vê-se numa escrita como a de Beckett, na escuta do silêncio em John Cage; o invivível que vem em lugar do vivido fenomenológico. Tarefa por demais árdua, em uma civilização que se acostumou a tudo classificar, nomear, representar, teorizar. Quem sabe tenhamos, diante de Deleuze, o desafio de uma contra-teoria da arte, a tarefa de se encontrar, a cada vez, uma sensação de diferença lá onde se dizia a identidade da forma. Tal revolução copernicana de pensar junto à arte ainda tomará algumas décadas antes que tenhamos de buscar algo além.

John Cage

John Cage

Notas

[1] Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990/2003, p. 171.
[2] Gilles Deleuze, Francis Bacon Logique de la sensation, Paris, Seuil, 2002.
[3] Gilles Deleuze, Cinéma 1, L’Image mouvement e Cinéma 2, L’Image-temps.
[4] Francis Bacon, Entretiens. Paris, Arts&esthétique, 1996, p. 41.
[5] Samuel Beckett, L’Image, Paris, Minuit, 1988.
[6] Gilles Deleuze, Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, Paris, Minuit, 1991.
[7] Um bom exemplo de tal força artística está em Sahara: L’Éstétique de Gilles Deleuze, de Mirelle Buydens.
[8] “Il est tout simple: la philosophie est une discipline aussi créatrice, aussi inventive que toute autre discipline, et ele consiste à créer ou bien inventer des concepts. Et les concepts, ils n’existent pas tout faits dans une espèce de ciel où ils attendraient qu’un philosophe les saississe. Les concepts, il faut les fabriquer.” Gilles Deleuze, Deux régimes des fous, Paris, Minuit, 2003, p. 292.
[9] Entrevista L’Abécédaire de Gilles Deleuze, letra “S” de “Style”.
[10] “Les concepts sont inséparables des affects, c’est-à-dire des effets puissants qu’ils ont sur notre vie, et des percepts, c’est-à-dire de nouvelles manières de voir ou de percevoir qu’ils nous inspirent.” Gilles Deleuze, Deux régimes des fous, Paris, Minuit, 2003, p. 219.
[11] Samuel Beckett, Cap au pire, Paris, Minuit, 1991, p. 7.
[12] Gilles Deleuze, “Bégaya-t-il…”, Critique et clinique, Paris, Minuit, 1993.
[13] Ghérasim Luca, “Passionnément”, Héros-limite, suivi de La chant de la carpe et de Paralipomènes, Paris, Gallimard/ Poche, 2001.
[14] “(…) l’immanence n’est pas quelque chose qui puisse s’affirmer sans se faire (il serait contradictoire d’en donner simplement une représentation, elle qui subvertit l’ordre de la représentation pour lui substituer la production).” François Zourabichvili, “L’Écriture littérale de L’Anti-Œdipe”, in Cornibert, Nicolas e Goddard, Jean-Christophe (eds.). Ateliers sur L’Anti-Œdipe, Milão/ Genebra, Mimesis/ MetisPresses, 2008, p. 247.
[15] Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990/2003, p. 16.
[16] Sobre a questão da literalidade e da recusa da metáfora por Deleuze, é fundamental remetermo-nos aos artigos de François Zourabichvili, reunidos em La litteralité et autres essais sur l’art, PUF, 2011.
[17] Gilles Deleuze, Claire Parnet, Dialogues, Paris, Champs, p. 9.
[18] Giorgio Agamben, “A imanência absoluta”, in Eric Alliez, Gilles Deleuze: uma vida filosófica, São Paulo, Editora 34, 2000.
[19] Gilles Deleuze, Différence et repétition, Paris, PUF, p. 94.
[20] Peter Pál Pelbart, Vida Capital, São Paulo, Iluminuras, 2003, p. 46 e 114.
[21] Gilles Deleuze, Différence et repétition, Paris, PUF, p. 29.
[22] Gabriel Tarde aborda de modo interesante esas modalidades del juego de la imitación em la cultura occidental en Les lois de l’imitation, de 1890 (Paris: Kimé, 1993).
[23] D.H. Lawrence, Selected Critical Writings, Oxford, Oxford University Press, p. 234.
[24] Pierre Boulez, Par volonté et par hasard, Ed. du Seuil, citado por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980, p. 19.
[25] Jorge Luis Borges, Ficções, São Paulo, Ed. Globo, 1997, p. 97.
[26] Anselm Kiefer, L’art survivra à ses ruines, Paris, Collège de France/Fayard, 2011.

Leave a Reply